A Sociedade em Rede e a Economia do Conhecimento: Portugal numa Perspectiva Global, 5-6 Março 2005

Lisboa, Centro Cultural de Belém
05 de Março de 2005


No exercício do cargo de Presidente da República, tenho procurado, em diferentes ocasiões, dar a necessária expressão pública às principais questões que, num contexto económico e social global cada vez mais marcado pelos impactos das novas tecnologias da informação e da comunicação, se colocam a sociedades como a portuguesa.

Fosse esta uma mudança redutível, no essencial, às suas dimensões puramente técnico-comunicacionais, e talvez pudesse o Presidente da República limitar-se a assinalar, circunstancialmente, a espectacularidade das suas realizações mais óbvias.

Acontece que o tempo que já levamos em contacto directo com os efeitos da nova ordem tecnológica não deixa qualquer dúvida sobre a importância – que me atrevo a considerar civilizacional - das transformações sociais a ela associadas.

Para não falar senão em alguns domínios mais óbvios, como ignorar, por exemplo, que, com o informacionalismo, mudaram radicalmente, no conjunto das actividades económico-empresariais, os modos e os modelos de trabalho, seja nas instâncias de decisão estratégica, seja nas operações de mera execução técnica?

Como não perceber que a globalização flexível dos mercados financeiros, possibilitada e fomentada em permanência pela revolução digital, tem, hoje, influência directa na segurança de emprego de grande parte dos assalariados do mundo, nos padrões de mobilidade das populações, na geografia da fome e da doença?

Como não dar conta do impacto da Internet e dos meios de comunicação em tempo real na recomposição de rotinas, solidariedades grupais, práticas culturais e aspirações das gerações mais jovens?

Como, não notar, por outro lado, que o informacionalismo vem tocando, com efeitos precisos, os sistemas de valores, crenças e representações com que orientamos as nossas acções e aprendemos a pensar-nos a nós próprios e aos outros?

E não será verdade que a própria mobilização política em torno de grandes causas de dimensão planetária parece estar evoluindo em relação directa com o acesso a redes informacionais globais?

Finalmente, não será já bem perceptível que, quer os caminhos da criação artística, quer os do debate científico mais elaborado não dispensam, hoje, o recurso à capacidade de armazenamento de memória e de velocidade na transmissão de informação permitidas pelas novas tecnologias?

Compreender-se-á que, quem, como eu, já leva bastante mais de quarenta anos a pugnar pela efectividade do exercício das liberdades cívicas fundamentais e a interrogar-se sobre as possibilidades concretas de a democracia a si mesma se democratizar, tenha querido, enquanto Presidente da República, debater com alguma profundidade as oportunidades de aperfeiçoamento da vida democrática e da participação cívica permitidas pelas novas tecnologias.

Foi essa preocupação que esteve na base do Debate que há já alguns anos promovi, neste mesmo local, sobre as incidências da revolução da tecnologia da informação na qualidade dos sistemas democráticos.

Gostaria de sublinhar o facto de, nessa altura, se ter optado por problematizar conjuntamente novos e antigos media, retomando, a pretexto da democracia electrónica, da internet e da generalização do acesso às NTIC’s, os velhos problemas de relacionamento entre campo político e campo mediático com que as democracias se confrontam.

Em sociedades de transição como a portuguesa, mais ainda do que noutros contextos nacionais, impõe-se enquadrar o movimento de modernização técnico-económica no conjunto de determinações histórico-sociais em que ele surge. Tais determinações são, na verdade, em muitos casos, fonte de inércias, de configurações paradoxais ou de formas verdadeiramente inéditas que convém não diluir no conjunto das grandes tendências emergentes.

Ora, num País que, tendo acedido tarde à democracia política e à liberalização dos media, está longe de ter conquistado patamares consistentes de auto-regulação nos espaços institucionais em causa, não faria qualquer sentido procurar perspectivar as possibilidades de aprofundamento da democracia por via electrónico-digital, sem atender e problematizar o campo da comunicação social convencional.

É ainda a mesma precaução metodológica que me tem levado a não querer encarar as questões do desenvolvimento tecnológico e da inovação empresarial em Portugal, sem simultaneamente prestar a necessária atenção quer à especificidade do nosso tecido produtivo, nomeadamente ao peso que nele têm as indústrias ditas tradicionais, as pequenas e muito pequenas empresas, a economia informal e os modelos técnico-organizacionais pré-taylorianos, quer aos pesados défices de literacia, cultura experimental e de inovação enraizados na sociedade portuguesa.

Devo acrescentar, quanto a este último ponto, o seguinte. Se é verdade que esta abordagem não descontextualizada do desenvolvimento e da inovação me tem protegido de visões demasiado ingénuas quanto às possibilidades de mudar a economia e a sociedade a partir de impulsos tecnológicos concentrados no tempo, certo é também que não deixou de me trazer surpreendentes fontes de optimismo. Refiro, a título de exemplo, a descoberta de que, em Portugal, tem havido, em sectores industriais tradicionais fortemente expostos à concorrência internacional, e em espaços territoriais sem tradição de associativismo empresarial, experiências notavelmente bem sucedidas de difusão organizada de novas tecnologias, de formação contínua, de generalização de inovação e de incremento sustentado de níveis de competitividade. O facto de ter podido dar alguma notoriedade pública a tais experiências no contexto de iniciativas que tenho dedicado aos problemas da modernização tecnológica e da inovação empresarial no País é, aliás, para mim, motivo de grande júbilo.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Para quem, como eu, tem a obrigação, dir-se-ia constitucional, de não fechar os olhos, nem a razão, aos processos sociais que mais profundamente marcam o quotidiano e limitam os horizontes existenciais dos seus concidadãos, tentar perceber o que são e para onde nos estão a levar o informacionalismo, a economia do conhecimento e a sociedade em rede é, antes de mais, um dever incontornável do ofício.

Acontece que é de tal modo vertiginoso o ritmo a que se desenvolvem esses fenómenos, e tão intenso também o esforço dos analistas para encontrarem interpretações ajustadas ao que se passa, que o cumprimento do dever de estar atento e perceber o que muda à nossa volta dificilmente se compatibiliza com o exercício de outras tarefas e obrigações.

Parar para pensar, de preferência na companhia dos que estão mais preparados para reflectirem com fundamentos teóricos e empíricos sólidos sobre o devir social, torna-se, nestas condições, uma exigência de elementar bom senso.

Pois bem: parar para pensar sobre os constrangimentos e oportunidades ao alcance da sociedade portuguesa no contexto global, foi o que decidi fazer, há já longos meses, tendo para isso contado com o apoio – que considero um verdadeiro privilégio – do Professor Manuel Castells, sem dúvida um dos mais brilhantes e reconhecidos teorizadores da mudança social na era digital.

Estou certo de que, nos dois dias de trabalhos que agora se iniciam, vai ser possível, graças à qualidade dos especialistas nacionais e estrangeiros presentes – cuja participação igualmente saúdo -, apresentar perspectivas actualizadas sobre as principais tendências de evolução em direcção à sociedade em rede. E isso sem perder de vista que tais tendências se concretizam, nos diferentes países e domínios da vida social, segundo ritmos e padrões muito diversificados.

Depois de ter completado a monumental obra de síntese que, na versão portuguesa, se intitula “A era da informação: economia, sociedade e cultura”, o Professor Manuel Castells conduziu em colaboração com o Professor Pekka Himanem, que igualmente nos honra com a sua presença, uma investigação sobre o modelo finlandês de transição para o informacionalismo e a sociedade em rede.

Para além do rigor que a caracteriza, esta pesquisa teve o condão de revelar de forma muito expressiva que, à semelhança do que, noutra altura, ocorreu com a passagem à sociedade industrial, o avanço para a sociedade de informação e para uma integração bem sucedida na economia mundial se pode fazer a partir de histórias e culturas diferentes, segundo combinatórias institucionais distintas e alcançando formas de organização social igualmente variadas.

Em claro contraste com os paradigmáticos modelos de sociedade de informação associados a Silicon Valley ou Singapura, o caso finlandês apresenta, entre outros particularismos, os que decorrem da presença na vida social de um Estado de Bem Estar forte e da afirmação, não menos marcante, de uma cultura, língua e identidade próprias. Beneficiando de elevados níveis de coesão social, de um sistema de regulação de relações de trabalho amplamente negociado, de fortes incentivos à formação e experimentação na área informacional, de uma intervenção sustentada do Estado na criação de condições infraestruturais para a diversificação e expansão da economia, a Finlândia é um bom exemplo de como um País com recursos limitados pode, num curto prazo de duas décadas, superar crises económicas difíceis e entrar no grupo das sociedades de informação mais competitivas.

Seria ingénuo admitir que, as análises e debates que vão preencher os dois dias deste Seminário, nos vão fornecer indicações práticas precisas sobre o modo de acelerar a transição portuguesa para a sociedade das redes informacionais. Face às temáticas anunciadas, estou, ainda assim, convicto de que sairemos daqui bastante mais apetrechados para prosseguir um trabalho sério a esse respeito.

Na reflexão a fazer, há alguns traços da sociedade portuguesa que, realisticamente, convém não perder de vista.

O mais preocupante de todos é, quanto a mim, o que se prende com os baixos níveis de escolarização e de literacia da população portuguesa. Em trinta anos de vida democrática, fizemos progressos importantes na generalização da escolaridade básica e a proporção de jovens que hoje acedem ao ensino superior não tem qualquer comparação com a que estava ao alcance dos portugueses durante a ditadura. Mas continuam a ser elevados os índices de insucesso escolar e de saída precoce da escola, o que coloca Portugal em posição particularmente desfavorável nas comparações internacionais sobre literacia, acesso a níveis de escolarização secundária e qualificação da população activa. Relativamente a outro vector do sistema educativo – o da formação ao longo da vida –, o diagnóstico não é mais optimista: com efeito, em associação com o analfabetismo literal ou funcional de tantos dos nossos adultos, são particularmente ténues os sinais reveladores de procura de formação profissional qualificante.

Perante este quadro, as perguntas que, honestamente, sinto dever fazer são as seguintes: com carências tão sérias em matéria de dotações em formação e capital escolar de base, faz sentido e será eficaz concentrar recursos em aprendizagens e programas de formação especificamente relacionadas com as exigências do informacionalismo? Será possível e politicamente aceitável queimar etapas, a pretexto, eventualmente, de que as gerações mais jovens se encontram relativamente bem apetrechadas para se inserirem nas redes informacionais? Ou será que, em matéria de qualificação de recursos humanos, a aposta na excelência conduz, hoje, necessariamente, numa sociedade em transição como a portuguesa, a exclusões inaceitáveis?

E passo a ocupar-me de uma segunda dificuldade relacionada com o tema em discussão - a que se prende com os baixos níveis de coesão (bem aquém das médias europeias) que caracterizam a formação social portuguesa.

Ao contrário do que alguns críticos insinuam, nunca o Professor Manuel Castells negligenciou, nas suas obras, as tensões excludentes associadas à globalização económica e à transição para a economia e sociedade informacionais. Fê-lo, nomeadamente, de forma bem expressiva, nas análises que propôs sobre o par mão de obra genérica/mão de obra auto-programável, mostrando até que ponto podem os referidos processos conter as sementes do desemprego de longa duração ou de segmentações irreversíveis nos mercados de trabalho. Parte da exemplaridade do caso finlandês é, por seu lado, imputada precisamente à especial eficácia do Estado de Bem estar na contenção das tensões excludentes a que acima aludi.

Ora, na sociedade portuguesa, que apresenta padrões de distribuição de rendimento bastante desequilibrados, o edifício institucional de protecção social, construído basicamente após a reinstauração da democracia, permanece lacunar e sem o grau de consistência exigido pelo controle sistemático dos riscos de precarização e marginalização associados à modernização tecnológica. Sabendo-se, por outro lado, que a disciplina financeira imposta pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento não permite vislumbrar melhorias significativas no nosso modelo de bem estar, não estaremos colocados perante dificuldades difíceis de ultrapassar?

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Dizem-nos os dados estatísticos relativos ao acesso às novas tecnologias da informação e da comunicação e à abertura às redes globais que a situação portuguesa revela, como em muitos outros domínios, défices e atrasos consideráveis, embora com incidência atenuada nas gerações mais jovens.

Por tudo o que atrás afirmei sobre as características do País, não estou convencido que o problema possa ser resolvido com uma abordagem voluntarista centrada no conjunto restrito de aspectos directamente captados pelos números e indicadores em causa. Mas também não partilho a ideia de que, enquanto não forem erradicados todos os outros bloqueamentos estruturais ao desenvolvimento, estejamos condenados a nada fazer em matéria de entrada na sociedade em rede e na economia do conhecimento.

Nestas circunstâncias, atrevo-me a perguntar: Por onde devemos caminhar? Que recursos e que sectores devemos privilegiar? Que etapas podemos – se é que podemos – queimar? Que exemplos convém adoptar como referência? Que fracturas importa evitar? Que calendários nos devemos impor?

Nesta intervenção, que espero não ter sido excessiva nem deslocada, deixei algumas reflexões sobre as dificuldades que uma sociedade como a portuguesa tem de enfrentar numa fase de viragem tão dramática e influente como aquela que hoje se configura diante de nós. Terão de ser os responsáveis políticos e os cidadãos portugueses os protagonistas fundamentais dessa mesma viragem. Entendo, contudo, na qualidade de Presidente da República, que os termos dos dilemas a enfrentar ficarão mais consolidados se todos pudermos dispor de conhecimento e informação seguros sobre as alternativas ao nosso alcance. A elevadíssima qualidade dos intervenientes neste Seminário dá-me total garantia de que nos próximos dois dias vamos poder aceder-lhes em quantidade e qualidade excepcionais.

Nessa medida, terminarei saudando e agradecendo veementemente aos ilustres conferencistas e demais participantes a amável aceitação do convite que lhes dirigi e, sobretudo, as lições que aqui nos vão deixar.

Saberemos, pela nossa parte, estou certo disso, integrá-las calorosamente nas redes de informações e de afectos com que, aproximando-nos cada vez mais do mundo todo, aprendemos a ver melhor o que nos é próprio.