Sessão de Abertura do Colóquio sobre “Reforma e Regulação da Saúde”

Coimbra
24 de Setembro de 2004


Quero começar por felicitar os organizadores deste Colóquio, em particular o Professor Vital Moreira, presidente do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que, aliás, é um dos principais responsáveis pelo importante corpo doutrinário que, entre nós, já existe sobre o tema da Regulação.

A minha participação neste colóquio tem dois significados especiais:

Em primeiro lugar, o de que entendo que a decisão política se deve basear em fundamentos cuidadosamente ponderados e que o ambiente académico favorece essa ponderação, por não estar sujeito à pressão de agendas que, às vezes, prejudicam a qualidade do resultado final.

A minha presença aqui decorre, em segundo lugar, da convicção de que este colóquio permitirá uma avaliação do que até agora já foi realizado, avaliação essa que deve ocorrer de uma forma transparente, com recurso a toda a informação indispensável a uma análise cuidada, não sem permitir, além disso, aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições de saúde.

As decisões políticas são tomadas por quem tem legitimidade para o fazer, mas essa circunstância não retira aos órgãos de acompanhamento político e às iniciativas da sociedade, em geral, um vasto espaço de afirmação, de análise, de propositura, que, nas sociedades democráticas, deve ser permanentemente estimulado e, tanto quanto possível, ampliado.

Falemos então de regulação na saúde.

O sector da saúde tem passado, nos últimos anos, por alterações significativas, que se traduziram, em especial, na criação do novo estatuto dos hospitais sociedades anónimas de capital exclusivamente público, na possibilidade da construção e gestão de novos hospitais do Serviço Nacional de Saúde ser realizada por empresas privadas e na concessão da gestão de unidades públicas a operadores privados.

Todas estas soluções implicam uma maior presença de actores privados e de transacções económicas na prestação de cuidados de saúde.

Insisti, como sabem, na criação de uma entidade reguladora previamente às profundas alterações introduzidas na rede de cuidados de saúde primários. E fi-lo por três razões:

Em primeiro lugar, porque a utilização de uma lógica empresarial no âmbito do Serviço Nacional de Saúde terá virtualidades, mas contém igualmente riscos – riscos que podem e devem ser acautelados.

Quais são os mais gravosos? A selecção de patologias de acordo com critérios financeiros, a desvalorização da qualidade dos cuidados de saúde e da segurança dos utilizadores, a desvalorização de actos dificilmente mensuráveis na área da prevenção e da promoção da saúde, o desinvestimento na investigação e na formação dos profissionais.

Ora, a gravidade destas situações – que, a concretizarem-se, subverteriam toda a filosofia e o património de realizações do Estado de Bem Estar na área da protecção social dos cidadãos face aos riscos de doença - exige uma intervenção preventiva, não podendo, pois, o seu acompanhamento repousar num mero controlo a posteriori.

Faço notar, em particular, que, no quadro de traços estruturais específicos da sociedade portuguesa, que impõem a largos sectores da população debilidades e carências muito acentuadas, as questões do acesso aos cuidados de saúde comportam uma enorme delicadeza.

A segunda razão para ter defendido a criação de uma entidade reguladora da saúde prende-se com o facto de os mecanismos de regulação existentes no Ministério da Saúde terem manifestado, nomeadamente no acompanhamento do contrato de gestão do Hospital Amadora-Sintra, dificuldades evidentes, fruto da falta de experiência e de preparação específica para estas tarefas. Tal circunstância, não sendo surpreendente, face à extrema dificuldade e complexidade dos problemas envolvidos, não deixa, aliás, de nos alertar para a necessidade de acompanhar com precaução e grande proficiência os processos de modernização administrativa em que as exigências de serviço público envolvem tecnologias e prestações crescentemente sofisticadas.

A terceira razão decorre do facto de a organização do Serviço Nacional de Saúde valorizar, e bem, o centro de saúde.

Ele deve ser a porta de entrada no sistema de saúde, o exemplo de uma cultura de proximidade e de continuidade de cuidados e onde se pratica não só o tratamento da doença, mas também a promoção da saúde.

Trata-se de uma organização fundamental na nossa estratégia de saúde e que não pode ser amputada de nenhuma das suas formas de intervenção, sob pena de deixar de ser um espaço de exercício de direitos fundamentais das pessoas, um espaço de vivência e promoção da cidadania.

Está adquirido que uma parte dos bons resultados em saúde que conseguimos nas últimas três décadas se deve à acção dos centros de saúde que cobrem todo o país.

Impõe-se, por isso, que a introdução de uma diferente lógica de funcionamento do centro de saúde não leve a prejudicar ou fazer esquecer a diversidade de tipos de intervenções dos cuidados de saúde primários.

A criação de uma Entidade Reguladora na Saúde pareceu-me, pois, necessária para garantir, em especial, a universalidade e a equidade no acesso aos cuidados de saúde, mas também a sua qualidade.

Teria sido possível prolongar um pouco mais o debate prévio à sua criação legal, de forma a recolher de outros intervenientes da vida política, de investigadores desta área do conhecimento e dos cidadãos em geral, propostas concretas, garantindo assim que o modelo fosse entendido, em última análise, como um instrumento útil para toda a comunidade.

É desejável que, em domínios tão decisivos para a qualidade de vida dos cidadãos como é o da saúde, a exigência de rapidez de resposta aos problemas não se alcance à custa da indispensável reflexão.

Depois, é necessário que a Entidade Reguladora da Saúde construa, a breve trecho, a sua capacidade técnica e logística para responder aos problemas que estiveram na base da sua criação.

Não podemos, em simultâneo, afirmar a indispensabilidade da Entidade Reguladora da Saúde e adiar a sua intervenção efectiva nesta tão importante área social.

Não terminarei esta minha intervenção sem abordar um ponto que considero muito relevante nas discussões sobre o nosso tema.

Refiro-me à necessidade de a reflexão sobre modernização, racionalização de recursos e regulação na saúde não se desligar de uma outra reflexão – a que tenha em conta o agravamento de vulnerabilidades e a emergência de novos riscos sociais com que se confrontam sectores significativos da população.

É um fenómeno que nos remete para as consequências do desemprego e da precaridade laboral, para os problemas da imigração, para o envelhecimento desprotegido afectando cada vez mais pessoas, para a desestruturação de modelos familiares e de solidariedades de proximidade, para a incidência de toxicodependências e da SIDA.

Ora, perante dados tão preocupantes, a reflexão sobre os problemas da saúde não pode restringir-se a aspectos meramente técnicos, nem a critérios estritamente economicistas. Ela impõe a activação de um debate sobre as novas exigências do Estado em matéria de protecção social dos cidadãos, que, mais aberto do que outrora aos problemas da eficiência na utilização dos recursos públicos, não se coíba de abordar com frontalidade as obrigações do Estado na garantia de direitos sociais tão elementares como o direito à saúde dos mais desprotegidos e economicamente carenciados.

Termino, então, esta minha intervenção reiterando a convicção de que, no âmbito deste Seminário, germinem ideias e propostas que apoiem os responsáveis do sector da Saúde na definição criteriosa de soluções para os seus problemas. Mas que, nessa definição, se incluam, tanto quanto possível, caminhos inovadores, quer sobre os novos papéis do Estado em matéria de regulação na saúde, quer sobre a reinvenção do Estado de Bem Estar numa era de incerteza e de riscos de desprotecção para tantos cidadãos.