Discurso proferido por SEXA por ocasião da "Sessão de abertura do Ano Lectivo no Instituto Superior de Defesa Nacional"

Lisboa
29 de Novembro de 2004


Aceitei, uma vez mais, presidir a esta cerimónia solene de abertura do ano lectivo do Instituto de Defesa Nacional. E com todo o gosto o faço. O Instituto de Defesa Nacional desempenha um importante papel na sociedade portuguesa, hoje, porventura, mais necessário e exigente. Reconheço que a dificuldade do exercício das suas funções aumentou, perante a complexidade e a transversalidade dos problemas, mais acentuados do que há uma ou duas décadas.

Importará seguramente reforçar a articulação do IDN com as instituições universitárias em geral, e, em particular, com as unidades de investigação científica que nos diversos domínios das ciências sociais e humanas oferecem contributos ao desenvolvimento da missão deste Instituto. Importará, do mesmo modo, equacionar e formular os termos de referência sobre os problemas internacionais, designadamente os que se prendem com a segurança e defesa.

Ajudar a sociedade civil a pensar sobre essas problemáticas é ajuda-la a compreender a diversidade de perspectivas que se nos oferecem e a apetrecha-la para que a opinião pública melhor possa compreender o Mundo e avaliar as opções para Portugal.

Faço votos, senhor Director, para que o IDN prossiga com determinação este caminho e reitero-lhe a minha disponibilidade para colaborar nesse vosso trabalho.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Gostaria de aproveitar esta ocasião para partilhar convosco algumas breves reflexões sobre o actual momento internacional e os novos papéis das Forças Armadas portuguesas nesse contexto.

O tempo que vivemos, neste início do século XXI, é marcado por um sentimento de incerteza sobre o rumo da vida internacional, que contrasta com a visão eufórica da globalização que prevaleceu na década de 90, em que democracia e economia de mercado pareciam marchar de mãos dadas, impondo a sua lei sem séria oposição, alternativa ou mesmo contestação.

No final do século XX, eliminadas as divisões ideológicas que haviam caracterizado a Guerra Fria, a Comunidade Internacional parecia capaz de se organizar em torno de valores comuns e de reunir a força necessária para impor a ordem e restaurar a estabilidade onde esta estivesse ameaçada.

Foi implicitamente com base neste pressuposto que, nos anos 90, foi posto em causa o carácter absoluto da doutrina da soberania nacional, princípio fundador da Carta das Nações Unidas. O direito da Comunidade Internacional em intervir em situações de catástrofe humanitária, provocadas por conflitos civis – ou, no limite, por situações insustentáveis de violência por parte dos Estados sobre as suas populações – foi articulado e posto em prática, de forma mais ou menos consensual.

É certo que esta nova doutrina sempre foi objecto de contestação, e esteve longe de ser aplicada de forma uniforme. Todavia, foi ao abrigo dela que se multiplicaram as intervenções da Comunidade Internacional, proliferando as chamadas operações de paz, que deram às Forças Armadas novas missões fora do seu território nacional.

A exequibilidade desta doutrina pressupunha não apenas uma preponderância de poder por parte da Comunidade Internacional – ou, na prática, dos seus Estados mais poderosos –, mas também um grau suficiente de consenso entre as principais potências, que lhes permitisse agir com eficácia e um mínimo de legitimidade.

Esse consenso emergente foi porém abalado pela forma como se perspectivou a intervenção no Iraque, baseada nas doutrinas da guerra preventiva. Criaram-se brechas entre os Estados Unidos e grande parte da Comunidade Internacional, incluindo alguns dos tradicionais aliados europeus dos Estados Unidos.

Com efeito, a intervenção no Iraque não só gerou, no plano internacional, uma enorme contestação, como os seus resultados, até ao momento, parecem demonstrar os riscos acrescidos de intervenções que não disponham de um amplo, diversificado e generalizado empenhamento.

Ao dizer estas palavras, não é meu propósito reabrir o debate sobre a conflito do Iraque, primeiro, porque ele está sempre reaberto. Depois, porque é evidente que, fossem quais fossem as posições iniciais acerca dele – e a minha é conhecida – está-se agora a formar um consenso, no qual Portugal participa, sobre a necessidade de congregar os esforços para restabelecer a estabilidade naquele país. Com efeito, parece claro que uma situação de caos no Iraque não serve os interesses de ninguém.

O problema de fundo, no entanto, é o de reconstituir a unidade da Comunidade Internacional em torno de princípios que governem a acção internacional e, em particular, legitimem o uso da força.

A nossa acção deve ser orientada no sentido de procurar atenuar as divisões existentes, reconduzindo a prática política no plano internacional a visões mais consensuais, fundadas no direito internacional e sustentadas por uma grande aliança entre as democracias.

Tal só pode ser obtido através da diplomacia multilateral, que exige tempo, paciência e perseverança, mas que é a única forma de impedir que as divisões existentes se cavem e se consolidem. Condição necessária para a eficácia desse multilateralismo é a existência de uma visão partilhada entre as principais potências, e designadamente entre os Estados Unidos e a Europa, sobre os princípios básicos que devem nortear a sua acção internacional.

Nada disto será possível, se não houver, de parte a parte, uma atitude construtiva. No que toca à Europa, isto significa, em particular, levar a sério as preocupações centrais expressas pelos Estados Unidos acerca das novas ameaças – em particular, o terrorismo internacional e a proliferação de armas de destruição maciça – e demonstrar a sua capacidade de acção para as contrariar. Por sua vez, os Estados Unidos não podem persistir na tentação do unilateralismo e devem habituar-se a tratar a União Europeia como um verdadeiro parceiro.

A credibilidade da União Europeia como actor internacional é fundamental para que essa parceria possa ser efectiva. Ora, apesar do que dizem os seus detractores, a verdade é que a União Europeia e os Estados que a compõem desempenham já e, cada vez mais, um papel de primeiro plano na cena internacional. Em primeiro lugar, na própria Europa, como se tem visto agora na crise que atravessa a Ucrânia, mas também fora da Europa, como o demonstra o caso do Irão.

Ninguém nega que a União Europeia ainda tem um caminho importante a percorrer nesta área. Mas também é certo que, apesar das divisões ocorridas acerca do Iraque, ou talvez por causa delas, a determinação dos países da União em percorrerem esse caminho é hoje mais forte. Cabe mais uma vez repeti-lo: não temos por objectivo rivalizar com os Estados Unidos, mas tão só dar um contributo à altura das nossas responsabilidades históricas para a paz e a estabilidade mundiais, num espírito de equilibrada e construtiva parceria.

Temos, por conseguinte, de prosseguir o esforço para dotar a União Europeia de uma política de defesa comum, colmatando lacunas, onde elas existem, na nossa capacidade militar e aperfeiçoando a nossa capacidade para operar em conjunto. Alguns passos importantes têm sido dados neste domínio, mas trata-se de um processo de longa duração, que demorará tempo a dar todos os seus frutos. Alguns, todavia, são já hoje visíveis. Assim, pela primeira vez, a União Europeia assume hoje a responsabilidade plena por uma operação militar – a operação de paz na Bósnia Herzegovina.

Minhas senhoras e meus senhores

Como país que se situa na primeira linha do processo de integração europeia, Portugal tem de dar um contributo à altura das suas responsabilidades para a construção de uma política externa e de defesa comum no quadro da União Europeia, sem descurar, naturalmente, uma participação condigna na NATO e uma contribuição activa para as operações no quadro da ONU.

Portugal não se tem furtado a assumir essas responsabilidades internacionais. Nos últimos 12 anos, participámos com um total de cerca de 16 000 homens numa grande variedade de missões em diversos teatros de operações – designadamente em Angola, na Guiné Bissau, em Timor Leste, na Bósnia Herzegovina, no Kosovo e no Afeganistão, para citar apenas as mais significativas.

A segurança nacional já não pode ser concebida de forma isolada, sem olhar à situação global e às ameaças que pesam sobre os sistemas de alianças em que nos inserimos, mesmo que essas ameaças nos pareçam remotas. Por outro lado, cabe às Forças Armadas um papel importante no apoio à política externa portuguesa e na afirmação do prestígio e respeitabilidade de Portugal no mundo.

O interesse estratégico desse papel tem sido reconhecido pelas principais forças políticas parlamentares. Tal consenso assenta na percepção da importância que tem para um país de pequena dimensão, como o nosso, a utilização complementar das nossas forças armadas e de segurança como parte da política externa nacional.

Esse consenso – que importa preservar – não dispensa a informação sobre a natureza e objectivos de cada uma das missões e o debate sobre a nossa desejável ou não desejável participação nelas. Sendo parte integrante de uma política externa, é nesse sentido que devem, em cada momento, ser avaliadas.

Minhas senhoras e meus senhores

Data igualmente da década de noventa o desenvolvimento de uma outra componente da acção internacional das nossas Forças Armadas – a política de Cooperação Técnico-Militar.

Dispomos, aqui, de mais de uma década de experiência em acções que se espraiam pelos domínios do treino, da formação em áreas como a saúde e assistência hospitalar, o recrutamento e selecção de pessoal, a legislação, a definição estratégica, a construção e recuperação de infra-estruturas e a ajuda humanitária. Chegou, talvez, o momento de proceder a uma avaliação ponderada deste percurso e de redefinir e ampliar o quadro destas missões, lançando uma nova geração de políticas de cooperação técnico-militar apoiada em recursos suficientes, de forma a transmitir-lhes uma eficácia e consistência reforçadas, ampliando a cooperação multilateral no quadro da CPLP.

A cooperação técnico-militar assenta, naturalmente, no interesse convergente dos Estados e desenrola-se no respeito mútuo e no princípio da não interferência nos assuntos internos de cada país.

O esforço que tem vindo a ser desenvolvido por Portugal tem tido como objectivo, reconhecido por todos os parceiros desta cooperação, contribuír para a consolidação de forças armadas apartidárias, subordinadas ao poder político e inseridas no quadro próprio de regimes democráticos.

O trabalho feito ao longo destes anos é vasto e convido-vos a analisá-lo, porque esta é uma realidade por vezes pouco conhecida da nossa política externa. Nem sempre afectamos a esta vertente da nossa cooperação os recursos necessários ao reforço da consistência do trabalho que temos desenvolvido em colaboração com os PALOP e com Timor-Leste.

Nem sempre valorizamos a dimensão do muito que se fez nalgumas áreas. Destaco, por exemplo a formação de quadros e de tropas. Desde 1991, formou-se já um total de 4940 quadros, quer em Portugal, quer naqueles países. E, já agora, permitam-me que refira também os 29 auditores que o IDN já formou no âmbito desta cooperação tecnico-militar, aproveitando para saudar os auditores aqui presentes.

Independentemente disso, está aqui uma sólida base de experiência e de trabalho conjunto com cada um dos PALOP e com Timor-Leste. São os próprios países que nos pedem para a desenvolver. Devemos ser sensíveis a isso e procurar, de entre a escassez de recursos de que dispomos, redefinir as nossas prioridades e apostar nesta vertente da nossa cooperação e da nossa política externa.

Esta cooperação reforça os nossos laços com aqueles países e contribui para a consolidação das suas instituições democráticas. Integre-se, porém, esta cooperação no contexto mais amplo da nossa política de cooperação, fazendo convergir conhecimentos, informação e experiências numa única sede de reflexão estratégica, de modo a dar maior transversalidade aos projectos que se desenvolvem a partir de vários ministérios. A dispersão de conhecimentos e de recursos é sempre má conselheira. Na área da saúde e da formação, por exemplo, para não citar outras, há convergências de projectos que se podem realizar, contribuindo, assim, para melhor gerir os recursos limitados de que dispomos.

Mas, como acima referi, há uma outra realidade que deve merecer a nossa atenção no domínio da cooperação técnico-militar. Refiro-me ao desenvolvimento de projectos multilaterais no quadro da CPLP.

O gradual processo de construção da CPLP tem vindo a ter expressão também no domínio militar. Esta área virá, sem sombra de dúvida, a desenvolver-se com maior intensidade nos próximos anos, quer no domínio do pensamento estratégico, quer no domínio da gestão de crises e resolução de conflitos, quer, ainda, na participação conjunta em operações de apoio à paz.

Temos de nos preparar para o salto qualitativo que se vai dar neste domínio concreto. Ele é desejável e deve continuar a ser por nós apoiado. Cabe-nos, agora, intensificar a nossa preparação para esse reforço acrescido de cooperação técnico-militar, envolver nele as Universidades e Centros de Investigação e dotar este vector da cooperação do necessário consenso nacional através, de uma debate aprofundado quer em sede parlamentar, quer junto da sociedade civil. A consolidação da CPLP é uma aposta consistente da nossa política externa. Trabalhamos nela desde o início deste projecto e devemos apostar, sem hesitações, no reforço das novas vertentes do seu trabalho.

Minhas senhoras, meus senhores

Tem sido muito significativo o esforço desenvolvido por este pequeno país em missões militares internacionais e na cooperação técnico-militar.

Portugal não pode, no entanto, descurar os seus interesses específicos, quer relativamente a zonas às quais estamos ligados por laços históricos e culturais, quer no plano do exercício quotidiano da soberania no território nacional.

Não existem, felizmente, ameaças directas à soberania nacional, nem elas poderiam ser rechaçadas, caso existissem, pela actuação isolada das nossas Forças Armadas, fora do quadro de alianças internacionais em que nos integramos. Mas essa situação não nos dispensa de termos umas Forças Armadas devidamente equipadas, treinadas e moralizadas, com valências diversificadas, capazes de assegurarem as funções básicas que são a sua razão de ser.

Em boa verdade, demorámos muito tempo a iniciar a reestruturação da concepção e modelo de Forças Armadas que herdámos do tempo da Guerra em África. Perdemos um tempo de evolução progressiva que hoje temos de compensar com maior celeridade de actuação.

A mudança é agora suscitada num contexto também marcado pela necessidade de reequipamento, a exigência de novas missões internacionais em vários teatros de operações em simultâneo, a profissionalização das Forças Armadas, com a extinção do serviço militar obrigatório e uma situação financeira particularmente delicada.

É preciso, por isso, encontrar aqui um equilibro ponderado entre a profundidade da reestruturação que deve ser aceleradamente feita e, naquilo que implicar despesa, a contenção e o uso de um critério selectivo e rigoroso no investimento em reequipamento.

É a clareza nas prioridades da intervenção externa de Portugal que dotará os decisores de critérios rigorosos e não, naturalmente, a ambição de alcançar um modelo ideal de reequipamento. O quadro dos nossos compromissos internacionais, designadamente em matéria de desenvolvimento das políticas europeias de segurança e defesa, deverá ser o primeiro ordenador das nossas prioridades de modo a compatibilizar o nosso sistema de forças.

Mas, minhas Senhoras e meus Senhores, não é apenas a Instituição Militar e as Forças de Segurança que têm de procurar respostas às mudanças que a realidade nos impõe. Decorreram vinte anos desde a última reforma constitucional e legal em matéria de Defesa e de Forças Armadas. Sem surpresa, acumularam-se lacunas legislativas, entretanto constatadas e tornou-se evidente a desadequação de algumas soluções legislativas então encontradas.

Já em 1997, na revisão constitucional, se sentiu a necessidade de dar resposta à omissão existente quanto à participação portuguesa em missões humanitárias e de paz. Mas, este esforço não teve a continuidade necessária e, como tenho vindo a referir, falta dar a correcta importância à necessidade de rever o enquadramento jurídico que define o papel que deve caber aos diferentes Órgãos de Soberania, clarificando competências e responsabilidades nestas matérias.

Creio ter dado, ao longo dos meus mandatos, um contributo positivo à função de Comandante Supremo das Forças Armadas. O meu empenho neste objectivo iniciou-se quando assumi a Presidência da República, em 1996, e defini as linhas de orientação e acção que me propunha prosseguir no âmbito das competências que nessa matéria me estão constitucionalmente confiadas.

Acompanho com maior atenção os assuntos relativos à Defesa Nacional e à instituição militar e pugno pelo reforço do prestígio, da dignificação e da coesão das Forças Armadas. Não me dispenso de manifestar, nos momentos oportunos, o incentivo necessário à transformação e modernização da componente militar da Defesa.

O meu entendimento é que ao Comandante Supremo das Forças Armadas compete enfatizar o carácter nacional da instituição militar e fomentar o desenvolvimento de uma mentalidade democrática sobre Defesa Nacional, salientando a noção de que ela deve ser partilhada e sentida por todos os portugueses.

A reforma do Conselho Superior de Defesa Nacional ainda está por fazer. O peso claramente datado das suas competências meramente administrativas continua a ser dominante. Sem desdouro para tais funções, parece-me, porém, que urgia reflectir sobre a sua natureza, composição e funções tornando o Conselho, cada vez mais, uma instância de consulta e de preparação aprofundada sobre a organização e planeamento estratégico da Defesa Nacional e sempre que esteja em causa a preparação de decisões complexas em matéria de Defesa ou de iniciativas a enviar ao poder legislativo.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Excedi-me, talvez, na extensão das palavras que vos devia aqui dirigir. Mas estes desafios nacionais e internacionais com que nos confrontamos prendem-se directamente com o escopro da actividade deste Instituto. Esta é uma casa de reflexão estratégica e debate plural sobre estes temas, uma óptima sede portanto para partilhar convosco algumas reflexões e algumas pistas para caminhos que teremos que trilhar. Desejo a todos um bom ano académico.