Algumas Notas sobre o Debate Constitucional Europeu, Abertura do Colóquio Ibérico "Constiruição Europeia"

Coimbra
17 de Março de 2005


Exmo.Senhor Presidente do Conselho Científico (Dr. Manuel Porto)
Exmo.Senhor Secretário de Estado das Relações com as Cortes (Senhor Francisco Caamaño)
Senhores Professores
Caros Amigos
Caro Prof. Canotilho

Foi com o maior interesse que desde início tomei conhecimento – pelo Prof. Gomes Canotilho – desta iniciativa, pelo que fiz questão de hoje participar na abertura deste Colóquio Ibérico sobre o Tratado Constitucional Europeu. Faço-o, aliás, com vivo prazer pessoal, não só tendo em conta os temas que irão ser abordados, de significativa importância política e que, decerto proporcionarão um estimulante debate intelectual. Mas ainda porque, estou seguro, este extravasará as fronteiras do campo jurídico para incidir sobre a presente realidade da nova Europa, que o mesmo é dizer: sobre o nosso futuro comum. É bom estar aqui convosco, pois, para além dos laços de amizade que me ligam a tantos de vós, tenho grande apreço pelo trabalho que realizam e pelo magistério que exercem e que procuro acompanhar, pois também eu venho dessa raiz universitária formadora de disciplinas e rigor que é afinal o estudo do Direito.

Quero saudar muito particularmente a presença dos nossos vizinhos e amigos, dirigindo-lhes as minhas muito fraternas saudações. Sejam bem-vindos a Coimbra, lugar forte da memória ibérica, de cruzamento do saber e do diálogo peninsular desde tempos remotos! Estou certo de que os dois dias de debates que agora se iniciam – e que será fácil adivinhar animados e fecundos – contribuirão para cimentar ainda mais a sólida amizade que nos une, assente na discussão aberta, convivial e exigente dos caminhos deste nosso destino europeu.

Tendo-me sido concedida a honra de abrir os debates sobre um tema tão complexo e vasto, gostaria, nestas notas introdutórias, de adoptar uma posição mais política do que académica, mais questionante do que afirmativa.

Proponho-me, assim, articular as minhas breves reflexões em torno da questão polémica da denominação do novo texto europeu – Constituição Europeia ou Tratado Constitucional ? –, trazendo à colação um pouco da minha experiência e das interrogações que suscita o actual momento da construção europeia.

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Sem dúvida que a controversa questão da denominação do Tratado Constitucional Europeu, que agitou a opinião pública e até a assembleia encarregue da sua redacção, poderia não só prestar-se a uma leitura crítica, como inscrever-se no ciclo das querelas que regularmente, ao longo da História, têm animado a história das ideias do nosso continente.

De facto, a polémica criada em torno da denominação do novo Tratado Europeu não traduz só a dificuldade em classificá-lo nas categorias tradicionais de textos jurídicos, mas prende-se em larga medida com o tipo de alterações introduzidas no novo texto. Estas têm a ver com a própria natureza da União Europeia, o sistema de normas que institui – e portanto também com o problema da sua legitimidade – e os contornos da “Governação” da Europa.

Ou seja, não estamos perante uma mera controvérsia sobre nomes, mas face a um debate de natureza constitucional, iniciado aliás com a instituição das Comunidades Europeias e a criação de uma ordem jurídica comunitária, quando os Estados decidiram exercer em comum algumas das suas prerrogativas soberanas.

Para entender melhor os contornos do debate constitucional actual, será útil revisitar a história da construção europeia para nos darmos conta de que, desde a Declaração de Schuman de 9 de Maio de 1950, está em curso uma mudança de paradigma de Estado e de soberania, cujo efeito é – para muitos – o de uma quase revolução copérnica no âmbito do direito internacional público.

Apesar de para alguns parecer um processo lento e de se terem registado impasses e mesmo alguns retrocessos – como, logo de início, o da criação falhada da Comunidade Europeia de Defesa –, a construção europeia, apesar de recorrentes oscilações na vontade política comum, tem prosseguido a um ritmo, que regista uma tendência de inegáveis e determinantes progressos. Nos últimos quinze anos conheceu mesmo uma aceleração extraordinária, fruto de várias circunstâncias – penso na queda do muro de Berlim e no alargamento da Europa a leste; penso no fim do mundo bipolar e no processo galopante da globalização; penso, ainda, na realização do mercado único, na criação da moeda única e da cidadania europeia, na afirmação dos poderes do Parlamento Europeu e na emergência de uma legitimidade democrática europeia; penso, por último, nas manifestações, por vezes ambíguas e contraditórias, das opiniões públicas nacionais face ao projecto europeu.

Foi neste quadro, que depois de sucessivas emendas aos Tratados fundadores, e em ruptura com o procedimento tradicional de revisão dos textos, nasceu o projecto de Tratado Constitucional, agora numa Europa alargada quase às fronteiras do continente. Com ele se procura dar resposta adequada a uma diferente realidade geo-política, reafirmar princípios e afinar eficácias, a par de uma relegitimação para o projecto integrador, iniciado por Schuman e Monnet, levando assim mais longe a “Europa organizada”, e a “união cada vez mais estreita entre os povos”, num quadro agora de maior exigência para os Estados e para os cidadãos.

Por conseguinte, a emergência do actual debate constitucional é uma necessidade não só decorrente da evolução da própria construção europeia, que se foi adensando e tornando-se naturalmente mais complexa ao longo dos anos, mas também devido aos novos desafios internos e externos com que a União Europeia alargada se confronta, exigindo-lhe clareza de objectivos e de meios.

A meu ver, neste debate, será útil não se ficar prisioneiro de categorias estáticas do pensamento jurídico-político, nem naturalmente se permanecer refém do passado. Há, ao invés, que – através de uma discussão aberta – renovar a teoria para que ela se ajuste à realidade, há que a enriquecer com a experiência e a capacidade colectiva adquiridas, as quais nos ajudam a moldar o presente e a projectar o futuro. Na dialéctica da razão e do conhecimento, da teoria e da prática, temos de restituir às ideias o seu papel de catalizador da mudança. Por isso, entendo que o debate constitucional é indispensável não só para a consolidação de um espaço público europeu, mas também como exercício de cidadania.

Se aos peritos e especialistas cabe uma análise e até a crítica rigorosa dos conceitos, bem como uma interpretação circunstanciada e uma problematização das alterações introduzidas pelo novo Tratado Constitucional, aos cidadãos caberá já uma apropriação intelectual, cívica e desejavelmente afectiva de um texto que a eles se destina e que enquadra os termos de um novo contrato social e de uma diferente ambição.

Por isso considero que quanto mais rigorosa for a discussão técnica, mais clara se tornará a dimensão voluntarista das opções políticas europeias, quanto mais aberto for o debate especializado mais esclarecido também será o debate de sociedade.

Aliás, como é sabido, apesar da forte abstenção registada nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, assistimos hoje, um pouco por toda a Europa, embora com intensidades variadas, a uma discussão generalizada sobre o futuro Tratado Constitucional na perspectiva da sua ratificação pelos Estados membros. Esta parece-me ser uma excelente oportunidade de aproximar a Europa dos cidadãos, de entrosar o plano nacional e o plano comunitário, de consolidar, em suma, o pilar da dupla legitimidade em que assenta a União Europeia.

É de todos conhecida a minha posição pessoal em favor do Tratado. No meu entender, na Europa alargada, a adopção e aplicação deste Tratado é indispensável para enfrentar os riscos de diluição da construção europeia, num duplo plano. Primeiro, contra a desfiguração da União Europeia num vasto mercado económico, o Tratado oferece uma visão política do projecto europeu, reforça os fundamentos da democracia europeia e reafirma a via para uma Europa social. Depois, perante os riscos de entropia acrescida, derivada da crescente complexidade funcional da União Europeia com a correspondente perda de eficácia, de inteligibilidade e de transparência, o Tratado contrapõe uma considerável simplificação – a nível dos textos, dos procedimentos e das regras de decisão –, consolida a arquitectura institucional – introduzindo alterações, mas procurando não romper o equilíbrio do triângulo institucional – e prevê uma valiosa clarificação da repartição das competências não só entre os órgãos institucionais comunitários como entre a União e os seus Estados membros.

Por conseguinte, entendo que este Tratado – decerto não perfeito por ser resultado de vários compromissos – garantirá à Europa – mais alargada – uma maior coesão política, a consolidação das suas democracias e instrumentos novos que a poderão tornar mais eficaz. Três razões, amplamente suficientes, para, por si só, suscitarem a aprovação deste Tratado Constitucional, que não é seguramente uma Constituição Europeia no sentido clássico – mas como poderia jamais sê-lo, não havendo, felizmente, nem um Povo nem um Estado únicos Europeus? – mas que também já não é apenas mais uma revisão do Tratado de Nice.

Gostaria de terminar lembrando que, em matéria de construção europeia me pareceu sempre preferível um passo em frente – mesmo comedido – à inacção ou, pior, à regressão. E como o caminho europeu se tem feito caminhando, tal como os navegadores da Ibéria desenhavam os primeiros mapas navegando, entendo que o Tratado Constitucional que vos vai ocupar durante estes dois dias representa uma importante etapa nesta caminhada decisiva para o futuro dos nossos povos. Outras se seguirão, espero, levando cada vez mais longe a ambição de uma Europa sempre mais coesa e solidária, ajustada afinal aos desafios, às responsabilidades e às exigências deste nosso tempo.