Discurso proferido por Sexa o PR por ocasião da Conferência proferida na Universidade de Comunicações da República Popular da China

Pequim, China
13 de Janeiro de 2005


Quero agradecer o convite da Universidade de Comunicações da República Popular da China, que muito me honra, para me dirigir aos seus professores e aos seus estudantes.

Devo dizer que tenho procurado, nas minhas visitas oficiais ao estrangeiro, ir às universidades e aos institutos e falar, sobretudo, com as novas gerações. Para mim, tem sido uma experiência importante contactar tantas pessoas interessantes, com visões da realidade e do futuro muito diferentes.

Tenho, por isso, um grande prazer em conhecer a vossa universidade, que tem a importantíssima tarefa de formar os quadros da comunicação social para a China do século XXI, e com a qual vamos hoje assinar um protocolo para o estabelecimento de um Centro de Língua Portuguesa.

Ao dirigir-me a este vasto auditório, repleto de estudantes, muitos dos quais seguirão a carreira do jornalismo, gostaria de começar por dizer que a comunicação social desempenha um papel fundamental nas sociedades modernas.

Uma das facetas mais importantes do actual ciclo de globalização tem sido a enorme expansão da comunicação. O rapidíssimo desenvolvimento tecnológico — de que temos sido testemunhas privilegiadas — abriu possibilidades extraordinárias de obtermos uma informação completa e, muitas vezes, imediata e directa, sobre eventos de carácter nacional e internacional.

Vivemos pois, na idade da comunicação e da informação. Por isso, mais do que espectadores ou analistas, os profissionais da comunicação social serão, cada vez mais protagonistas. Serão interlocutores, formadores de opinião, serão os olhos e ouvidos de milhões de pessoas aqui na China e no resto do Mundo, o que representa uma grande responsabilidade mas, ao mesmo tempo, um grande estímulo.

Quero deixar, por isso uma palavra de incentivo e de felicidades para todos vós.

Minhas Senhoras e meus Senhores

O tema que irei hoje abordar - Portugal, a Europa e a China - é imenso e excede largamente as minhas competências.

A reflexão de um político, mesmo quando os anos começam a contar, costuma estar mais virada para responder aos problemas do Estado, às questões do desenvolvimento e às expectativas das pessoas. Nesse sentido, é uma reflexão demasiado conjuntural para um tema com uma carga histórica e cultural tão densa: o relato dos encontros entre Portugal e a China obriga-nos a regressar a Quinhentos e às viagens dos navegadores portugueses e europeus, a questão do diálogo entre as civilizações chinesa e ocidental é inesgotável, a prospectiva das relações entre a China e a Europa obriga-nos a uma nova filosofia da política internacional.

As únicas credenciais de que me posso valer são as que resultam de uma experiência relativamente longa de contactos políticos com os principais responsáveis chineses, nomeadamente durante os meus dois mandatos como Presidente da República. Essa experiência, que me ensinou muito, concentrou-se, numa primeira fase, na questão de Macau e na sua transição, um processo muito complexo que exigiu uma atenção constante dos dirigentes portugueses e chineses ao mais alto nível. Numa segunda fase, as nossas obrigações voltaram a ter como prioridade natural as relações entre os dois Estados e, num quadro mais largo, também a evolução das relações entre a União Europeia, de que Portugal é membro de pleno direito, e a República Popular da China.

Espero que as lições da política e da diplomacia me possam inspirar para partilhar convosco, com grande informalidade, duas ou três palavras sobre as relações entre Portugal, a Europa e a China.

Justamente, há mais de quatrocentos anos, foi um estudioso português, Frei Gaspar da Cruz, quem ensinou aos Europeus que, no reino do grande Imperador Ming, se comunicava pela escrita e não pela palavra, uma diferença significativa entre as nossas civilizações. Esse viajante emérito trouxe para Portugal uma soma impressionante de relatos sobre a administração, a sociedade e os costumes da China e dos Chineses e escreveu aquele que é considerado como o primeiro livro rigoroso e fiável sobre a China publicado na Europa, por volta de 1570.

É perfeitamente natural ter sido um português o autor desse livro, o Tratado das Coisas da China, que representa um marco histórico no encontro de duas grandes civilizações. Portugal foi o primeiro Estado europeu a estabelecer relações diplomáticas oficiais e continuadas com o Império chinês, a partir do século XVI, tal como foi por seu intermédio que se agenciaram as primeiras missões científicas e religiosas europeias que chegaram a Pequim, no tempo do grande Imperador Qing, e foi a partir dos seus entrepostos que inicialmente aportaram à China outras embaixadas dos soberanos europeus à corte imperial, até ao século XVIII.

As relações entre Portugal e a China não se distinguem só pela sua antiguidade e pela sua longevidade. Para mim, o facto de nunca ter havido uma guerra entre os dois Estados é igualmente importante e marca um padrão histórico. Mesmo, ou sobretudo, nos momentos mais difíceis, Portugal e a China procuraram sempre os terrenos possíveis para o entendimento recíproco, sem o qual as relações políticas e culturais, bem como o seu comércio e a segurança das comunidades, podiam ser prejudicados.

Essa tradição sobreviveu a múltiplas crises e criou um fundo de confiança, que se revelou inestimável quando, depois de um curto intervalo, foi possível recomeçar uma nova relação com a República Popular da China, que completa agora vinte e cinco anos, depois do estabelecimento de relações diplomáticas oficiais, em 1979.

Sem essa confiança, que vem da memória do passado, talvez não tivesse sido possível tratar da questão de Macau, num quadro rigoroso de estrita defesa dos direitos e dos interesses do Território e das suas gentes, por um lado, e dos dois Estados, por outro lado. Portugal e a China demonstraram não apenas a sua maturidade política, como um empenho comum na definição de quadros de cooperação política e diplomática modernos, assentes no direito.

Esse empenho comum na construção de formas inovadoras de cooperação entre os Estados, de que é exemplo a fórmula "um país, dois sistemas" e a sua tradução original na constituição da Região Administrativa Especial de Macau, bem como a subordinação de ambos os lados às normas e aos princípios do direito internacional e do respeito pela dignidade da pessoa humana, são parte integrante das relações entre Portugal e a China e das relações entre a União Europeia e a China.

As relações entre a União Europeia e a China são um marco estratégico incontornável da política internacional.

São relações complexas, onde se combinam, por um lado, as dimensões políticas, económicas e estratégicas e, por outro lado, os múltiplos níveis em que se articulam as relações bilaterais, multilaterais e inter-regionais. Nesse quadro estão incluídas as relações entre a República Popular da China e cada um dos Estados membros da União Europeia e as relações entre a União Europeia e a China, as quais, por sua vez, estão, naturalmente, no centro das relações entre as duas principais regiões do pós-Guerra Fria, a Europa Ocidental e a Ásia Oriental.

Desde logo, os números revelam, sem margem para dúvidas, a crescente importância, quer para a China, quer para a União Europeia, das relações sino-europeias, bem como a sua dinâmica constante, nos últimos vinte e cinco anos.

O valor das trocas comerciais entre a União Europeia e a China, multiplicou-se por quarenta, desde o inicio das reformas, em 1978. Entre 1999 e 2003, esses valores duplicaram, com as exportações europeias a aumentar de 19 para 41 mil milhões de euros e as importações de 52 para 105 mil milhões de euros. A China passou a ser o segundo maior parceiro económico da União Europeia, logo a seguir aos Estados Unidos, e a União Europeia é o maior parceiro da China, desde o ano passado. A Europa é o principal exportador de tecnologia e equipamentos para a China, bem como um dos principais investidores na sua economia. Em 2003, o investimento externo directo da União Europeia na China chegou aos 35 mil milhões de dólares.

Paralelamente, o número de chineses que visitam a Europa mostra um crescimento exponencial, com uma previsão para este ano de 600 mil turistas, que podem viajar no quadro dos acordos entre a União Europeia e a China.

Mais importante, há cem mil estudantes chineses inscritos nas universidades e nos institutos do ensino superior europeus e milhares de europeus nas universidades chinesas. O futuro das relações entre a Europa e a China está nas suas mãos.

As relações entre a União Europeia e a China estão institucionalizadas, nomeadamente com a realização de cimeiras regulares ao mais alto nível, que reputo muito importantes. A última cimeira bilateral, que se realizou em Dezembro de 2004, contou com a participação do Primeiro Ministro chinês e do Primeiro Ministro da Holanda, bem como do novo Presidente da Comissão Europeu, que é, pela primeira vez, um antigo Primeiro Ministro de Portugal.

Nesse quadro, a União Europeia e a China definem os seus vínculos como uma "parceria estratégica", uma designação formal que sublinha as boas relações entre as duas partes, extensiva, aliás, ao conjunto dos Estados membros da União Europeia, incluindo Portugal, nas suas relações bilaterais com a China.

Na minha opinião, essa "parceria estratégica" precisa de uma ambição política, e essa ambição deve ser construída a partir do empenho comum numa nova filosofia das relações internacionais. A regra da cooperação bilateral e multilateral entre os Estados que subordinam as suas estratégias ao respeito pelo direito internacional e pelos direitos humanos pode prevalecer sobre os velhos cânones da guerra e da violência inter-estatal. Quando a guerra, nos tempos modernos, passou a significar destruição total, tem de deixar de ser uma alternativa para os Estados responsáveis, excepto no exercício do direito de legitima defesa.

Não se trata de uma utopia, nem de um projecto irrealista. Pelo contrário, pode referir-se a exemplos concretos, mesmo nas relações entre a Europa e a China, como é o caso, entre outros, da experiência adquirida por Portugal e pela República Popular da China em Macau.

A política internacional está numa encruzilhada.

Desde o fim da Guerra Fria, as relações entre as grandes potências entraram num período de tranquilidade excepcional, que creio ter sido decisivo para o crescimento e o desenvolvimento político e económico tanto da União Europeia, como da China. A democratização, a abertura económica, a regulação multilateral dos conflitos entre os Estados e a segurança cooperativa são as características mais notáveis desses períodos. Porém, todos reconhecemos que persistem factores de tensão e de conflito latentes que podem, muito rapidamente, interromper esse período de paz e provocar uma escalada internacional.

Os ataques terroristas de 11 de Setembro, que todos condenámos com a maior veemência, criaram uma nova situação. Desde logo, de uma forma dramática, revelaram o terrorismo internacional como uma ameaça terrível, que tem de ser neutralizada, por todos os meios. Por outro lado, o combate contra os movimentos terroristas passou a exigir uma coordenação dos esforços de todas as grandes potências, cuja concertação se tornou obrigatória num domínio de segurança crucial. Pela primeira vez, os Estados Unidos, a União Europeia, a China e a Rússia estão empenhados, solidariamente, nessa luta. Por último, contra as previsões iniciais, as consequências do 11 de Setembro, e a intervenção no Iraque, abriram um debate sobre o sentido da evolução da política internacional.

A hegemonia de uma grande potência não é uma estratégia realista no nosso tempo e é uma estratégia inviável para a democracia norte-americana, cujos momentos imperiais foram sempre de curta duração. Ninguém, nem os ideólogos mais radicais, admite seriamente que os Estados Unidos podem desempenhar uma função como garantes da estabilidade internacional fora de um quadro de concertação e sem o apoio decisivo das instituições multilaterais, a começar pelas Nações Unidas e pelo seu Conselho de Segurança, sem o qual a legitimidade internacional das políticas norte-americanas continuará a ser posta em causa.

A formação de uma aliança heterogénea para conter a preponderância dos Estados Unidos também não é uma estratégia realista e, para Portugal e para o conjunto dos países europeus, é uma estratégia absurda, uma vez que os Estados Unidos são nossos velhos aliados, fundadores da Aliança Atlântica. Não creio, de resto, que, para lá das divergências naturais, nenhuma das outras grandes potências internacionais tenha como estratégia opor-se aos Estados Unidos, cuja posição é indispensável para a edificação de uma ordem internacional mais segura e mais justa.

A China e a União Europeia também são indispensáveis para a formação de um novo modelo de ordenamento internacional, e podem trabalhar em conjunto nesse sentido. As relações entre a União Europeia e a China não incluem nenhum factor de competição estratégica, nem nenhuma questão polémica que possa desencadear hostilidades entre as duas partes. Pelo contrário, as suas relações directas, tal como as relações entre a China e cada um dos Estados membros da União Europeia, são marcadas pela concertação política, que não exclui nenhuma questão internacional, e pela complementaridade económica, que também não deve excluir nenhuma dimensão relevante.

É nesse quadro que se pode começar a construir uma ambição política que possa projectar as relações entre a China e a União Europeia na construção de uma sociedade internacional.

Sei que a visão de uma sociedade internacional é europeia e ocidental na sua origem. Na Europa Ocidental, foram necessárias duas guerras devastadoras para os antigos inimigos baixarem as armas e começarem a edificar, com a integração europeia, uma ordem pacifica. Essa ordem assenta num modelo de liberalismo institucional que removeu a ameaça da guerra e a própria ameaça do recurso à força das relações entre os Estados membros da União Europeia e assegura a resolução dos seus conflitos de interesses num quadro de normas previsíveis e de procedimentos institucionais. Hoje em dia, é impensável uma guerra entre os Estados da União Europeia.

Mas encontro o mesmo espírito de procura da ordem na rejeição da violência despótica nas passagens admiráveis de Gaspar da Cruz sobre a ética confuciana do bom governo e da boa administração. Nesse sentido, creio que todos podemos partilhar o desígnio da formação de uma sociedade internacional bem ordenada.

O essencial desse modelo é, como disse, a subordinação dos Estados às normas de um direito comum e aos procedimentos das instituições comuns. O essencial dessa construção é uma vontade comum dos Estados que querem defender a sua dignidade, proteger a sua segurança e garantir os seus interesses em quadros de cooperação institucionalizados, bilaterais e multilaterais. O essencial desse desígnio é a determinação comum de impor uma paz duradoura nas relações entre os Estados.

É essa visão que pode transformar a parceria estratégica entre a União Europeia e a China num passo decisivo para a construção de um novo ordenamento internacional, onde todas as grandes civilizações possam partilhar os seus valores e todos os homens possam viver em paz.