Homenagem a D. António Ferreira Gome


15 de Abril de 1999


Esta evocação dirige-se a uma das mais notáveis figuras da Igreja Católica Portuguesa no século XX. D. António Ferreira Gomes distinguiu-se na acção pastoral, no aprofundamento teológico e na orientação das relações entre a Igreja Católica e o Estado.

Permitam-me que comece por salientar este último plano, uma vez que os dois outros caem manifestamente num plano de análise que me não compete. Sua Eminência Reverendíssima D. Armindo Lopes, que foi próximo colaborador de D. António, referiu-se-lhes com autoridade intelectual própria e institucional.

As relações entre a Igreja e o Estado, entre os católicos e a política são historicamente complexas.

Ao longo da nossa história recente, registaram-se momentos de sinal contraditório e as divergências tomaram por vezes o caminho do confronto, e foram causa de divisão e de instabilidade políticas.

D. António Ferreira Gomes foi um defensor determinado e consistente de um modelo de relações baseado na separação entre Igreja e Estado. Uma separação assente na delimitação das esferas de competências e no respeito mútuo, sem prejuízo dos ideais que a Igreja Católica entenda dever manifestar e dar público testemunho.

Não era fácil - e não foi fácil - a um homem da Igreja defender essa linha de independência entre a Igreja e o Estado, sobretudo num tempo em que a tendência para a instrumentalização recíproca era muito forte.

A coragem com que se bateu pelas suas convicções valeu-lhe, como se sabe, o afastamento compulsivo da sua diocese em 1959 e uma longa permanência no estrangeiro.

Durante 10 anos o regresso a Portugal foi-lhe negado, de forma arbitrária e injusta.

O "Caso do Bispo do Porto", colocando o regime autoritário de Salazar contra a reivindicação de autonomia e de liberdade formulada por um prestigiado dignitário da Igreja Católica, faz agora quatro décadas, teve profundas repercussões na vida nacional. E fez de D. António Ferreira Gomes uma personagem de referência fundamental para a Democracia portuguesa.

A este propósito gostaria de pôr em destaque apenas dois aspectos.

A palavra do Bispo do Porto em 1959 conferiu ânimo e até dignidade aos movimentos de inspiração cristã que lutavam por direitos de participação cívica e política fora do alinhamento com o regime de Partido único. Um numeroso grupo de católicos pôde assim, não apenas questionar o salazarismo em termos de princípios, mas também intervir na própria luta política, em cooperação com outras forças da oposição.

Este facto criou condições - porventura decisivas - para que o 25 de Abril de 1974 tivesse podido contar com uma pluralidade de intervenientes e suscitado adesão também de uma pluralidade de sectores de opinião da sociedade portuguesa. A matriz da Democracia é a tolerância. A Democracia portuguesa integrou esse vector fundamental desde o início, a garantiu nele a sua própria sobrevivência. Esse é porventura um dos legados da acção, antes e depois do 25 de Abril, do Bispo do Porto.
 
 
Minhas Senhoras e meus Senhores,
 
Não devo terminar esta breve evocação da figura de D. António Ferreira Gomes sem me referir à sua obra - doutrinária e de realização - no domínio da solidariedade.

As preocupações com a pobreza e a desigualdade estiveram sempre presentes na sua vida. Contactou directamente com cenários de exclusão social, desde a sua passagem pela diocese de Portalegre Castelo Branco, e empenhou-se activamente no combate tanto às suas causas como aos seus efeitos.

Este legado do Bispo do Porto constitui uma dimensão tão importante como a do contributo para a Democracia.

A obra que a Igreja Católica tem desenvolvido na área da solidariedade, inspirada por esse legado, entre outros, faz dela um participante decisivo na coesão económica e social do nosso País.
 
 
Minhas Senhoras e meus Senhores,
 
Quero agradecer à Câmara Municipal de Penafiel o gesto com que pretendeu perpetuar a memória de um grande penafidelense e de um grande português. O Bispo D. António Ferreira Gomes foi uma notabilíssima figura da Igreja Católica, e um combatente esclarecido e corajoso pela liberdade e pela dignidade dos homens.

Nesta homenagem a D. António Ferreira Gomes cabe a exaltação de uma personalidade ímpar e o exemplo estimulante da abertura intelectual, do sentido da inovação social, da tolerância cívica e da dedicação solidária.