Sessão de Abertura da Conferência Nacional da Associação Nacional de Direito ao Crédito

F.C.Gulbenkian
05 de Novembro de 2004


Minhas Senhoras e Meus Senhores

É sempre com muito agrado que aceito participar em iniciativas de organizações da sociedade civil que pela sua meritória acção ajudam a resolver problemas dos cidadãos, como é a Associação Nacional de Direito ao Crédito. Quero por isso saudar e felicitar os dirigentes e os sócios da Associação pela realização desta Conferência de comemoração, balanço e reflexão sobre os cinco anos da sua actividade.

Com a minha presença nesta sessão de abertura pretendo, por um lado, reconhecer o contributo da Associação para a luta contra a pobreza e a favor do empreendedorismo de cidadãos social e economicamente excluídos e, por outro lado, ajudar a divulgar a sua acção - uma actividade que tem sido muito útil e ainda poderá ser mais no futuro, face ao potencial aumento dos candidatos ao microcrédito e ao possível reforço da capacidade de resposta da Associação.

Nos últimos cinco anos, a Associação Nacional de Direito ao Crédito intermediou e concretizou cerca de 350 empréstimos, num montante à volta de 1,5 milhões de euros, que possibilitaram a criação de 420 postos de trabalho. Vistos na sua frieza estes números são limitados. Ganham, no entanto, outra dimensão e significado quando se pensa quão dramático é estar desempregado e quão gratificante é sair dessa situação, particularmente como micro-empresário.

A entrada no desemprego é uma experiência que afecta profundamente o bem estar das pessoas por ele atingidas. Antes de mais porque implica a perda do salário. Esta poderá ser parcialmente compensada por rendimentos de substituição, como o subsídio de desemprego ou o rendimento social de inserção, mas estas ajudas - por mais importantes que sejam e são-no indiscutivelmente - não conseguem evitar a perda de auto-estima que o desemprego, sobretudo o desemprego prolongado, também causa. Sabe-se que o sofrimento causado pela perda de auto-estima é pelo menos tão grande como a perda de bem estar sentida por uma redução do rendimento para metade, razão por que se considera que a felicidade das pessoas é mais afectada por terem ou não terem emprego do que pela espécie de emprego que têm.

Se outras razões não houvesse, o que acabo de dizer seria suficiente para justificar prioridade que deve ser atribuída ao emprego e ao crescimento económico na hierarquia dos objectivos da política económica, bem como para salientar a determinação e o empenho que deve haver no combate ao desemprego. Tanto por razões de ordem económica e social, como por motivos que têm a ver com a felicidade humana - e esta é, no fundo, o grande objectivo das políticas públicas - é fundamental procurar evitar o desemprego e fazer regressar os desempregados ao trabalho.

Mesmo quando a economia cresce ao ritmo do crescimento potencial, o que infelizmente ainda não voltou a ser o caso na economia portuguesa, há sempre pessoas que entram e permanecem no desemprego algum tempo. É inevitável, faz parte do normal funcionamento da economia. Mas a entrada no desemprego também pode ser causada pelo ajustamento do volume de emprego a um menor ritmo do crescimento económico e pela recomposição espacial das actividades, no contexto de uma economia de mercado globalizada.

A deslocalização de empresas de um país para outro - embora não seja um fenómeno novo, é sempre um trauma e um sofrimento para as pessoas directamente atingidas, como já várias vezes pude testemunhar, e também um factor de insegurança social, que não deve deixar ninguém indiferente.

A economia portuguesa, que, após a integração na União Europeia conseguiu atrair bastante investimento directo estrangeiro, nos últimos anos tem sofrido algumas deslocalizações de empresas que são preocupantes, tanto pelo sofrimento e a angústia como pelo sentimento de impotência que geram nos responsáveis políticos. De facto, salvo os casos de mau comportamento empresarial, que infelizmente também há, as deslocalizações de empresas relevam da racionalidade da economia globalizada e não podem ser combatidas agindo discriminada e directamente contra elas. Têm antes de ser combatidas com políticas inteligentes e determinadas a favor do emprego e do crescimento económico a vários níveis.

Ao nível mundial, a resposta passa pela regulação da globalização económica, através das organizações internacionais apropriadas, procurando também mundializar o progresso social, pelo menos, tentando, para melhor os defender, subtrair os direitos do homem ao jogo da concorrência internacional e das vantagens competitivas e salvaguardando um mínimo de condições de trabalho onde tal ainda não se verifique.

Ao nível comunitário, sem prejuízo da aplicação de grandes objectivos de modernização como os definidos na Estratégia de Lisboa e da realização das reformas estruturais necessárias em cada Estado Membro, é preciso praticar uma gestão macroeconómica orientada para o crescimento e o emprego. A recente proposta de revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento apresentada pela Comissão Europeia, na linha do que defendi há mais de dois anos, é um passo nesse sentido.

Ao nível nacional é preciso não adiar mais a efectiva concretização de uma estratégia de desenvolvimento económico e social, afrontando interesses instalados e vencendo resistências que se opõem às reformas necessárias para melhorar o desempenho da economia e reforçar a coesão social, como já várias vezes tenho defendido. Não é agora a ocasião para voltar a desenvolver o tema, mas quero deixar claro que, num contexto de competição mundial, não deve haver ilusões de que a redução do custo do trabalho, mesmo que pontual e temporariamente possa ajudar à sobrevivência de uma ou outra empresa em dificuldade, como regra não é uma boa solução para os problemas da economia portuguesa, pois é sempre possível encontrar economias menos desenvolvidas com salários mais baixos.

Para vencer o desafio da competitividade internacional, em vez da tendência natural para a competitividade-custo e sem menosprezar a sua importância, é preciso apostar cada vez mais na competitividade-valor, através da qualificação dos recursos humanos, da inovação e do desenvolvimento tecnológico e de uma boa infra-estruturação do território nacional. Só assim será possível ir evoluindo para produção de bens e serviços com maior valor acrescentado e que sejam mais complementares do que concorrentes com os produzidos por países menos desenvolvidos. É indispensável ir transitando para a economia do conhecimento e apostar a sério na educação e na formação profissional. É necessário impor uma cultura de qualidade, de exigência e de rigor em todos as vertentes do sistema educativo. E também é preciso que as empresas portuguesas interiorizem bem a importância do investimento em investigação e desenvolvimento, designadamente através da cooperação entre si, com universidades e com outros centros de investigação científica e tecnológica, e que as políticas públicas apoiem convenientemente a inovação e o desenvolvimento tecnológico do país.

A médio e a longo prazos uma boa estratégia de desenvolvimento económico e social é a melhor - porventura a única - resposta para prevenir eventuais deslocalizações de empresas. Porém, a curto prazo, também são precisas respostas mais imediatas para os trabalhadores que, por esse facto, de um momento para o outro, percam os seus empregos. Estas poderão passar, por exemplo, pelo apoio à reconversão da empresa, pela intervenção de uma outra empresa ou pela simples ajuda à obtenção de novos empregos. Também neste campo, devíamos preparar futuro e estudar possíveis respostas para as deslocalizações de empresas que possivelmente terão lugar e para os problemas que daí decorrem, particularmente o desemprego, domínio onde se enquadra a acção do microcrédito, cujas origens remontam a práticas ancestrais de solidariedade creditícia local.

Nas últimas décadas surgiram, pelo menos, três tipos de iniciativas marcadas pela inserção local, pela ajuda solidária e pelo crédito com vista a combater o desemprego e a exclusão social. Refiro-me às iniciativas locais de criação de emprego, cujo financiamento tem sido assegurado por fundos públicos, às associações de desenvolvimento local que, embora não se caracterizem pela vertente financeira, suscitaram a questão do crédito solidário; e, mais recentemente, à Associação Nacional de Direito ao Crédito que assumiu claramente a componente creditícia e a traduziu num projecto aliciante para a integração de desempregados e desocupados no mercado do trabalho, como cidadãos activos úteis à sociedade.

A Associação Nacional de Direito ao Crédito concebeu e pôs em prática uma parceria com o Instituto do Emprego e Formação Profissional e com uma instituição de crédito e tem sabido conjugar a acção local com o enquadramento central, o trabalho profissional remunerado com o voluntário, a dimensão económica com a vertente social e as necessidades nacionais com as melhores práticas internacionais.

Os resultados da actividade da Associação, embora aparentemente modestos, são meritórios e animadores considerando que está ainda numa fase relativamente inicial e tendo em conta as dificuldades próprias do microcrédito, a menor das quais não será, por certo, a tendência natural da maioria das pessoas para procurarem rendimentos de substituição, como o subsídio de desemprego ou o rendimento social de inserção, em vez de tomarem a iniciativa bem mais difícil de empreender, com as oportunidades e os riscos que a mesma comporta.

Devemos evitar a tendência para fazer face ao problema do desemprego, exclusivamente através do subsídio, e adoptar também a prática mais exigente do microcrédito e de outras formas de apoio à criação de empresas e de empregos. De acordo com os números que antes referi, por cada microcrédito, em média, foram criados 1,2 empregos, situando-se o montante médio de cada crédito à volta de 4300 euros. Os responsáveis pela política económica têm de prestar a devida atenção ao efeito multiplicador e ao custo do emprego criado pelo microcrédito.

Considerando as possibilidades que o microcrédito oferece para fazer aceder à condição de micro-empresários algumas pessoas em situação precária ou de exclusão, com um custo relativamente baixo para a sociedade, mesmo considerando uma taxa média de incumprimento dos créditos à volta de 20%, penso que a Associação Nacional de Direito ao Crédito e os próprios poderes públicos deviam procurar apoiar e financiar mais os desempregados criadores de micro-empresas. Aliás, esta também é uma recomendação do grupo de trabalho, presidido pelo presidente honorário do Banco de França, Michel Camdessus, que a pedido do governo francês elaborou e divulgou recentemente o relatório: O Sobressalto - Para um novo crescimento para a França.

Como penso que cada pessoa tem potencial para influenciar a sua vida e a dos outros e acredito na iniciativa e na criatividade das pessoas, considero que a actividade da Associação Nacional para o Direito ao Crédito deve ser encorajada e estimulada a expandir a sua acção. Tal como diz o lema desta conferência, também penso que o microcrédito é, ou pode ser, uma experiência com futuro. Para que assim seja, julgo, no entanto, que ainda é necessário vencer alguns desafios, destacando entre estes, o da crescente inserção local da Associação, nomeadamente aproveitando as possibilidades de cooperação com diversas instituições de acção social, e o da efectiva abrangência de todo o País para poder proporcionar microcrédito à generalidade das pessoas que dele necessitem e reúnam as condições necessárias para o efeito, porventura envolvendo mais instituições de crédito e elevando o actual limite máximo de 5000 euros por empréstimo.

Faço pois votos para que, no âmbito da Associação, dos seus parceiros e demais entidades responsáveis, os referidos desafios, a par de outros, sejam claramente assumidos no “Ano Internacional do Microcrédito e das Microfinanças”, que se celebra em 2005 com o propósito de salientar a importância da microcrédito como parte integrante do esforço colectivo para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio fixados pela Organização das Nações Unidas.

Espero que os desafios que aqui lhes deixo dêem origem a propostas e projectos capazes de fazer chegar o microcrédito a todas as situações sociais que dele necessitam e para as quais seja resposta adequada. A parceria alargada e aprofundada entre instituições sociais, instituições financeiras e organismos públicos de crédito deve poder oferecer realizações à altura das expectativas e das necessidades a atender.

O compromisso que a Associação Nacional de Direito ao Crédito e outras instituições assumem na Carta de Intenções que vão subscrever é um bom indício da vontade e da disponibilidade para a realização de um ambicioso programa de acção em 2005. Acredito que a Associação e os seus parceiros estarão à altura do desafio e desejo vivamente que o próximo ano seja promissor e gratificante para a democratização efectiva do microcrédito.

Desejo a todos bom trabalho. Muito obrigado.