Alocução de sua Excelência o Presidente da República por ocasião da Sessão Comemorativa do Dia Internacional da Mulher

Palácio de Nacional da Ajuda
08 de Março de 2005


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Agradeço, em meu nome e no da minha mulher, a vossa presença.

Agradeço também à Senhora Professora Doutora Lígia Amâncio a importante análise sobre a situação da mulher portuguesa que aqui nos trouxe.

Acredito que a produção e a divulgação criteriosa do conhecimento acerca das desigualdades de género podem contribuir significativamente para a mudança de atitudes a seu respeito e, desse modo, para a democratização da nossa sociedade. Sem um alargamento permanente dessa base de informação, não será, aliás, possível definir políticas consistentes e eficazes nesta dimensão tão fundamental e delicada da cidadania. Quero aproveitar esta oportunidade para felicitar a Senhora Professora pela acção que tem tido neste domínio.

A defesa dos Direitos da Mulher é uma causa que sempre considerei decisiva numa perspectiva de genuíno aperfeiçoamento da Democracia e de desenvolvimento social equilibrado. Daí, ter decidido assinalar, a partir de 1997, o Dia Internacional da Mulher, não como um mero ritual, mas como forma de salientar a importância que atribuo à conquista efectiva, e não apenas formal, dos direitos das mulheres.

Disse nesse ano já longínquo que aos titulares do poder “estava confiada a avaliação concreta do estado da sociedade, no que diz respeito à prática de uma igualdade efectiva de direitos, à definição de políticas para a consagração dessa igualdade, à assimilação cultural das práticas sociais que lhe deverão estar associadas”.

Apesar de reconhecer os progressos que a democracia, também neste domínio, nos trouxera, parecia-me claro haver ainda um longo caminho a percorrer para, na nossa sociedade, ultrapassar estereótipos e esbater as desigualdades entre homens e mulheres. Nessa medida, considerei ser meu dever, como Presidente da República, contribuir para divulgar os resultados da análise rigorosa e integrada dos problemas em causa, colocando-os ainda, na medida do possível, num lugar destacado da agenda política.

Ao longo dos anos, procurei acompanhar a evolução da sociedade portuguesa neste domínio, tendo registado, como evoluções positivas, as que se prendem com conquistas emancipadoras das mulheres no plano jurídico, com o acesso a profissões que anteriormente lhes estavam vedadas, com a educação, onde representam a maioria dos diplomados pelo ensino superior, com a formação profissional.

Infelizmente, existem ainda muitos sectores em que são profundas as desvantagens das mulheres, nomeadamente no acesso a posições de destaque no sistema de poder económico e político, na vulnerabilidade ao desemprego, no risco de exclusão social e, sobretudo, no que diz respeito à divisão e partilha das tarefas na vida familiar. Existem práticas discriminatórias nos domínios do trabalho e do acesso ao emprego e persistem algumas práticas que penalizam a maternidade e as famílias monoparentais.

Apesar de alguns progressos a registar na vida política, tem-se verificado não serem ainda consistentes as trajectórias das mulheres portuguesas neste domínio em que os rituais, as práticas e os preconceitos desfavorecem ou penalizam a presença feminina. Seremos nós capazes de reflectir sobre esta situação e transformá-la? Seremos nós capazes de ultrapassar tabus que impedem uma análise realista e uma perspectiva crítica sobre as estratégias instaladas em matéria de avaliação e selecção dos protagonistas da política?

No balanço das situações negativas, há ainda a lamentar o problema da violência doméstica, de que continuam a ser vítimas sobretudo as mulheres. Trata-se de um grave problema, generalizado em todo o mundo, para cuja resolução têm sido, entre nós, concebidas estratégias e meios de apoio, mas onde é necessário prosseguir em termos de aprofundamento do conhecimento, da prevenção e da actuação correctora.

É de registar, entretanto, quão difícil tem sido o progresso ao nível da divisão de tarefas domésticas e da partilha de responsabilidades familiares.

Não encaro as desigualdades que afectam as mulheres como uma fatalidade. Daí que, no acompanhamento destas problemáticas, me tenha preocupado em conhecer estratégias e experiências positivas que hajam contribuído para a solução de alguns dos problemas que mais afectam as mulheres portuguesas. Nesta perspectiva, encontrei situações reveladoras de grande coragem e procurei valorizar ao longo destes anos (e não só no dia oito de Março) o trabalho de mulheres e homens que, ultrapassando preconceitos e estereótipos, abraçaram a causa da igualdade de direitos e oportunidades entre géneros.

Acredito que a mudança é possível. Mas, para isso, são necessárias políticas inovadoras e incentivos ao desenvolvimento de experiências que mostrem, de forma pedagógica, estratégias e caminhos concretos a seguir.

Para terminar a parte inicial da minha intervenção, sou levado a considerar, em termos sintéticos, que, decorridos oito anos desde que promovi a primeira comemoração do Dia Internacional da Mulher, e não obstante todos os avanços entretanto realizados, se mantêm razões para que seja uma preocupação dos políticos o modo como evolui este domínio da vida social.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Numa segunda parte da minha intervenção, quero prestar homenagem ao papel desempenhado pelas mulheres na sociedade portuguesa. Homenagem que pretende também ser um alerta para a necessidade de se conferir maior visibilidade ao trabalho por elas desenvolvido, o qual, sendo muitas vezes notável, permanece quase sempre desconhecido.

Neste aspecto, não posso deixar de chamar a atenção para a acção realizada em diversos sectores que têm tanto de discreto como de decisivo para o desenvolvimento e a coesão social.

Refiro-me, antes de mais, ao pilar da família, em qualquer das suas formas e modelos; em segundo lugar, à delicada área da saúde pública e familiar, onde as mulheres surgem como principais prestadoras informais e formais de cuidados; depois, ao papel que lhes está reservado enquanto principal sustentação da rede informal de assistência contra a exclusão social; depois ainda, na educação, como professoras e educadoras; ou como principais intervenientes nas situações de grande dependência; na prestação de inestimáveis serviços de proximidade ou, finalmente, na dinamização de projectos de desenvolvimento local e de iniciativas empresariais.

São intervenções muito diversificadas que constituem ponto de sustentação indispensável de modos de exercício prático da solidariedade a que alguns têm chamado “sociedade-providência”, por contraposição a formas mais institucionalizadas de protecção social que se integram na tradição do estado-providência ou estado de bem-estar.

Se, entretanto, considerarmos, por exemplo, a actuação das mulheres nas áreas sociais, vemos que ela se caracteriza quase sempre por grande invisibilidade, não alcançando, por isso, a consagração e reconhecimento públicos correspondentes à sua relevância.

Tenho conhecido projectos e intervenções de grande qualidade em que parece nem sequer ocorrer às responsáveis a necessidade da sua divulgação. Tudo se passa como se as dinâmicas e o ritmo dos projectos não deixassem espaço para a comunicação. É muitas vezes um trabalho realizado na sombra, em que a dedicação surge associada a um verdadeiro pudor na comunicação. Como nos dizia a professora Lígia Amâncio, “estão lá, mas é como se não estivessem”.

A verdade é que o conhecimento e sobretudo o reconhecimento de soluções inovadoras para os problemas sociais, de estratégias bem sucedidas utilizadas na saúde, na educação, no apoio à terceira idade, no combate à pobreza são essenciais para o desenvolvimento da nossa auto-estima colectiva. É importante sabermos que somos capazes de resolver os nossos problemas, é importante conhecermos melhor os caminhos da solidariedade e da coesão social ao nosso alcance.

Há, então, aqui um desafio que, antes de mais, se impõe às próprias mulheres: o desafio da difusão dos resultados de projectos e realizações de que elas são responsáveis e protagonistas, designadamente em áreas de intervenção social com menor visibilidade.

É também importante que as mulheres assumam os seus pontos de vista e opiniões no espaço público, ainda predominantemente masculino, trazendo para o debate democrático questões sociais centrais que têm sido objecto de inaceitável recalcamento.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Maria de Lourdes Pintasilgo, figura de referência da intervenção feminina na vida pública portuguesa e pioneira na defesa dos direitos das mulheres, a cuja memória quero prestar uma saudosa homenagem, referia em 1995 serem as mulheres portadoras das causas da vida e apelava para a “necessidade de consciencializar as mulheres de que nas profissões chamadas femininas, e por isso, até hoje menos valorizadas, se encontra não só um potencial de satisfação das necessidades das outras pessoas, da vida social e da qualidade de vida, como um dos maiores meios dinamizadores da própria vida política”.

Projectos como o que hoje visitei e que visam desenvolver a auto-estima, a capacidade de afirmação pessoal e a integração profissional são decisivos quer porque resolvem problemas concretos das pessoas, quer porque contribuem para a descoberta de estratégias inovadoras de trabalho neste domínio. Seria profundamente injusto e socialmente penalizador que permanecessem na obscuridade. Injusto, porque um tal esquecimento contribui para reforçar a subalternização da condição feminina; socialmente penalizador, porque com essa omissão se perde a oportunidade de valorizar e estimular práticas com grande utilidade social e enorme potencial emancipador.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Nesta minha intervenção em mais um Dia Internacional da Mulher preocupei-me, como é normal, em abordar, ainda que de forma breve, alguns tópicos relacionados com a especificidade da condição feminina. Tenho, contudo, a consciência de que, ao fazê-lo, acabo por enunciar um conjunto de problemas que tocam no coração da vida democrática e da construção da cidadania.

O primeiro de tais problemas diz respeito à estruturação das agendas políticas. Ao percebermos, a propósito de formas de subalternização social que continuam a atingir mais de metade da Humanidade, que as suas manifestações só a custo conseguem atingir lugares de destaque na hierarquia dos problemas considerados como politicamente relevantes – então há boas razões para admitirmos que algo de fundamental tem de ser mudado nos modos de organização dos sistemas políticos. Não é justo nem razoável que persistam enviesamentos masculinocêntricos tão acentuados na selecção das questões políticas agendáveis.

Nunca é demais frisar o papel que os media hoje têm na construção das atitudes e opiniões dos cidadãos sobre a vida social em que participam. Sabe-se, aliás, até que ponto agendas políticas e agendas mediáticas se influenciam reciprocamente. Pois bem: sendo verdade, como disse, que cabe às próprias mulheres responsabilidade primeira na afirmação pública dos seus problemas e realizações, o que também se pode afirmar é que a acção dos media na divulgação séria e bem informada das dinâmicas sociais em curso é, neste aspecto, decisiva. Dar visibilidade pública ao que, no combate pela igualdade de oportunidades, tende a refugiar-se na invisibilidade, eis uma perspectiva que gostaria de ver desenvolvida entre nós.

Outro problema de fundo das democracias, a que também me referi, diz respeito ao facto de uma boa parte das grandes decisões de que depende o curso da Humanidade serem tomadas na ausência ou sem uma participação autêntica de uma parte significativa dessa mesma Humanidade.

A diversidade de experiências das mulheres e a especificidade do conhecimento sobre a realidade que, por esse facto, está ao seu alcance exigem que a sociedade esteja mais atenta às suas opiniões nos espaços onde se decide. A Humanidade tem ficado mais rica com o desenvolvimento das potencialidades intelectuais e profissionais das mulheres. Exige-se, então, que a intervenção feminina nas grandes causas mundiais ou nas causas bem mais discretas da criação de laços sociais de proximidade e solidariedade ganhe a dimensão que merece.

Quero, ainda, fazer uma referência às exigências de conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, questão tanto mais importante quanto mais se tem intensificado a participação das mulheres no mercado de trabalho.

Preocupa-me o esforço pedido às jovens mulheres na perspectiva de tal conciliação. Além de serem condicionadas a uma penosa acumulação de tarefas domésticas, as mulheres com actividade profissional regular são muitas vezes compelidas a interromper ou adiar as suas carreiras profissionais sem terem optado por essa via, o que, além de causar prejuízos pessoais evidentes, redunda ainda em custos sociais inaceitáveis. Eis um domínio que coloca desafios fundamentais aos decisores económicos, mas também a todas as entidades com responsabilidade em matéria de concertação social – um domínio que, por outro lado, apela a uma espécie de revolução cultural, que, embora em andamento, tem tido avanços muito moderados. Refiro-me aos modos de encarar, pelos homens mas também pelas mulheres, a divisão das tarefas domésticas. Como fica demonstrado em tantas pesquisas sobre a matéria, talvez seja este o domínio em que mais patente se torna a reprodução silenciosa de desigualdades entre géneros – por isso, estamos todos convocados para participar, dia a dia, na mudança de comportamentos que, a este respeito, se impõe.

Irei de seguida agraciar mulheres que se distinguiram em diferentes sectores da vida portuguesa pela sua actividade profissional, cultural ou de voluntariado. São professoras, escritoras, artistas, cientistas, trabalhadoras na área social e no desenvolvimento local.
Será também condecorada uma escola, que tive o prazer de visitar, cujo corpo docente, constituído por uma maioria de mulheres, desenvolve um trabalho notável, nomeadamente na integração de crianças com necessidades educativas especiais. É também uma homenagem a um sector de grande invisibilidade social, o 1º ciclo do ensino básico, onde tanto do futuro das nossas crianças se joga.

A terminar, reafirmo a minha homenagem a todas as mulheres portuguesas e deixo um incentivo para uma maior presença na vida pública. A qualidade da nossa democracia depende de vós.

A todas e a todos, o meu agradecimento.