Entrega do Prémio Carlos V

Yuste
13 de Outubro de 2004


Majestades,
Excelências,
Senhoras e Senhores,

Há lugares que o simples gesto de um homem retira do seu espaço de quieta normalidade para os projectar no universo das imperecíveis referências históricas. Assim ocorre com Yuste, desde que Carlos V decidiu acolher-se ao seu mosteiro para, em aposentos que nele mandou construir, acompanhado por “pocos mas doctos libros”, preparar o caminho da sua viagem derradeira. Não foi muito o tempo que para isso dispôs, mas ganhou ao menos o conforto de o fazer nestas terras que o seu cronista, Frei Prudêncio de Sandoval, já então referia “como as mais aprazíveis e temperadas de Espanha”. Aqui, nesse diálogo consigo mesmo, terá decerto alinhado memórias felizes, inquietações e pesares de um singular percurso pessoal que o conduziu da corte de Borgonha a Espanha, para assumir depois um celebrado destino europeu. Decerto também que o quadro de Tiziano, que mandara vir para junto de si e onde figurava com a Imperatriz, terá mantido sem vacilações a saudade dessa Princesa de Portugal, cuja morte prematura levaria o Duque de Gandia, mais tarde santo da Igreja, a descobrir a precariedade da vida e da beleza terrenas, e a prestar o seu famoso e desolado juramento – “nunca mais servirei Senhor que possa morrer” –, que inspiraria um dos mais belos poemas da literatura portuguesa contemporânea.

Vida notável a do Imperador-Rei, preenchida por um constante peregrinar pelos seus imensos domínios, afinal o maior território reunido sob um só ceptro desde o Império Romano, e paralelamente ocupada em frequentes batalhas, cujos nomes fazem hoje parte de uma História Europeia que ajudaram a modelar. Alternando ardor religioso e vontade de poder temporal, sonhou uma Europa politicamente unida, assente no extenso património de países e povos que dominava, nas velhas raízes históricas e na matriz cristã que atravessavam as incipientes fronteiras e as rivalidades das nações da Idade Média para começar a compor os primeiros traços de um sentimento identitário europeu. Foi um sonho frustrado, por se basear num desígnio de Império e numa ambição individual, mas nele surge já a consciência premonitória de ser possível construir uma Europa unida e de dar um rosto político ao antigo mito grego e a um mero conceito geográfico.

Bem mais tarde, séculos depois, Monnet e Schuman concretizarão esse pensamento de unidade, agora fundado na livre partilha e cooperação de soberanias, dando corpo a um projecto em que nunca será demais celebrar a lucidez, o sentido de oportunidade política, e uma extraordinária visão de futuro. Nascia assim a Europa como hoje a vivemos e desejamos, construída com o cimento da liberdade, da democracia, do primado do direito, finalmente terra de solidária igualdade para os Estados que a ela se vêm acolhendo.

Por tudo isto, honra-me sobremaneira este Prémio. Pelo seu nome, pelo objectivo que o inspira, pelos que me antecederam neste galardão, pela qualidade das entidades proponentes e pela amizade dos apoiantes da minha candidatura, alguns aqui connosco, a quem expresso o meu reconhecimento. Honram-me as palavras excessivas, ditadas afinal por uma estima que muito me sensibiliza, proferidas a meu respeito pelo Presidente D. Juan Rodriguez Ibarra - sempre atento ao reforço dos vínculos de vizinhança - de quem bem conheço a carreira política de invulgar capacidade realizadora, e pelo magnífico Reitor D. Gregório Peces Barba, nobre referência para todos nós de cidadão e intelectual. Honra-me, ainda, ser distinguido pela Fundacion Academia Europea de Yuste, cujo inestimável trabalho de reflexão e de pedagogia sobre as grandes questões da unidade europeia representa um esforço exemplar no magistério, tantas vezes descurado, da defesa dos valores da nossa União. Honra-me, enfim e sobretudo, receber este prémio das mãos amigas de Sua Majestade o Rei de Espanha, infatigável garante do fraterno relacionamento luso-espanhol, que tem feito da causa da Europa uma empenhada batalha pessoal, fundada na consciência do que ela representa para a paz e desenvolvimento do Mundo e da nossa península comum.

Majestades,

Senhoras e Senhores,

Mais do que quaisquer outros, os lugares tocados pela História, como Yuste, oferecem-nos emoções, mas impõem-nos em contrapartida o dever de lembrarmos o presente a fim de melhor concebermos o futuro. Reunidos hoje aqui sob o signo da Europa, é dela, pois, que caberá fazer breve evocação para entrever que rumos lhe apontam este nosso tempo e as expectativas dos seus cidadãos.

Desde logo, ao recordarmos o percurso que conduziu até à actual União Europeia, importa celebrar o triunfo de um desígnio: fazer vingar a paz na Europa. Na verdade, não obstante as cicatrizes que ainda perduram nas terras da Flandres, nas praias da Normandia, e em tantos outros lugares, vai-se apagando a memória das confrontações que ensanguentaram o último século, pois onde continuadamente dominou a guerra é agora espaço de diversificada cooperação e entendimentos. Convirá repeti-lo uma e outra vez, até porque as novas gerações esquecem com frequência ser este um progresso arduamente conquistado e que, ainda há pouco, para muitos, como para nós portugueses e espanhóis, eram diferentes e difíceis as fronteiras da nossa Europa. Hoje, vencidos lutos e ruínas, o projecto europeu, firmado em princípios, objectivos e regras de disciplina aglutinadoras da disparidade de interesses nacionais antes conflituosos, constitui a mais notável realização diplomática dos nossos dias, a que o recente Tratado Constitucional pretende dar novo fôlego e ajustar aos complexos desafios do nosso tempo.

É uma tarefa urgente e rude aquela que agora defrontamos. Com efeito, como que a ressuscitar os temores irracionais de uma idade antiga, o render do milénio cedo anulou as esperanças dos que acreditaram estarem reunidas as condições para uma ordem internacional mais justa, pois com ele trouxe extremas violências, imprevistas ameaças, crescentes incertezas. Depressa a alegria colectiva suscitada pelo termo da fractura que desde Ialta rasgara arbitrariamente a Europa foi deixando lugar à legítima preocupação de ver emergir, na periferia do seu próprio espaço, inaceitáveis confrontações de raiz étnica, como se não bastasse já a persistência de conflitos exteriores vizinhos, como o inadmissível enfrentamento no Médio Oriente, gerador de perigosos ressentimentos e instabilidades.

O início do século carregaria ainda consigo uma controversa e inesperada guerra, sucedida por uma crescente vaga de violências que vem marcando de modo sinistro o nosso quotidiano; paralelamente, com a entrada do novo milénio, alargou-se o mapa do hediondo fenómeno do terrorismo internacional, cego a valores universais que julgávamos inatacáveis; continuaram a registar-se inaceitáveis desatenções no combate a pandemias que dizimam continentes e destruturam Estados; comprovou-se, enfim, a fragilidade dos esforços para diminuir as escandalosas manchas de pobreza que afectam extensas áreas do nosso planeta, ou para pôr cobro a situações de indignidade humana, de que Darfur é infeliz e mais recente ilustração.

Este é, pois, um tempo de extremos desafios, de uma dimensão e natureza que põe à prova a capacidade da União Europeia de assumir os seus deveres como actor global e a sua força para fazer valer os seus princípios fundadores no estabelecimento de um mundo mais justo, seguro e equitativo. Por isso, talvez nunca como hoje na sua breve história, nem sempre linear, nem isenta de indecisões, tenha sido tão clara a responsabilidade dos dirigentes e cidadãos europeus para garantirem a firmeza de uma rota de progresso que exige uma outra vontade política de efectiva intervenção, tanto no interior do seu espaço, como no domínio de uma melhor e mais coordenada acção externa.

Encontramo-nos num momento decisivo para o futuro do projecto integrador, agora que, após um processo de alargamento sem precedentes, entraremos no período reconhecidamente delicado das ratificações nacionais do Tratado Constitucional. Convém não nos iludirmos: a Europa, a braços com uma conjuntura política e económica desfavorável, atravessa um dos seus períodos de recorrente pessimismo e dúvida, que favorece uma maior visibilidade aos que – por razões de legítima convicção, ou por meras estratégias pessoais – criticam o desígnio da unidade europeia, por nele encontrarem excessos integracionistas ou, pelo contrário, omissões insuportáveis para as suas expectativas.

Pela minha parte, sempre acompanhei aqueles que, preconizando a necessidade de mais Europa, isto é, de uma Europa com um mais elevado nível de ambição na concretização das suas políticas comuns e no estabelecimento de novos objectivos, não esquecem o jogo dos equilíbrios indispensáveis para evitar rupturas, nem a lição de pragmatismo triunfante de Jean Monnet. Naturalmente que se tem pecado, algumas vezes, por dispensáveis tibiezas no enunciado ou na execução de metas, mas importa sobretudo assinalar os extraordinários resultados entretanto obtidos na materialização dos valores essenciais que enformam afinal a matriz identitária desta nossa comunidade de destino que hoje tem por nome União Europeia. E porque se volta durante o próximo ano a decidir o rumo europeu, agora ligado à ratificação do Tratado Constitucional, será útil recordar o extenso património de realizações – nas várias vertentes políticas, no domínio económico, no campo da unidade monetária, no âmbito da coesão do território, nas conquistas sociais – promovendo para isso um amplo processo de esclarecimento junto dos seus cidadãos, de modo a despertar neles uma cultura de responsabilidade participativa nas escolhas que irão afinal influenciar amplamente o seu futuro. Importa, aliás, reconhecer a persistente ineficácia das políticas de comunicação da União, das quais se esperaria – face aos meios ao seu dispor – uma diferente perícia para fazer chegar às populações as linhas facilmente apreensíveis da bondade deste nosso caminho de unidade e anular muitas caricaturas que prejudicam adesões e aprofundam distanciamentos pessoais. Este é um capítulo de faltas partilhadas, pois nem os Governos, nem as Instituições comunitárias, nem as forças políticas dos diversos Estados, nem os media, têm sabido exercer um devido trabalho pedagógico para, através dele, quebrar o preocupante alheamento dos cidadãos, bem patente nas recentes eleições para o Parlamento Europeu. Trata-se de tarefa prioritária e urgente, pois do seu sucesso dependerá a consistência de um verdadeiro espaço público de verdadeira cidadania europeia, assente numa durável malha de solidariedades de facto, de mais assumida fraternidade, de mais adequadas convivialidades culturais, tudo fertilmente alimentado por esse repertório comum de ideias, afectos e entusiasmos partilhados de que falava Ortega y Gasset e é o barro para um sentimento colectivo de pertença, indispensável para a perenidade de qualquer projecto político.

Neste contexto, o Tratado Constitucional constitui uma resposta realista aos anseios de uns e aos temores de outros, num esforço de equilíbrio e compromisso que bastante deve ao método inédito e aberto à sociedade civil proporcionado pelos trabalhos da Convenção Europeia. Dele se poderá dizer que, sem ser naturalmente perfeito, cumpriu no essencial os propósitos de revisão, simplificação e ajustamento dos anteriores textos às novas realidades, designadamente ao reforçar de forma clara a vertente política da União e ao fornecer instrumentos pragmáticos para futuras evoluções, face ao universo complexo de acelerada globalização deste nosso mundo.

Cabe agora à mobilização cidadã confirmar com lucidez, e com plena consciência da sua responsabilidade histórica, o importante passo político, - dado não sem dificuldade -, que permitiu a negociação e a aprovação do Tratado, assim se continuando uma caminhada comum de progresso. É um apelo que se ajusta bem ao espírito europeu sempre presente neste venerável lugar de Yuste; e, para aqueles que ainda duvidam da rota a seguir, apenas recordaria a sábia advertência de Jean Monnet ao sublinhar que afinal se condenam à imobilidade os que nada querem empreender, por não estarem seguros que as coisas se irão passar da precisa forma como as terão desejado ou concebido.

Sigamos mais uma vez o seu conselho para, com exigente e responsável firmeza, cumprirmos e melhorarmos o projecto que nos legou, prosseguindo desta forma a construção de uma Europa mais forte e coesa, pilar insubstituível da estabilidade e justiça mundiais.