Discurso de SEXA o PR no VII Congresso Europeu da International Industrial Relations Association

Estoril
08 de Setembro de 2004


No momento em que se dá início ao 7º Congresso Europeu da International Industrial Relations Association, a cuja preparação esteve intimamente ligada a Associação Portuguesa para o Estudo das Relações de Trabalho, saúdo muito cordialmente as entidades promotora e organizadora, bem como todos os participantes neste grande Encontro.

Procurar equacionar o futuro do trabalho na Europa, a partir da reflexão de tantos e tão prestigiados especialistas, parece-me ser um objectivo de enorme relevância. Tenho, por isso, a esperança que este Congresso venha a constituir um marco decisivo, não só pelos avanços teóricos que irá suscitar, mas também pelo conjunto de perspectivas inovadoras que seguramente abrirá a intervenções políticas preocupadas em acompanhar, com equilíbrio e sentido de equidade, as transformações que vêm atravessando o trabalho - esse domínio tão fundamental da existência colectiva e da construção das identidades pessoais.

Ao percorrer os temas propostos para debate no vosso Encontro, não pude deixar de evocar algumas das grandes preocupações manifestadas no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia de 2000, assim como o conjunto de orientações a que os governantes europeus então se comprometeram.

Recordo que, na estimulante proposta política que posteriormente ficou conhecida como Estratégia de Lisboa, era assumido o desafio de, em plena transição para uma economia baseada no conhecimento, se construir na Europa um espaço de inovação técnica e organizacional com elevados níveis de competitividade, sem abdicar do objectivo de pleno emprego e do núcleo de direitos sociais e do património de bem estar associados ao chamado Modelo Social Europeu.

A verdade é que os objectivos da Estratégia de Lisboa não são fáceis de alcançar.

Um primeiro obstáculo a enfrentar prende-se com o facto de as medidas necessárias à edificação de um bloco europeu forte e competitivo ao nível global poderem gerar ou incrementar desigualdades no interior do próprio espaço da Europa em alargamento. Encontraremos exemplos expressivos desse tipo de dificuldades nas dinâmicas de externalização e deslocalização de actividades económicas e postos de trabalho envolvendo os sectores mais expostos da economia. Tudo leva a crer que, sob uma pressão competitiva global, e na ausência de sistemas de regulação adequados, as empresas europeias continuem a transferir as suas actividades em direcção a países e regiões (incluindo os da própria União) com custos laborais mais baixos e mais fracos padrões de protecção social. Dumping social, por um lado, e desemprego de longa duração em certas regiões e sectores dos estados-membros, por outro, são dois dos efeitos mais perturbadores dos processos em causa.

A questão que se coloca é, então, a seguinte: nas actuais condições de uma globalização largamente desregulada, como conquistar quotas de mercado na economia mundial sem pôr em causa a coesão social a nível europeu? Não querendo entrar nos detalhes da resposta a tal questão, parece-me, ainda assim, óbvio que se colocam a este respeito desafios absolutamente decisivos no plano das modalidades de diálogo e concertação social e da renovação das estratégias sindicais à escala europeia, para não falar já no da integração de políticas económicas a esta mesma escala.

Uma segunda dificuldade que a Estratégia de Lisboa tem de enfrentar diz respeito aos défices em matéria de níveis educacionais e de literacia que continuam a atingir a população residente e, sobretudo, a população activa em países - como, justamente, Portugal - que chegaram relativamente tarde à generalização da escolarização de base entre as camadas juvenis. Nestes casos, as possibilidades efectivas de participação plena na chamada sociedade de conhecimento permanecerão, não obstante a magnitude do investimento em novas tecnologias, bastante reduzidas, o que, por sua vez, constituirá factor de novas segmentações e polarizações no mercado de trabalho europeu.

Temo que, na ausência de um investimento forte e persistente na educação de base em todos os países da União, continuemos a ser desagradavelmente surpreendidos com os resultados apresentados em relatórios internacionais sobre níveis de literacia de adultos e jovens, sobre intensidade e qualidade da formação profissional ou sobre os próprios perfis da procura de cursos de nível superior.

Uma terceira dificuldade que a concretização da Estratégia de Lisboa tem de enfrentar diz respeito ao facto de serem muito diferenciados os graus de consistência e maturidade dos sistemas nacionais de bem estar e protecção social. Ora, na ausência de efectivos esforços no sentido de propiciar, a nível europeu, condições que promovam uma convergência real em termos de direitos sociais e de políticas públicas de protecção das populações mais vulneráveis, não se vê como poderá a Europa transformar-se numa verdadeira União.

Ao reflectir sobre o título e sub-título deste Congresso – O futuro do trabalho na Europa: o mercado e a coesão económica e social –, há dois outros temas que me parecem incontornáveis.

Um deles diz respeito à intensidade dos movimentos migratórios induzidos por uma globalização desigual e fragilmente regulada. Não vale a pena ignorar os riscos de não-integração ou mesmo de exclusão extrema que afectam as populações imigrantes na União Europeia. É certo que os nossos países se foram tornando sociedades de múltiplas nacionalidades, havendo razões para esperar que o contacto entre imigrantes e populações autóctones seja, no futuro, bem menos problemático do que hoje ainda é. Para isso há-de contribuir, aliás, a progressiva interiorização, junto das populações nacionais, da ideia de que, em sociedades envelhecidas no topo e na base, como são as nossas, a participação dos imigrantes no mercado de trabalho será de vital importância para o crescimento económico e para a própria sustentabilidade dos sistemas de protecção social. Continuam, entretanto, a ser muitos e difíceis os problemas que as comunidades imigrantes têm de enfrentar nas chamadas sociedades de acolhimento – pelo que só através de políticas sociais clarividentes e programas educacionais robustos, será possível atenuar as dificuldades imputáveis às barreiras linguísticas e culturais, aos preconceitos étnicos, às discriminações toleradas pela própria lei, às formas extremadas de exploração no mercado de trabalho, à segregação residencial.

E passo a um outro ponto que, a meu ver, não pode ser descurado num encontro sobre o futuro do trabalho e da coesão social no espaço de cidadania europeu.

Refiro-me ao modo de participação das mulheres no mercado de trabalho e na vida social.

Um dos grandes objectivos da Estratégia de Lisboa em matéria de crescimento de emprego remetia, como se sabe, para o aumento do rácio de emprego das mulheres. Uma vez que a participação feminina nos sistemas educativos europeus tende a ser mais elevada e mais bem sucedida do que a masculina, é então previsível que a feminização dos mercados de emprego conduza à melhoria progressiva do seu perfil de qualificações. E, no longo prazo, talvez seja essa a melhor garantia de que a emancipação feminina e a igualdade de oportunidades segundo o género se venham a concretizar de forma plena.

A verdade, porém, é que, entretanto, persistem múltiplos preconceitos, discriminações e barreiras legais que claramente desfavorecem as mulheres na esfera do trabalho e, por extensão, em muitos outros domínios da existência social, familiar e pessoal. Creio, sinceramente, que enquanto não formos capazes de ultrapassar definitivamente este enviesamento civilizacional, não poderemos reivindicar, de forma genuína, a superioridade do Modelo Social Europeu. Espero, assim, que as discussões e resultados deste Encontro contribuam para manter o desígnio da emancipação das mulheres no centro das políticas sociais da Europa.

Reservo a última parte da minha mensagem para algumas reflexões sobre o trinómio competitividade/flexibilidade/segurança, que, como se sabe, percorre, ainda que de forma implícita, toda a reflexão contemporânea sobre relações de trabalho.

Sabe-se como o desígnio da flexibilização da relação salarial vem sendo considerado, em importantes quadrantes ideológicos, como o contraponto inevitável e desejável no plano da estruturação dos mercados de emprego, de sistemas económicos cada vez mais pressionados pela competição global.

Vai-se tornando consensual a ideia de que flexibilizar os sistemas técnico-produtivos e os modelos organizacionais, para os libertar de inércias escusadas e os dotar de capacidade de adaptação às caprichosas exigências do mercado, é um caminho indispensável à sobrevivência económica de países, regiões, sectores de actividade e empresas. Daí à defesa de uma flexibilização das formações e competências profissionais não vai senão um passo. O que acontece é que, nesta linha de pensamento, muitos não hesitam em sugerir outros passos, sem, no entanto, se darem conta de que os mesmos se aproximam cada vez mais do núcleo fundamental da própria organização existencial dos trabalhadores: flexibilização dos horários, dos locais de trabalho, dos vínculos contratuais do emprego.

É por isso que falar, a propósito do desígnio de desregulação salarial, não tanto de flexibilidade, mas de insegurança ou de precarização laboral está longe de constituir um excesso linguístico ou puro reflexo ideológico contra a modernização económica. De facto, multiplicam-se os indícios de que as inserções, as trajectórias, os futuros profissionais tendem, sobretudo nas gerações mais jovens, a ser vividos, cada vez mais, em registos de incerteza, de dúvida, de instabilidade, de descrença no longo prazo, de desinvestimento afectivo – mas também de medo, de conformismo forçado, de desmobilização cívica. Por seu turno, os estudos sobre as consequências do desemprego – que é, evidentemente, o lado mais negro da flexibilidade dos vínculos laborais - são elucidativos quanto ao efeito devastador que ele pode ter, quer no plano dos equilíbrios emocionais e afectivos, quer no da estabilidade familiar, quer ainda no dos níveis mais elementares da participação cívica.

Nestas condições, nenhuma discussão sobre o trinómio a que há pouco me referia pode alguma vez ser encarada como mero confronto de pontos de vista sobre as melhores soluções técnico-organizacionais para garantir a competitividade das empresas e das economias nacionais. Na verdade, essas soluções contêm e induzem inevitavelmente, ainda que de forma implícita, opções sobre múltiplos outros aspectos da vida social – opções sobre tipos de oportunidades efectivamente postas ao alcance dos cidadãos, opções sobre direitos sociais concedidos aos trabalhadores, opções sobre qualidade e grau de cobertura dos serviços públicos, etc..

Não deixa, aliás, de ser intrigante e paradoxal que muitos dos mais irredutíveis defensores da flexibilização da relação salarial e da liberalização à outrance dos mercados e da vida económica se perfilem, em simultâneo, como arautos incondicionais da manutenção de modelos familiares rígidos, de uma visão securitária da vida e da democracia, de uma abordagem da toxicodependência em que a repressão sobreleva totalmente as preocupações com a prevenção e a redução de riscos, ou da exigência de disciplina musculada nas escolas (como se a estas coubesse corrigir, por si sós e a qualquer custo, os disfuncionamentos, fragilidades e carências gerados pelo sistema económico e social no seu conjunto).

Defender uma organização social baseada em valores e instituições fortes e estáveis, por um lado, desregulando vínculos jurídicos e relações de confiança no trabalho, por outro, não parece poder conduzir, a não ser por caminhos muito tortuosos, a sociedades coesas, nem em última análise a economias competitivas a longo prazo. E essa impossibilidade será tanto mais evidente, quanto mais, simultaneamente, se insistir numa atitude de sistemática desconfiança ou mesmo hostilidade relativamente às mais elementares medidas de protecção social de iniciativa do Estado.

Tenho consciência, entretanto, de que a crítica a esta posição não se pode reduzir a uma teimosa fixação em fórmulas sobre a intervenção do Estado na vida económica e social desajustadas relativamente às novas condições da globalização e indiferentes a critérios de eficiência na utilização dos recursos colectivos.

Eis por que razão me parece indispensável discutir o trinómio competitividade/flexibilidade/segurança fora, tanto quanto possível, do círculo apertado de uns tantos estereótipos ideológicos.

Este Congresso dispõe de excelentes condições para levar cabo tal tipo de discussão. E aí está uma forte razão para passar a aguardar com extrema curiosidade os resultados do vosso Encontro.

Termino, agradecendo aos organizadores a possibilidade que nos deram de Portugal ser o País de acolhimento de tão importante iniciativa, felicito-os pela qualidade do programa de trabalhos que propuseram aos participantes e desejo a estes últimos que encontrem, durante a sua estadia, múltiplos motivos de satisfação, tanto no plano académico-profissional como pessoal.

Muito obrigado pela vossa atenção.