20º Aniversário da AMI – Assistência Médica Internacional

Lisboa
04 de Dezembro de 2004


Há vinte anos, nascia em Portugal, com os olhos postos no mundo todo, a Associação Médica Internacional.

Convicto de que “salvar um homem é salvar a humanidade”, quis o Dr. Fernando Nobre, com esse gesto fundador, congregar as energias e capacidades de todos aqueles para quem o sofrimento alheio, e sobretudo o sofrimento anónimo e silencioso dos mais desmunidos, não é indiferente nem tolerável. Estamos todos muito gratos, Senhor Doutor, pela sua corajosa iniciativa.

Nestas duas décadas de trabalho, em que a generosidade teve de dar as mãos à persistência e à lucidez na análise dos efeitos e sobretudo das causas da miséria humana, a cooperação com outros povos na área da saúde, principalmente em acções de ajuda de emergência, reabilitação e desenvolvimento, foi-se associando, na vida da AMI, a outras tarefas: difusão de informação e sensibilização para a mobilização de voluntários, apoio ao desenvolvimento de ONG’s fora do país ou ainda criação e organização, entre nós, de centros sociais de apoio a franjas populacionais empobrecidas e em risco de exclusão.

Por tudo o que a AMI e os seus voluntários já fizeram e vão, seguramente, continuar a fazer neste domínio da intervenção humanitária sem fronteiras, quero deixar aqui a minha sincera homenagem.

Meus caros Amigos:

Há, entre os teorizadores das sociedades contemporâneas, uma discussão sobre se, na era da internacionalização da economia e da globalização das relações sociais, houve, de facto, uma multiplicação e agravamento de riscos e de ameaças à vida dos cidadãos, ou se, pelo contrário, a impressão que a esse respeito vamos colhendo não será, afinal, o resultado de se terem expandido à escala global os fluxos informacionais sobre esses mesmos riscos e ameaças. Por outras palavras: foram os factores de sofrimento que se agravaram objectivamente ou terá sido a percepção desses factores que se generalizou e se tornou mais aguda?

Sem querer dar uma resposta definitiva a esta interrogação, há um ponto que faço questão de acentuar, enquanto cidadão preocupado, desde sempre, com as injustiças e arbitrariedades sociais e enquanto responsável político convicto de que são ténues as fronteiras entre os problemas das pessoas, dos povos e da humanidade.

Esse ponto é o seguinte: seja qual for o efeito específico que a mediatização possa ter na amplificação subjectiva da miséria nas nossas sociedades, não é aceitável que, num tempo em que o potencial de desenvolvimento do conhecimento e das tecnologias e a acumulação de recursos económico-financeiros atingem patamares excepcionalmente elevados, se mantenham sinais tão evidentes de pauperização, de fome, de doença e de violência mortífera, quer em regiões vastíssimas do mundo que continuam a passar ao lado da globalização e do crescimento económico, quer no seio das próprias sociedades ditas desenvolvidas e afluentes.

Não é esta uma tragédia que se meça apenas em termos de carências alimentares ou de incidência de patologias e mortes – embora estas não possam senão suscitar uma indignação militante. Essa tragédia tem de ser avaliada também em função das consequências destrutivas que acarreta no plano dos limiares mínimos de afirmação da cidadania, as quais vêm roubando a milhões de seres humanos e a povos quase inteiros o exercício da liberdade e o direito a uma auto-determinação efectiva.

Tenho consciência de que a erradicação das formas mais iníquas da miséria social no mundo exige medidas de fundo integradas à escala planetária.

Trata-se, antes de mais, de fazer com que todos os países cumpram compromissos já assumidos em matéria de ajuda ao desenvolvimento; impõe-se depois alterar substancialmente as lógicas de funcionamento e algumas grandes orientações das instâncias encarregadas de regular a economia global, avançando eventualmente para formas de tributação transnacional capazes de gerar fundos para o apoio ao desenvolvimento das regiões mais marcadas pelos círculos viciosos da pobreza.

São passos decisivos que, entretanto, não dispensam o aperfeiçoamento e consolidação de acções que actualmente já se desenvolvem no âmbito da ajuda de emergência a populações e povos com grandes carências e níveis insuportáveis de sofrimento.

Não referi – talvez por me parecer óbvia – a urgência de instalar e difundir, nos centros de decisão mais influentes à escala planetária, como nos circulos informais de cidadãos, uma cultura de paz, de abertura solidária ao Outro Diferente, de partilha multilateral de responsabilidades na acção – uma cultura humanista de vocação planetária.

Organizações como a AMI têm a particularidade de, através da sua acção prática – que é em si mesma um contributo notável para atenuar o sofrimento onde quer que ele se manifeste -, difundirem, ainda que por pequenos passos, a cultura de paz e de solidariedade que se impõe em sociedades permanentemente acossadas pelos impulsos práticos e os engodos ideoógicos da competitividade.

Foi por isso, foi também por isso, que aqui vim deixar um abraço de reconhecimento e de estímulo. Precisamos todos da AMI – a AMI pode contar connosco.