Este discurso foi proferido pela Senhora D. Maria José Ritta em representação de SEXA o PR.

Cerimónia comemorativa do Dia do Mutualismo

Coimbra
24 de Outubro de 2004


O Movimento Mutualista surgiu historicamente como forma de os cidadãos se organizarem colectivamente para fazerem face, fora das lógicas económicas lucrativas, a uma série de riscos e inseguranças gerados pela industrialização e modernização das sociedades.

Foi possível, graças à sua consolidação, atenuar substancialmente os níveis de incerteza e vulnerabilidade a que importantes segmentos da população estavam submetidos, sendo que, em sociedades como a portuguesa, em que tardou a implantar-se um Estado de Bem Estar minimamente consistente, o mutualismo foi mesmo, para muitos, o mais precioso reduto de defesa contra riscos e contingências sociais tão dramáticas como o desemprego, a doença, a incapacitação ou a morte prematura.

Não se tem sublinhado com ênfase suficiente o extraordinário eco que o movimento mutualista obteve no nosso País e ignora-se muito generalizadamente toda a pujança que, sob formas renovadas, hoje ele ainda tem, nomeadamente entre os sectores mais fragilizados da população portuguesa.

A verdade é que, ascendendo a quase um milhão o número dos seus associados e a cerca de dois milhões o dos beneficiários da sua acção, será difícil não reconhecer estarmos em presença de uma componente essencial do nosso sistema de protecção social. E se este facto é, por si só, merecedor de interesse e admiração, uma vez que actua no sentido de compensar as já referidas fragilidades da intervenção do Estado nesta matéria, vale a pena acrescentar que a vitalidade que o mutualismo continua a patentear aponta para um outro aspecto muito importante – o da assinalável capacidade de iniciativa e forte predisposição para o associativismo dos cidadãos nacionais.

Contrariando a ideia feita de que os portugueses são avessos por natureza à participação cívica, ao envolvimento associativo, ou, noutro registo, à dádiva solidária através do voluntariado, o dinamismo do movimento mutualista vem dizer-nos que, se houver criatividade no plano organizacional, se se conjugarem iniciativas e instituições com vocações diversas, mas só na aparência inconciliáveis, e se se souber beneficiar, sem criação de dependências, do espaço normal de intervenção do Estado, é possível reforçar a cidadania, atenuar os níveis de incerteza dos mais frágeis e contribuir activamente para um desenvolvimento mais justo e mais participado das nossas sociedades.

Para caracterizar as sociedades contemporâneas – que, comparativamente com as do passado são sociedades de conhecimento e de abundância - fala-se algo paradoxalmente em “sociedades de risco”, querendo, com tal expressão, assinalar um vasto conjunto de ameaças que os cidadãos sentem ter de enfrentar, desde a crise ambiental, a desregulação da produção de armamento ou o terrorismo até às deslocalizações selvagens, às migrações massivas ou à precaridade extrema dos vínculos laborais, passando pela emergência de epidemias globais, novas doenças profissionais ligadas à intensificação do trabalho, etc..

Nem sempre se tem sublinhado devidamente o conjunto de riscos que nas nossas sociedades decorrem da conjugação do fenómeno do envelhecimento das populações, em grande parte motivado pelos avanços da medicina, com as transformações que vêm ocorrendo ao nível da instituição familiar, nomeadamente as decorrentes da maior participação das mulheres na vida profissional.

Tratando-se de processos sociais que, ao que tudo indica, serão irreversíveis, parece claro que eles nos estão colocando e vão continuar a colocar no futuro desafios particularmente difíceis.

Ora, se não há dúvida que em tal matéria o Estado tem de assumir importantes e insubstituíveis responsabilidades, nomeadamente na construção e renovação de equipamentos de apoio aos mais idosos ou na adaptação das valências de prestação de cuidados nos sistema de saúde, a verdade é que se espera da iniciativa organizada dos cidadãos, nomeadamente através do movimento mutualista, uma resposta enérgica e criativa.

Neste sentido, parece extremamente oportuna a ideia de trazer a esta Cerimónia Comemorativa do Dia do Mutualismo uma reflexão sobre as relações entre o envelhecimento e a protecção social.

É de esperar que, mais uma vez, o movimento mutualista não fique indiferente às mudanças que se vão verificando e incorpore, na resolução do problema, o sentido de generosidade solidária que o caracteriza.

É de admitir que, para concretizar tal estratégia, seja necessário repensar modalidades organizativas estabelecidas, encontrar formas de divulgação dos princípios doutrinários em causa ajustadas aos novos tempos e que, inclusive, se exija a reconversão de algumas valências tradicionais do mutualismo.

Mas talvez seja esse o preço que todas as instituições têm de pagar para, sem perda de identidade, garantirem uma presença activa na sociedade, a qual é absolutamente imprescindível para a construção de um futuro com justiça e com liberdade.

E é esta convicção que todos partilhamos que nos deverá impulsionar para a conquista deste enorme desafio.