Discurso de Sexa o PR por ocasião da Apresentação da "Semana da Saúde"

Escola de Enfermagem Gulbenkian, Lisboa
21 de Setembro de 2004


A exemplo do que já fiz no meu primeiro mandato, vou dedicar especial atenção, ao longo dos próximos dias, ao tema da Saúde, com o objectivo de suscitar junto dos responsáveis e profissionais do sector e dos cidadãos em geral uma reflexão fundamentada e realista sobre a sua evolução recente.

Nos últimos oito anos, contactei com dezenas de centros de saúde e de hospitais, centros de formação e de investigação em Saúde e participei em inúmeras realizações promovidas pelos governos, profissionais e unidades de saúde, associações de doentes, empresas, escolas e autarquias. Pude aperceber-me, nessas ocasiões, até que ponto as questões da saúde são importantes para os cidadãos, sobretudo aqueles que, destituídos de recursos e especialmente fragilizados pela doença, a idade e a perda de laços sociais sofrem de isolamento, dependência e solidão.

Com esta nova iniciativa chegou então a altura de tentar avaliar o que de mais positivo se tem feito no sector, mas também de assinalar bloqueamentos e disfuncionamentos que permanecem ou reorientações que tenham falhado as suas metas. Sempre tenho afirmado que a avaliação objectiva dos resultados das políticas devia ser uma componente indissociável da prática governativa e da gestão de todos os organismos da administração com missões de serviço público. É uma posição que a mim mesmo imponho, e que vale, por maioria de razão, no âmbito da saúde – nele se joga, com efeito, o acesso ao exercício de direitos cívicos elementares, que nenhum responsável pode descurar.

Na minha intervenção em questóes da Saúde, tenho privilegiado três temas: o acesso aos cuidados de saúde, a toxicodependência e a SIDA.

Nessa perspectiva, e para além do atento acompanhamento político da acção governativa que me compete, fiz questão de promover, eu próprio, conferências e debates sobre os problemas do sistema de saúde em Portugal, sobre a SIDA e sobre a droga, com a participação activa de representantes dos doentes, dos profissionais e dos investigadores; participei, também, em diversas iniciativas das Nações Unidas e da União Europeia e de líderes mundiais sobre estes temas, que, como sabemos, afectam, ainda que desigualmente, todos os povos do mundo.

Penso que, em Portugal, os debates permitiram conhecer melhor os problemas e contribuíram para aproximações significativas nesta importante e complexa área social.

Quero destacar três domínios em que, a meu ver, se verificaram avanços nesta direcção:


Em primeiro lugar, a necessidade de modernização do Serviço Nacional de Saúde.

Os modelos de sistemas de saúde são o fruto de circunstâncias históricas próprias, sendo que, em Portugal, optámos por um modelo que confere ao Estado especiais responsabilidades na protecção da saúde dos cidadãos. Acontece que o desempenho dessa missão do Estado não parece incompatível com um processo de modernização da gestão pública que utilize modelos e regras próprias do direito privado, desde que tal processo não ignore nem colida com as responsabilidades e orientações estratégicas do Estado em defesa do interesse público. Reconheço que não é fácil encontrar este caminho, mas as exigências da universalidade do acesso aos cuidados, por um lado, e da procura da eficiência, por outro lado, obrigam-nos a estudar e a procurar fórmulas que se revelem ajustadas, quer às necessidades dos cidadãos que necessitam de cuidados de saúde de qualidade, quer às expectativas dos portugueses, enquanto contribuintes, a respeito da boa utilização dos dinheiros públicos.

Mas que não restem dúvidas: sou o primeiro a reconhecer a necessidade de reformas que visem a sustentabilidade financeira e a modernização do sistema de saúde; porém, não contem comigo para destruir ou subverter o Serviço Nacional de Saúde.

Como já frequentemente disse, a questão do acesso é, para mim, a questão central do sistema de saúde, já que ela é a principal dificuldade com que se confrontam os Portugueses, sobretudo os mais desfavorecidos. Não é a qualidade dos cuidados de saúde, nem a qualidade dos profissionais, aquilo que mais aflige e penaliza os cidadãos. O que mais os aflige e penaliza tem que ver com a marcação da consulta no centro de saúde, com a marcação da consulta ou da intervenção cirúrgica no hospital.

E a questão do acesso transporta-nos para outros problemas que lhe estão associados.

Um dos mais importantes é a informação necessária para o cidadão conhecer e escolher. Se a saúde é, desde logo, uma área em que o conhecimento, por parte dos doentes, sobre a doença, as alternativas de tratamento e as suas consequências, a qualidade técnica dos cuidados, é naturalmente limitado, então o esforço para disponibilizar informação compreensível para as pessoas é uma obrigação dos governos, das instituições e dos profissionais.

Outro problema é a formação e, em especial o ritmo dessa formação. Em 1999, eu afirmava que o sistema de formação não respondia às reais necessidades de técnicos do país, porque o desenvolvimento do nosso sistema de saúde exigia mais profissionais e porque estávamos a frustrar, pelo numerus clausus, a expectativa de milhares de jovens, a quem era extraordinariamente dificultado o acesso a cursos na área da saúde. Melhorámos, desde então, e de forma sensível, a capacidade de formação nos cursos de medicina, enfermagem e tecnologias da saúde, mas vamos ainda continuar, por alguns anos, a pagar os erros cometidos há cerca de duas décadas.


A segunda aproximação significativa diz respeito à droga e às toxicodependências.

A sociedade portuguesa tem, hoje, uma diferente relação com o problema das drogas. Fundamentalmente, está mais informada e, portanto, indisponível para aceitar falsas receitas rápidas para a resolução do problema, ou qualquer desistência numa estratégia que, para ter eficácia, se quer segura e consistente.

Tive, em todas as minhas intervenções, a preocupação de que a estratégia nacional fosse apoiada por sectores políticos, técnicos e sociais significativos.

Foi possível então que o tema das drogas, que poderia suscitar posições extremadas dos partidos e, por seu intermédio, da opinião pública, não fosse utilizado como bandeira partidária, nem se introduzissem divergências, onde poderia haver efectivamente um consenso muito alargado.

Tive a preocupação, várias vezes sublinhada, de que a guerra contra a droga não se transformasse na guerra aos consumidores de drogas.

Se, no discurso técnico e no discurso político, há muito se tendia a encarar a toxicodependência como uma doença, a realidade é que no enquadramento legal continuava a considerar-se o toxicodependente como um criminoso. Aliás, Portugal apresentava das maiores percentagens de toxicodependentes da Europa, número claramente superior ao existente em países em que o consumo não era criminalizado.

No debate sobre os programas de redução de riscos e de danos, foi possível ter presente que o fenómeno das drogas exige uma resposta global, equilibrada e coerente, de que são parte a redução da procura, a redução da oferta e a cooperação entre os países.


A terceira aproximação significativa na sociedade portuguesa diz respeito à luta contra a epidemia do VIH/SIDA.

Acordámos tarde para a dimensão e para os efeitos devastadores da epidemia e estamos hoje ainda a suportar o resultado de uma avaliação que deveria ter sido realizada na altura própria, seguramente com as limitações do conhecimento e dos meios que existiam, mas mais profunda e mais profissional. Teria sido necessário entender, desde o início, que o problema era complexo, e não estritamente clínico, o que apelava ao concurso de diversos saberes, e que, por outro lado, não era exclusivo de um grupo de risco, devendo por isso mobilizar o empenhamento de toda a sociedade.

Tenho defendido, desde o primeiro dia em que ocupo estas funções, que devemos discutir abertamente os problemas e não escondê-los ou fazer por ignorá-los. Foi o que procurei fazer com o tema das drogas e também com o tema da SIDA, trazendo para o debate os diversos intervenientes que conhecem, no terreno, o problema, ponderando as alternativas e contribuindo para que as estratégias possam ser aplicadas com ampla participação das comunidades afectadas.

A estratégia da luta contra a droga, e concretamente o papel desenvolvido pelas diversas estruturas vocacionadas para a prevenção, o tratamento e a redução de danos, terá, certamente, contribuído para o decréscimo percentual dos toxicodependentes, nas diferentes categorias de transmissão do VIH/SIDA.

Irei, pois, nos próximos dias, contactar directamente com a forma como as instituições prestadoras de cuidados de saúde, unidades de formação e de investigação respondem às expectativas dos portugueses de melhoria do seu sistema de saúde e como é prosseguido o interesse público.

Quero continuar a conhecer de perto os anseios e as necessidades dos portugueses, quero também conhecer mais de perto a opinião dos profissionais no terreno, quero discutir abertamente os riscos e as oportunidades que novas formas de gestão trazem às unidades de saúde, quero, finalmente, conhecer melhor e discutir as razões dos nossos sucessos e insucessos em diversos indicadores de saúde.

Esta deve ser a questão central das nossas preocupações: afinal, por que razão fomos capazes de, por exemplo, fazer regredir continuadamente a taxa de mortalidade infantil nos últimos vinte e cinco anos, colocando-nos à frente de países da União Europeia com melhores níveis de recursos, e por que razão, inversamente, ocupamos um dos piores lugares quanto à incidência do VIH/SIDA?

Tudo isto leva-nos a centrar a nossa atenção nas estratégias para os ganhos em saúde e na garantia da equidade de acesso dos cidadãos aos cuidados.
É o que procurarei fazer ao longo destes dias.