Intervenção de Sua Excelência o Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, por ocasião do Encerramento do Colóquio: A Sociedade em Rede e a Economia do Conhecimento: Portugal numa Perspectiva Global, 5-6 Março 2005

Lisboa, Centro Cultural de Belém
06 de Março de 2005


Desejo reiterar a todos os participantes e ao Centro Cultural de Belém o meu reconhecimento pelo contributo que deram para a compreensão dos desafios, dos problemas e das oportunidades que a sociedade em rede e a economia do conhecimento colocam à sociedade portuguesa.

Passarei agora a enunciar algumas observações e sugestões que me foram suscitadas pelo desenrolar dos trabalhos:

1. As dificuldades que se colocam a Portugal são partilhadas por todos os outros Países, embora em graus diversos e segundo configurações muito distintas. Uma coisa parece certa: face aos dados de que dispomos, o avanço em direcção a sociedades em rede é imparável, pelo que não nos podemos alhear do processo em curso. Se há boas razões para se dizer que Portugal chegou tarde e de forma mitigada à era da industrialização, não parece aceitável que possa agora descrever um trajecto de modernização e desenvolvimento colocando-se de fora ou ao lado da revolução digital.

2. É erróneo pensar que são as inovações tecnológicas que, por si, determinam as mudanças sociais - ou mesmo civilizacionais - emergentes; ao invés, serão sempre as soluções organizacionais e os modelos institucionais que levarão à exploração das potencialidades que as tecnologias encerram. Neste sentido, a formulação de orientações políticas e sobretudo a tomada de decisões políticas no tempo certo e com base no conhecimento das tendências económicas e sociais em curso são absolutamente cruciais para estimular e monitorizar as mudanças necessárias.

3. O pleno aproveitamento das tecnologias da informação com vista à modernização das empresas, da Administração e do próprio Estado só pode ser feito, se antes forem postos em causa os principais bloqueamentos ligados aos modelos organizacionais e aos modos de funcionamento convencionais. Sem inovação organizacional, a inovação tecnológica não chegará a constituir factor de desenvolvimento e fonte efectiva de competitividade.

4. A participação do tecido empresarial nas redes globais, dentro de um objectivo estratégico de incremento sustentado da produtividade, não dispensa, num País marcado por importantes dualismos e assimetrias, a acção do Estado na criação de condições infraestruturais e de apoio à actividade produtiva, com especial atenção ao universo das pequenas e médias empresas.

5. Um uso adequado, por parte das administrações públicas, de redes informacionais flexíveis permite conferir ao serviço público níveis de transparência que garantem o melhor exercício da cidadania, uma maior responsabilização (accountability) da administração e a criação de um ambiente de confiança recíproca entre pessoas e instituições que necessariamente fortalecerá o exercício quotidiano da democracia.

6. O Estado tem especiais responsabilidades no desenvolvimento de tecnologias e redes informacionais em sectores cruciais para o bem estar e protecção das populações, tais como a saúde e a justiça. Melhorar a gestão, ganhar tempo e aumentar a qualidade da prestação do serviço devem ser, aqui, objectivos mobilizadores de todos os profissionais e organizações.

7. A passagem para a sociedade em rede impõe que a utilização das novas tecnologias seja vista, não como um fim em si mesmo, mas como um instrumento de utilização transversal. Daqui resulta ser indispensável manter como objectivo central das políticas públicas o acesso universal à educação básica e secundária de qualidade, sendo que o incremento dessa qualidade não pode deixar de passar, justamente, pela renovação de conteúdos e metodologias de ensino/aprendizagem sintonizadas com a revolução digital. Por isso, devem-se promover e difundir experiências exemplares de e-learning e e-teaching, o que obviamente, não pode significar fazer tábua-rasa do património educativo gerado ao longo dos anos pelo sistema de ensino.

8. Ainda em relação ao sistema educativo, torna-se necessário desenvolver a escolarização em áreas científico-tecnológicas deficitárias, nomeadamente através do estímulo à reorientação vocacional das raparigas para essas mesmas áreas. Também a formação profissional e a educação ao longo da vida constituirão peças decisivas da aproximação das populações aos limiares de competências exigidas pela economia do conhecimento. A este propósito, convém não esquecer que a chegada tardia da sociedade portuguesa à generalização da educação básica nos coloca perante o desafio de elevar os níveis de literacia de um vasto universo de adultos activos com níveis de instrução muito baixos.

9. Desenvolvem-se, hoje, sobretudo entre os mais jovens, formas de sociabilidade e modelos de produção e difusão cultural que antecipam um novo paradigma de criação baseado no digital. Este novo paradigma parece exigir, no mínimo, uma adaptação e flexibilização dos enquadramentos jurídicos até hoje prevalecentes no domínio da propriedade intelectual.

10. O alargamento do acesso às redes digitais, indispensável para que não se gerem novas formas de exclusão, pode passar pela consideração de oportunidades associadas a open source software, pelo que o acompanhamento de experiências como as que hoje se desenvolvem no Brasil pode revestir-se de grande interesse, designadamente numa perspectiva de promoção estratégica da língua portuguesa no mundo. Acompanhar o debate sobre directivas comunitárias sobre a regulação do acesso ao software é uma exigência indeclinável.

11. O modelo de Governação tem de se adaptar à necessidade de dar respostas a problemas que, sendo cada vez mais multifacetados, interdependentes e transversais, envolvem simultaneamente cidadãos cada vez mais informados e exigentes. Neste sentido, e em nome do reforço da transparência e da participação democráticas, é indispensável que se estimulem formas de acesso on-line interactivo a dados da administração legalmente não-protegidos.

12. A intervenção estratégica do Estado no desenvolvimento da sociedade em rede e da economia digital passa pelo reforço e aperfeiçoamento do sistema científico e tecnológico, através nomeadamente do incremento da despesa em I&D e do incentivo persistente e permanentemente avaliado à inovação tecnológica das empresas. Impõe-se ainda o apoio à internacionalização desse sistema, de forma a promover o acesso a redes globais de excelência, nomeadamente em áreas de investigação relacionadas com prioridades estratégicas do País.

13. Ao fim destes dois dias de trabalho, em que pude beneficiar da companhia e do convívio intelectual de grandes especialistas sobre os processos sociais de passagem a uma sociedade de redes informacionais globais marcadas pela flexibilidade, fico sem dúvida bem mais esclarecido sobre o alcance das mudanças que se perfilam à nossa frente. Com tantas e tão expressivas referências à transformação dos modos de vida, dos usos do tempo pessoal, familiar e profissional, à reconfiguração dos espaços urbanos, às formas de recomposição identitária – para não falar senão em alguns dos fascinantes temas que aqui foram abordados - fico com a impressão que há, de facto, um novo mundo em gestação a que não podemos virar costas. Ele será melhor ou pior, mais ou menos admirável, conforme formos capazes de ajustar os modelos e práticas da Democracia aos desafios que nos estão a ser colocados.