Discurso proferido por SEXA o PR por ocasião da Sessão Solene de abertura do Ano Judicial

Supremo Tribunal de Justiça
27 de Janeiro de 2005


Excelências,

Minhas senhoras e meus senhores,

Antes de mais, uma palavra de solidariedade e conforto para o Senhor Conselheiro Aragão Seia, que vive horas de enorme sofrimento, e a quem endereço, desta Casa a que ele tão dignamente tem presidido, os melhores votos.

A todos os da Justiça, sejam magistrados, advogados, solicitadores ou oficiais, renovo, nesta abertura do ano judicial de 2005, o apelo para que tenham sempre as suas funções como serviço da comunidade e da República, que sem o contributo de todos será mais árduo o caminho para o Estado de direito democrático.

Caminho que ainda é longo. Por isso, não pode tardar.

Minhas senhoras e meus senhores,

Oito anos a fio - desde 22 de Janeiro de 1997, quando, pela primeira vez, presidi, nesta Casa, à abertura do ano judicial -, dei voz às interpelações dos portugueses, na busca de mais, melhor e mais pronta Justiça.

Algumas vezes terei sido ouvido. Mas não tanto, que possa, nesta hora e nesta sede, descansar nos caminhos percorridos, e dispensar-me de continuar a dar voz aos portugueses, na legítima pretensão de um sistema judiciário que lhes garanta, além do mais, liberdade, segurança, propriedade e emprego.

O momento é singularmente propício.

Antes de mais, porque estamos prestes a entrar em campanha eleitoral, onde se exige aos partidos concorrentes que apresentem ao eleitorado a sua leitura da forma e das fórmulas para realizar a reforma da Justiça.

Depois, porque nas propostas já apresentadas, se detectam, desde já, áreas comuns de intervenção e apreciável coincidência de soluções, com o que isso indicia de âmbito possível de concertação e de consenso; e, apurados os votos, de reforçada legitimidade para executar os modelos propostos.

Impõe-se, todavia, ir mais longe - na ambição e no projecto. Para que a Justiça não se confine à gestão da conjuntura e entre no século XXI; de tal modo e em tal ritmo, que na legislatura que agora se abre, tenha, finalmente, a reforma por que temos ansiado.

Não se pense, todavia, que se trata de partir do zero e de fazer tábua rasa de tudo quanto existe. Ou que se deva recusar aos vários Governos uma palavra de apreço por tudo quanto realizaram.

No acervo destes trinta anos, muito terá de ser mantido e muito terá de ser compatibilizado, para que a Justiça se cumpra.

Minha senhoras e meus senhores,

Os tempos são, e terão de continuar a ser, de austeridade e de contenção orçamentais. Realidade tanto mais exigente, quanto a reforma da Justiça não se faz sem maior despesa e sem maior investimento, aí onde são escassos os meios materiais, e deficitários alguns quadros, sejam de magistrados, sejam de funcionários, sejam de polícias.

Impõe-se, por isso, começar pelo princípio, e repensar, sem delongas, a organização do território judiciário, para que a localização e a dimensão dos tribunais, realizando uma sempre desejável Justiça de proximidade, sejam compatibilizadas com as reais necessidades de cada zona e com uma sensata repartição dos recursos disponíveis.

Para isso, torna-se necessário que o Estado central sensibilize as autarquias, e as autarquias as populações; e nesse esforço, se faça uma abordagem racional e solidária das questões da Justiça, e se abatam os egoísmos locais que, década a década, têm ditado tantas das opções na localização e construção de tribunais, sem real benefício para ninguém e de certo com prejuízo para todos nós.

A reafectação de meios e de pessoas assim libertas permitirá contribuir para que se dê resposta suficiente às zonas de maior e mais efectiva pressão de pendências, e, por essa via, realizar Justiça mais pronta, sem maiores gastos, deixando o acréscimo de despesa e de investimento para as áreas cuja eficácia não se basta com a mera reordenação e racionalização de lugares e de procedimentos.

Mas não chega repensar o território.

Começar pelo princípio importa, também, rever a organização e o funcionamento dos tribunais, incluindo os superiores.

E isso passa, necessariamente, pela sua gestão profissionalizada por quem tenha habilitações curriculares e experiência para o efeito; pela contingentação de processos; pela distinção rigorosa entre, por um lado, julgar e, por outro, realizar as demais funções e actos processuais; e nos tribunais superiores, por uma reponderação do regime de recursos.

Aqui, como em quase tudo, importa ter em conta as lições do direito comparado e as experiências judiciárias dos países com melhor desempenho nesta área, para que a garantia que o recurso constitui seja sempre respeitada, mas sem os abusos a que, tantas vezes, dá lugar, e em que os primeiros prejudicados acabam por ser os próprios recorrentes – em custas e em honorários.

Será, então, possível redimensionar os tribunais superiores e agilizar as suas regras de funcionamento. Para que eles em vez de obedecerem, tantas vezes, a uma lógica de corporações e de profissões, sirvam, antes de mais, a comunidade.

Importa, todavia, não esquecer que a reforma da Justiça também passa por se empreender, sem receios, nem crispações, uma serena e alargada reflexão política e cívica sobre as magistraturas, seu governo e legitimação democráticos, e sobre as condições de acesso e de exercício da advocacia.

Aqui, como em todas as coisas da nossa liberdade e da nossa segurança, ninguém é dono de nada, e todos, cidadãos que somos, temos uma palavra a dizer.

Desde logo, que fique bem claro: a autonomia do Ministério Público e a independência dos juizes são valores inalienáveis da nossa democracia. E como tal têm de ser tratados.

Mas fique bem claro também que a pior maneira de os defender e preservar é a pretensão de que o actual sistema de governo das magistraturas, de classificação e responsabilização dos magistrados, de acesso aos tribunais superiores, de definição da política criminal, ou de acesso à advocacia e seu exercício, constitui a quinta-essência dos sistemas; e que, por isso, qualquer intenção reformadora só pode ser tida como um ataque do poder político à independência dos juizes, à autonomia do Ministério Público, ao exercício livre da advocacia.

Não contem com o Presidente da República para abalar, por qualquer forma, a independência dos tribunais. Mas ninguém espere dele que a confunda com imobilismo e aceite ver a independência dos tribunais tratada como direito de classes profissionais, quando a sua única razão de ser é o serviço de todos nós.

É por isso que sobre a independência e autonomia das magistraturas e sobre o estatuto dos advogados nos sobra a todos, cidadãos, legitimidade para dizer uma palavra.

Minhas senhoras e meus senhores,

Constitui um lugar comum da difícil situação que o país atravessa falar de qualificação profissional, incluindo a formação permanente.

A Justiça não é excepção. E isto quando, no geral, não está em causa, nem em crise, a formação académica nas disciplinas jurídicas. Trata-se, sim, de ensinar a fazer, de agilizar nas melhores práticas com respeito pela ética profissional e social, de apetrechar os profissionais do foro com as técnicas de organização e realização do trabalho, e de gestão do tempo, sem os quais o desempenho não poderá ser eficiente, nem responder às necessidades actuais de administração pronta e equitativa de Justiça.

Neste quadro, o processo de Bolonha pode constituir uma magnífica oportunidade para reformular o ensino do direito, de modo a que os currículos se adaptem às novas exigências, aos novos ramos e aos novos saberes, e se criem condições para o estabelecimento de um tronco comum de formação das profissões forenses, a que, nos últimos anos, me tenho referido continuadamente.

É que o bom desempenho dos tribunais passa por uma estreita cooperação entre os agentes da Justiça, que depende, de um modo cada vez mais incontornável, de uma saudável compreensão e aceitação, por cada um, da posição e funções do outro, compreensão e aceitação que só ganham em ser alicerçadas numa aprendizagem comum, onde a interiorização dos valores e abordagens próprias de cada profissão seja feita sob o mesmo tecto e em comunidade de vida escolar, com a sedimentação que daqui sempre pode decorrer.

É ainda o tronco comum de formação que permitirá garantir que todas as profissões forenses partilhem, no essencial, uma mesma concepção do nosso ordenamento jurídico, designadamente no que respeita aos direitos, liberdades e garantias, para que a necessária eficácia do sistema se não faça à custa dos valores fundamentais protegidos pela Constituição da República.

Uma nova abordagem da formação terá, necessariamente, consequências nas condições de acesso à advocacia, no seu regime do estágio, na maior exigência e responsabilidade quanto à prática e quanto ao reforço da deontologia profissional.

Também aqui importará repensar o governo da Ordem dos Advogados; e como associação pública que é, ponderar-se os termos e condições em que a sociedade civil e as outras profissões forenses deverão, ou não, ter parte nas questões do acesso e da disciplina e, por essa via, alcançar-se um melhor patamar de isenção e eficiência.

Minhas senhoras e meus senhores,

Melhor organização judiciária, melhor regime e melhor formação das profissões forenses, são momentos essenciais de uma reforma da Justiça.

Mas é preciso, também, que se criem condições para a Justiça prestar contas. E isto porque, salvo quanto à Assembleia da República e quanto ao Governo, não existem sede, nem meios institucionais próprios, de os responsáveis por cada sector darem nota pública do seu andamento e por ele se responsabilizarem.

Importa sublinhar aqui que não é por se ter de prestar contas que se alteram as condições de acesso às magistraturas ou o seu governo; ou que por essa via se modifica o regime de classificação e colocação de magistrados, ou a progressão nas respectivas carreiras.

Nem prestar contas significa dizer qual o sentido, em cada caso, da actuação do Ministério Público; ou, em todos os casos, das decisões dos juizes.

E por ter de prestar contas, não será o Ministério Público menos autónomo em cada promoção, nem o juiz menos independente em cada sentença.

Entenda-se de uma vez por todas: no prestar de contas não fica em crise a independência dos tribunais; a democracia é que fica apoucada se os responsáveis pela administração judiciária não tiverem sede própria para o fazer.

Tudo parece assentar numa inaceitável desconfiança para com os titulares dos cargos políticos, que, pelas piores razões, quereriam tomar de assalto a cidade judiciária, que só os agentes da Justiça saberiam e poderiam defender.

Ora não é assim.

Uma coisa é ter a prudência de instituir um regime que previna intromissões e abusos, outra é, a pretexto desse regime, manter uma situação em que ninguém é efectivamente responsável por nada.

É nesse quadro que também importará discutir o princípio da oportunidade; e é ainda nele que, sob controlo da Assembleia da República, terá de determinar-se os termos em que o Ministério Público poderá receber instruções genéricas sobre a política criminal que, segundo a Constituição, lhe cabe executar. Executar, lembro, e não definir.

E tudo isto à vista de todos, para que se acautelem tentações e se desfaçam desconfianças.

Não pode é ter-se, pela carência de pessoas e de meios, um óbvio e inafastável estabelecimento casuístico de prioridades na perseguição criminal, que ficam ao critério de cada um e que ninguém controla, tendo com resultado último a vigência prática e desordenada do princípio da oportunidade.

Não pode é atribuir-se à Assembleia da República e ao Governo a responsabilidade de definição da política criminal, como faz a Constituição, e seguir-se um vazio de regras e de práticas que fazem do preceito constitucional letra morta.

Tudo isto tem de ser debatido com serenidade e elevação, sem inquinar o diálogo com anátemas e processos de intenção, aí onde ninguém é dono da verdade, nem tem o exclusivo da recta intenção e do cuidado do interesse público.

Minhas senhoras e meus senhores,

Os acontecimentos judiciários dos últimos dois anos trouxeram para o debate público diário alguns dos temas fundamentais do nosso sistema judiciário e das regras por que se rege.

Revisitando estes oito anos de intervenções na abertura do ano judicial, é-me grato verificar que as interpelações que, desde o primeiro momento, entendi dever fazer, seja quanto à morosidade processual, seja quanto aos direitos de arguidos e de vítimas, seja quanto ao regime da prisão preventiva e seus excessos, seja quanto ao segredo de Justiça, constituam, hoje, tema permanente da agenda política e mediática, com a saudável pressão que daí decorre para que as melhores soluções sejam encontradas.

Hoje já ninguém duvida da necessidade de adequar o processo penal às exigências de melhor protecção de arguidos e de vítimas; hoje, todos exigem reforço de garantias, aí onde a sua falta ainda se faz sentir, sobretudo, como tenho repetidamente sublinhado, na fase de inquérito; hoje, ninguém duvida da necessidade de eliminar procedimentos que, sob a aparência de garantias, não são mais do que inaceitáveis entraves a uma justiça célere e equitativa, como os referidos acontecimentos dos dois últimos anos têm, exaustivamente, demonstrado.

Está, assim, aberto o caminho para as necessárias reformas.

Mas não é só a Justiça penal que exige revisão.

É preciso prosseguir, também, na adequação do processo civil às novas necessidades, privilegiando, de uma vez por todas, a oralidade, simplificando e reduzindo as formas de processo, cingindo os recursos ao essencial, e promovendo uma cultura da decisão célere, que evite adiamentos e resolva litígios, sem ter que se reproduzir páginas de doutrina e de jurisprudência, que nada acrescentam de verdadeiramente útil. Mas para isso é preciso que os magistrados tenham por certo que a apreciação do seu mérito não vai passar pela quantidade de autores citados, nem pelo número de notas de pé de página.

Impõe-se, por outro lado, que direito decidido não seja letra morta.

As sentenças, por mais sábias que sejam, não são para emoldurar, são para executar. E, por isso, não podem os poderes alhear-se da enorme inquietação que grassa nos meios forenses quanto ao regime da acção executiva, com a consequente obrigação de serem dadas públicas explicações sobre o facto e de se encontrar rápida solução para as disfunções existentes.

E para todas as áreas, importará reponderar o regime do apoio judiciário que a prática tem revelado não acautelar, suficientemente, a garantia de acesso ao direito, e que acaba por constituir uma viragem de quase 180º relativamente ao regime anterior, aí onde o sentido da medida e um mais escrupoloso respeito pela Constituição recomendaria melhor equilíbrio.

Minhas senhoras e meus senhores,

A definição e a execução de uma política de Justiça exigem meios, que o mesmo é dizer, despesa e investimento.

Já ninguém duvida que um dos obstáculos ao desenvolvimento da economia portuguesa é a falta de qualidade do nosso sistema de administração de Justiça. Está dito e redito por tudo quanto é consultor e autoridade na matéria.

Impõe-se, por isso, tirar desta evidência as necessárias consequências. E, nesse percurso, ver, com critério, onde se pode poupar para investir, sob pena de a poupança cega, pondo em causa o sistema de Justiça, comprometer em definitivo a própria consolidação orçamental. O que sendo contraditório com os louváveis objectivos da poupança, constitui um inaceitável absurdo político.

No investimento para a qualificação da Justiça, é preciso assegurar que não ficamos à mercê quer da criminalidade económica transnacional, quer da persistência de uma economia paralela, que nos defraudam, anualmente, uma e outra, em biliões e biliões de euros.

Mas para isso são precisos quadros e meios materiais para investigar; e Justiça célere para punir e desencorajar os infractores.

O mesmo se diga da corrupção, que os mesmos consultores e autoridades, num assomo de pudor, apelidam de informalidade.

Também aqui só mais quadros e meios materiais poderão abrir caminho seguro a um poder político que aposte em combater frontalmente o tráfico de influências e a corrupção, que contribuem de modo apreciável para a situação menor que temos de ultrapassar.

Minhas senhoras e meus senhores,

A enunciação da necessidade das chamadas reformas estruturais tem sido acompanhada, as mais das vezes, da afirmação de que o Estado se encontra assediado por corporações e grupos de interesses, que bloqueiam qualquer projecto de mudança. Então, dizem, toda a reforma estaria votada ao fracasso.

A experiência dos últimos anos impõe que se atribua algum crédito a esta afirmação. E por isso torna-se necessário que o poder político recupere a sua supremacia e estabeleça o quadro social de apoio que lhe permita contrariar o egoísmo das corporações e dos grupos de interesses.

Também na Justiça terá de ser assim, sobretudo quando existe um largo consenso político quanto ao diagnóstico e quanto à terapia, que, já nesta legislatura, parecia mostrar-se capaz de constituir base de apoio para a inadiável reforma.

Trata-se, todavia, de trabalho de fôlego, que não se esgota numa legislatura, nem pode ficar à mercê de zigue zagues de percurso.

E é por isso que a reforma da Justiça não é uma mera questão de maioria parlamentar e de coragem política de um Governo para afrontar interesses instalados e corporações, que, todos sem excepção, como o passado abundantemente evidencia, reagem e abrem frondas perante o menor sinal do que entendem ser uma perda de poder.

A concertação entre as forças políticas, porque se trata de execução a médio prazo, é uma condição de viabilidade da reforma da Justiça e de afirmação da supremacia do Estado num sector tão vital para o nosso desenvolvimento, para a nossa liberdade e para a nossa segurança.

Se as forças políticas associarem ao seu compromisso o dos representantes das várias profissões forenses, e a activa cooperação dos Conselhos Superiores das Magistraturas, então terão conseguido uma larga e útil base de apoio para um combate que é difícil e é moroso.

Meditem nisto os agentes políticos, com a certeza de que o Presidente da República tudo fará para que a reforma se realize, pese embora aos profissionais do desencanto, sempre prontos a regressar a Tormes, e a querer levar consigo o país inteiro.

Na construção do Estado de direito democrático não há lugar para desencantos. Realizá-lo é nossa obrigação indeclinável, para que a República se cumpra e a cidadania seja respeitada.