Discurso do Presidente da República por ocasião do 25 aniversário dos estatutos do Ministério Público

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
21 de Junho de 2004


Excelências,

Senhor Procurador Geral da República,

Minhas Senhoras e meus senhores,

Nesta comemoração dos vinte e cinco anos do Ministério Público, uma palavra de merecido apreço pelo modo como esta magistratura, com o modelo instituído em 1978, tem servido os cidadãos e a República.

Até então, o Ministério Público era o parente pobre e vestibular das magistraturas.

Com a veste inaugurada há vinte e cinco anos, no início vigorosamente promovida pelo Conselheiro Arala Chaves e prosseguida com determinação pelo Conselheiro Cunha Rodrigues, o Ministério Público adquire um estatuto de autonomia e de mera vinculação a critérios de legalidade estrita e de objectividade, que muito tem contribuído para a defesa da legalidade e da independência dos tribunais.

O que tudo constitui, impõe-se reconhecê-lo, pilar essencial na protecção da sociedade contra o crime e na realização do princípio da igualdade no acesso ao direito e à Justiça.

Chegados aqui, que o mesmo é dizer, justamente proclamada a meritória actuação do Ministério Público no figurino inaugurado em 78, importará prosseguir, iluminados pelos sinais dos tempos, na reflexão sobre o seu estatuto, sem pressas, nem tabus, escrutinando-o à luz daqueles sinais e da cultura judiciária em que se insere.

É que a excelência de um modelo só pode ter-se por adquirida, se ele responder adequadamente à realidade a que se dirige e com que tem de conviver.

Ora o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura dos direitos fundamentais e como os agentes da Justiça, sem excepção, esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover, e cedem, amiúde, a meras preocupações de defesa de estatuto e de posições relativas de poder.

Dir-se-á que os agentes da Justiça estão bem longe de aparecer sozinhos nessa disfunção de desempenho, mas compreender-se-á, que hoje, aqui, quando se celebra o Ministério Público, só a área da Justiça nos deve ocupar e preocupar.

Minhas senhoras e meus senhores,

A reflexão sobre o estatuto do Ministério Público, para não constituir um mero exercício de poder, seja do próprio Ministério Público, seja de terceiros, há-de responder a duas questões.

A primeira é a de saber se, no modelo instituído e que, no essencial, me parece ter provado bem, há modificações a introduzir, seja de regime, seja de praxis.

A outra dirige-se ao próprio modelo, cujos méritos, antes de serem enaltecidos e proclamados como paradigma, têm de passar a prova do debate sem restrições, nem subentendidos.

A resposta a uma e outra das questões é essencial, seja para aperfeiçoar o modelo instituído, seja para que fique claro que o estatuto do Ministério Público corresponde a uma opção partilhada e efectiva da comunidade, sem a insinuação permanente de que, afinal, tudo se ficaria a dever ao aproveitamento excessivo de um momento histórico peculiar e às relações de poder nele vigentes.

Ao modelo instituído, ou suas variantes, que não prescindam da autonomia e estrutura hierárquica do Ministério Público, com a responsabilização que daí advém para cada patamar da hierarquia, é, todavia, essencial que se reforce e que se dê poder efectivo a cada grau.

Isto nem sempre foi evidente, por razões históricas conhecidas.

Mas chegados aqui, importa ter presente que a manutenção do modelo instituído, e, em qualquer caso, enquanto seja ele o adoptado, impõe que se dê uma particular atenção ao reforço, nos vários níveis, da estrutura hierárquica do Ministério Público, reforço que, descentralizando responsabilidades, torne mais eficaz o desempenho e controlo de cada grau, e evite indesejáveis afunilamentos e fulanizações.

Minhas senhoras e meus senhores,

Os acontecimentos do último ano colocaram as questões criminais e os direitos fundamentais que lhe estão associados na primeira linha da atenção da comunidade e dos responsáveis pelo sistema de Justiça.

E não vale a pena fazer-se a demagogia de afirmar que só a inclusão de notáveis suscitou a intervenção dos responsáveis no alerta para as disfunções do sistema, quando o Presidente da República, que é o primeiro dos responsáveis, privilegiou, desde o início do seu primeiro mandato, a abertura do ano judicial, para, sessão a sessão, ir chamando a atenção para os males da Justiça, designadamente na área criminal.

Mas ainda que assim não tivesse sido, o silêncio de quem tem o dever de falar, não faz desaparecer o mau funcionamento do sistema, nem o desculpabiliza.

Ninguém de senso, ou pelo menos conhecedor da administração da Justiça, pensará que a frágil cultura dos direitos fundamentais se tenha manifestado apenas por se tratar de notáveis ou de poderosos, sobretudo, sublinho, quando só após a intervenção do Tribunal Constitucional foi possível fazer reconhecer e tornar efectivo direito tão elementar como seja o de um arguido ser informado dos factos por que está indiciado.

O papel do juiz de instrução como juiz das garantias é, por certo, essencial.

Mas quando é o Ministério Público que se celebra, como na sessão que aqui nos reúne, é decisivo que fique claro que, sendo o Ministério Público uma magistratura de promoção, deve estar sempre na primeira linha, sem reticências, nem hesitações, da promoção dos direitos fundamentais, sobretudo quando se esteja em fase processual que dependa da sua direcção e impulso.

Não se estranhará, por isso, que o Presidente da República saúde com particular ênfase o empenho que se tem manifestado, em vastos sectores do Ministério Público, pela inclusão do regime dos direitos fundamentais na formação comum dos magistrados.

Trata-se, efectivamente, de disciplina essencial na formação, não apenas de magistrados, mas de todas as profissões forenses.

E é por isso que, instituído - como me parece indispensável, e tenho reiteradamente defendido - um tronco comum de formação, tal disciplina só ganhará em ser ministrada, em conjunto, a futuros juizes, magistrados do Ministério Público e advogados, para que, em questões tão essenciais e elementares como são as dos direitos fundamentais, haja um património comum, adquirido e partilhado em comum.

Tudo isto deverá ir de par com um acrescido grau de exigência quer na selecção e formação dos agentes da Justiça - advogados, obviamente, incluídos -, quer na verificação da sua rendibilidade.

E há-de prolongar-se num adequado regime de responsabilização, que proteja os cidadãos contra os danos injustificadamente causados pelo sistema de administração de Justiça.

Trata-se de abordagem que é especialmente oportuna no aniversário de uma magistratura que, sobretudo nos anos oitenta, se distinguiu pela magnifica preparação de muitos dos seus agentes, numa tradição que se impõe consolidar e partilhar com todos os outros agentes da Justiça.

Nessa partilha, possa o Ministério Público, magistratura de promoção, constituir factor de reforma e de excelência, que faça do sistema de administração da Justiça um momento exemplar de realização da República.