Conferência de Sua Excelência, O Dr. Jorge Sampaio, Presidente da República Portuguesa no âmbito da "2005 Isaiah Berlin Lecture"

Portugal e a Europa: caminhos de mudança

Oxford, Wolfson College
19 de Maio de 2005


Permitam-me, em primeiro lugar, que agradeça as palavras que o Senhor Presidente do Wolfson College quis ter a amabilidade de me dirigir. São palavras que me sensibilizam e que visam sobretudo o país que represento.

Gostaria ainda de expressar a minha satisfação pessoal por me encontrar aqui, nesta bela cidade universitária, tão presente no nosso imaginário colectivo e cuja história se confunde com a da cultura europeia.

É de facto em lugares como este que nos apercebemos de que a construção europeia – sem dúvida o facto mais notável dos últimos cinquenta anos – só tem sentido porque as nossas nações – e Portugal e o Reino Unido encontram-se entre as mais antigas da Europa – partilham um legado comum, um património de princípios e valores que, ao longo dos séculos, se tem tornado, pela sua acção conjunta, mais rico, denso e variado.

Saúdo, por último, a assistência, muito especialmente os estudantes portugueses aqui presentes, com quem tive já o prazer de trocar alguns pontos de vista e de me inteirar das suas impressões, das suas preocupações e também – apraz-me sublinhá-lo – da sua satisfação por terem o privilégio de se encontrarem nesta Universidade.

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Foi com muito gosto que aceitei o convite do Presidente Robert Gareth para estar presente na sessão anual comemorativa do ilustre fundador deste Colégio, Isaiah Berlin.

Sobre Isaiah Berlin, de quem curiosamente Virginia Woolf dizia que se assemelhava a um “swarthy Portuguese Jew”, parece-me essencial recordar o seu esforço, num século marcado por totalitarismos, para compreender e pensar a sua época; para formar uma visão das condições que tolhem a liberdade – individual e colectiva – ou das circunstâncias que, pelo contrário, a favorecem; enfim, para formular uma teoria da justiça e do pluralismo.

Independentemente de se concordar ou não com as suas teorias, o homem que aqui nos junta foi uma personalidade rara, que soube decifrar a história do seu tempo com invulgar lucidez e profundo conhecimento da Europa, das suas culturas e seus povos. O legado que nos deixou permanece, assim, um exemplo vivo para os que, como eu, exercem responsabilidades políticas neste difícil princípio de século.

Por isso, decidi vir falar-vos hoje de “Portugal e da Europa e dos seus caminhos de mudança”. Porque entendo que, com o exemplo da história recente do meu país, em que a Revolução dos Cravos nos permitiu encetar um processo de democratização e de modernização da sociedade, alternando experiências, mudanças e transformações, se ilustra claramente o alcance do pluralismo de Isaiah Berlin. Porque a sua distinção crucial entre dois conceitos de Liberdade nos permite interpretar, porventura de uma perspectiva mais filosófica, as dificuldades com que Portugal se defronta na construção de uma sociedade mais justa, na difícil realização da articulação entre Liberdade e Justiça Social. Por último, porque a leitura conjunta do destino contemporâneo de Portugal e da construção da União Europeia, na encruzilhada em que hoje nos encontramos, talvez ganhasse ímpeto e visão na evocação do pensamento de Isaiah Berlin.

Não sendo filósofo nem historiador das ideias, não ousaria nunca aventurar-me nesse difícil mas fascinante exercício, caro a tantos de vós, de reinterpretar Isaiah Berlin. Por isso, vos proponho tão só evocar na minha apresentação o quadro das mutações que a Revolução de 1974 produziu em Portugal nas últimas três décadas, para abordar, depois, muito brevemente a opção europeia de Portugal. Fá-lo-ei com objectividade e franqueza, mas deixando-vos a vós, o desafio de convocar o pensamento de Isaiah Berlin.


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Comecemos por recuar no tempo português.

Como saberão, gorada que fora uma tímida tentativa de abertura do regime empreendida por Marcelo Caetano, na sequência do afastamento político de Salazar por incapacidade física, Portugal continuava, em 1974, sob o peso asfixiante de uma ditadura com quase cinco décadas de existência. Vivia-se então num país sem horizontes: de um lado as Forças Armadas suportavam desde 1961 uma guerra colonial que envolvia extensas frentes de combate nos territórios de Angola, Moçambique e Guiné; por outro, a nação enleava-se num penalizador isolamento diplomático contrário à sua história.

Se este era o panorama político de uma sociedade bloqueada, valerá a pena sublinhar com rapidez alguns aspectos que em outros domínios a caracterizavam.

Desde logo, importa lembrar o quadro da emigração. Tradicionalmente, Portugal foi sempre um pólo irradiador de intensos movimentos emigratórios, constituindo a rota transatlântica, no século XIX e princípio do século XX, com particular incidência no destino brasileiro, a sua componente principal. A partir do início dos anos 60, o volume da emigração portuguesa sofreu uma notável intensificação, passando a dirigir-se sobretudo para os países da Europa desenvolvida, principalmente França e Alemanha. Calcula-se que, só no período que vai de 1960 até ao limiar da Revolução de Abril, tenham emigrado cerca de 2 milhões de indivíduos potencialmente activos, ou seja, pouco menos do que um quinto da actual população residente.

Outro aspecto que importa assinalar, ao olhar Portugal à distância de 30 anos, diz respeito aos padrões de distribuição de riqueza e de incidência de pobreza. Os números são claros na sua dureza: com efeito, estima-se que, por volta de 1974, a proporção de famílias portuguesas vivendo abaixo de um limiar de pobreza rondava os 43%.

Porque devo ser breve, passo a um último traço de caracterização do Portugal em meados dos anos setenta. Refiro-me à relação da população com a instrução, pois também ele é bem esclarecedor, não apenas das nossas debilidades estruturais à data da Restauração Democrática, como de algumas das dificuldades de desenvolvimento do País que ainda hoje subsistem. Nesse tempo, um em cada quatro portugueses com idade igual ou superior a 10 anos era analfabeto literal, e a proporção de indivíduos com diploma ou frequência de instrução superior, no conjunto da população residente, ficava-se apenas por 1,5 %. Por outro lado, a informação sociológica sobre oportunidades de mobilidade social revela, nessa época, níveis anormalmente elevados de selecção classista no acesso ao ensino médio e sobretudo universitário.

Este era o país que despertou incrédulo na madrugada libertadora do 25 de Abril , cujas consequências políticas imediatas são bem conhecidas: restituição das liberdades cívicas fundamentais; organização de um quadro político de democracia representativa centrado em partidos; termo da guerra colonial e independência das colónias; plena participação do País nos principais fora políticos internacionais; aprovação, por esmagadora maioria, de uma Constituição democrática.

Foi um período de rápida mudança. Como é compreensível, o processo de construção do Estado de Direito e, por extensão, dos alicerces do sistema de bem estar e protecção social, acabaria por ser significativamente influenciado, nos conteúdos, na forma e nos tempos de maturação, pela forte movimentação popular que acompanhou a ruptura política. Mas – convém lembrá-lo –, houve também constrangimentos exógenos que o marcaram vivamente. Recordo, a propósito, que a conjuntura económica internacional dos anos setenta foi singularizada por uma crise energética que perturbou os principais fundamentos da ordem económica mundial.

Nestas condições, não surpreenderá que, em Portugal, a década posterior ao 25 de Abril de 1974 nos surja recheada de turbulências. Com efeito, este foi um período de profundos reajustamentos institucionais associados à consolidação da democracia representativa e à redução, resultante do fim do império colonial, do espaço de influência económica e política do País às suas velhas fronteiras ibéricas.

Nesta fase, realizaram-se importantes intervenções do Estado no aparelho económico produtivo, destacando-se a nacionalização dos grupos económico-financeiros mais influentes durante a ditadura, e bem assim uma Reforma Agrária, acompanhada por grande movimentação social na região sul; foi ainda nesse período que se concretizaram dois programas de ajustamento na balança de pagamentos, conduzidos pelo Fundo Monetário Internacional, com a intransigência metodológica que se lhe conhece.

Terminada a década de aproximação ao modelo institucional de Estado de Direito, nem por isso se extinguiram, na sociedade portuguesa, factores de instabilidade. Uma parte diz respeito a transformações sociais de fundo - procurarei, mais à frente, delinear os seus contornos; mas há outra parte que é indissociável, uma vez mais, de constrangimentos de natureza exógena, que convirá indicar.

Lembro, muito sinteticamente, a tal respeito, que, por exigência da adesão à Comunidade Europeia, se assiste, logo após 1985, à concretização de um extenso programa de privatizações de empresas nacionalizadas e de diminuição do peso do Estado no aparelho produtivo. Tratou-se de um esforço político significativo, que ocorreu a par de algumas reformas de fundo no quadro institucional de regulação da economia e do sistema de emprego.

Pensando já, por outro lado, na última década da vida portuguesa, há a registar outros desafios exógenos igualmente de grande envergadura. Refiro-me, num contexto de alargamento da União e de intensificação da concorrência global, às exigências de convergência nominal de Maastricht, e ao modelo de disciplina orçamental do Pacto de Estabilidade e Crescimento, de que decorreram disciplinas sem dúvida indispensáveis mas com projecções restritivas para a organização do estado de bem estar e para políticas económicas fomentadoras de emprego.

Identificadas muito rapidamente as grandes linhas de enquadramento da sociedade portuguesa nos trinta anos que leva de vida democrática, como caracterizar, de modo também breve, as transformações sociais de fundo a que há pouco me referia?

Para tentar mostrar, de maneira expressiva, até que ponto elas foram profundas, será útil iniciar este inventário com uma breve referência às alterações que remetem para a componente demográfica.

Não é exagerado dizer que se verificou, em Portugal, no curto período de três décadas, uma verdadeira mutação de regime demográfico. E isto porque as taxas de fertilidade que, no seu início, eram, em termos comparativos, anormalmente elevadas, caíram nos últimos anos para valores próximos da média europeia. Por seu turno, as taxas de envelhecimento no topo e na base revelam hoje valores preocupantes, nomeadamente na perspectiva da sustentação dos sistemas de segurança social, como os das sociedades envelhecidas do centro europeu.

Convém aqui abordar um outro ponto, o da evolução dos nossos padrões migratórios. Com a descolonização permitida pelo 25 de Abril, Portugal recebeu e absorveu sem conflitualidade, em muito pouco tempo, um contingente de deslocados dos antigos territórios coloniais estimado em bastante mais de meio milhão de pessoas. Este facto, acompanhado pelo quase estancamento da emigração, colocou fim a um declínio demográfico; mas a situação mais surpreendente, à luz das tendências demográficas tradicionais, havia de ser, sem dúvida, o da transformação do país em destino de imigrantes, oriundos, numa primeira fase, das antigas colónias africanas e, depois, sobretudo a partir da segunda metade dos anos noventa, dos Países da Europa de Leste e do Brasil.

Decorre daqui um problema social concreto, com o qual nos confrontamos hoje, que consiste em integrar um contingente de imigrantes não inferior a 4% da população e a 8-9% do emprego total. Esta é uma mudança de perspectiva que nos coloca pela primeira vez inéditas e urgentes questões.

Para dar alguns passos mais na compreensão do que mudou, e eventualmente se manteve, em Portugal, nas últimas décadas, impõe-se fazer também uma aproximação das tendências desta evolução demográfica à transformação das estruturas económico-produtivas do País e, de ambas, aos padrões de ocupação do território nacional.

Antes de mais, avancemos uma primeira constatação: não se tendo assistido em Portugal a nenhum processo brusco de modernização tecnológica e de reconversão fundiária da agricultura, a verdade é que se passou de uma proporção do emprego no sector primário de mais de um terço do total, em 1970, para cerca de 12%, em 2002 (à volta de 5% dos activos). O emprego industrial, que se mantivera praticamente estacionário na década de oitenta, já está em declínio, enquanto o emprego terciário, bastante inferior em proporção e níveis de qualificação à média europeia, se tornou a parcela mais importante da população empregada (quase 54%).

A verdade é que, se excluirmos algumas zonas, geograficamente bem delimitadas, de agricultura modernizada e competitiva, é ainda muito extensa a mancha do País, sobretudo no interior, onde subsiste uma agricultura de tipo familiar. Trata-se com frequência de situações que configuram uma ocupação a tempo parcial, sem ajudas da PAC, e com níveis de produtividade muito baixos, a que cada vez mais correspondem preocupantes processos de desvitalização demográfica e económica. Para muitos, entre os quais me incluo, não está, contudo, excluído que a importância económico-social da agricultura possa reemergir, mas desta vez sob a forma de produção de serviços socialmente valorizados, como os que se relacionam com a preservação do ambiente, da paisagem, e de redes sociais de proximidade. É neste sentido que a defesa e o desenvolvimento do património florestal do País se tornarão decisivos.

Convirá fazer agora uma outra constatação: os trinta anos de democracia não permitiram ultrapassar ainda as assimetrias de desenvolvimento que caracterizam o território nacional. Neste aspecto, a dicotomia litoral/interior, com forte polarização demográfica nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, permanece como um importante dualismo do modelo de desenvolvimento português. Há, contudo, alguma mudança de tendências que convém não ignorar. Com efeito, nas duas últimas décadas, vem-se assistindo à consolidação de pólos urbanos de média dimensão no interior geográfico do País. Esta é, aliás, uma circunstância que favorece alguma capacidade de inovação e de diversificação das actividades económicas em regiões outrora muito confinadas a uma agricultura escassamente modernizada. Trata-se de um processo, que, à escala do território nacional, conduziu a alguma atenuação das desigualdades de desenvolvimento, mas que ainda não conseguiu contrariar a tendência de desvitalização de parte do mundo rural, a que atrás me referi.

Porém, o próprio litoral geográfico do País não tem evitado a emergência de algumas periferias económicas e sociais. Seja em função de tecidos produtivos pouco diversificados, seja por escassez de acessibilidades condignas, por acumulação de problemas de baixas qualificações profissionais das populações locais envelhecidas, ou ainda por fragilidade empresarial, – a verdade é que continuam a ser muitos os espaços locais que se vêem confrontados com autênticos círculos viciosos de subdesenvolvimento. Neste sentido, são grandes os desafios que, em matéria de equidade e sentido estratégico na afectação de recursos, se colocam à administração central e local.

Já num outro plano, o da qualificação pessoal, o alargamento da escolaridade básica de nove anos à generalidade dos jovens e o forte acréscimo registado nas taxas de frequência do ensino superior são, sem dúvida, dois dos mais importantes legados do 25 de Abril. Merecem ser sublinhados, pois estão na base de mudanças comportamentais e de atitudes, com incidência relevante em matéria de relação com a cultura, de participação nas organizações económicas e na esfera pública, de abertura à sociedade da informação e à economia do conhecimento, etc. Estamos longe, porém, de ter resolvido os problemas que, no domínio da educação e da formação, continuam a colocar-se à sociedade portuguesa. O mais premente – o qual, do meu ponto de vista, nos obriga a continuar a considerar a escolarização de qualidade para todos como uma prioridade nacional absoluta – prende-se com os níveis de insucesso e de saída precoce da escola que carecem de ser urgentemente corrigidas

Ainda uma outra constatação neste domínio: tem-se observado em Portugal – e o facto é comum a outras sociedades – ser a população jovem feminina a grande protagonista e beneficiária do investimento educativo. Tomo este ponto como pretexto para assinalar o que terá constituído uma das mais discretas e emancipadoras transformações permitidas pela democratização da sociedade portuguesa - a entrada das mulheres no sistema de emprego. Tendo as taxas de participação feminina no mercado de trabalho passado, em apenas três décadas, de valores comparativamente muito baixos para números que superam os da maior parte dos países europeus, forçoso é concluir estarmos diante de uma autêntica "revolução". É uma mudança que se projecta desde logo na esfera do trabalho e das profissões, mas, mais do que isso, nos sistemas de valores, na construção dos afectos, nos padrões de comportamento familiar e nos modos de socialização das gerações mais jovens. Como todas as outras, também esta "revolução" não está isenta de problemas, nem dispensa ajustamentos institucionais cuidadosos. Mas ela é, sem dúvida, juntamente com o alargamento do acesso à escolarização, um dos mais belos cravos que os Capitães de Abril nos puseram na mão.

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Em consequência do conjunto de mutações que aqui procurei rapidamente sintetizar, a composição social da população portuguesa, ou, como também se diz, a sua estrutura de classes, sofreu, em trinta anos, alterações muito significativas.

Para além da perda de importância estatística e do acentuado declínio das fracções de classe agro-camponesas, assistiu-se, no País, em consonância com a progressão da escolarização, ao reforço gradual do conjunto de assalariados de actividades terciárias com funções de direcção, técnicas ou de mero enquadramento. O conjunto destes assalariados a que, por vezes, se designa por novas classes médias, passaram a constituir o lugar estatisticamente mais significativo da estrutura de classes portuguesa e ultrapassaram, de forma plausivelmente irreversível, o universo dos operários de indústria.

Perante uma recomposição tão sensível e concentrada no tempo da estrutura de classes e respectivos protagonismos, não surpreende que sejam igualmente bruscos os processos de mobilidade social intergeracional desenhados no Portugal contemporâneo. É um facto que, por sua vez, gera quer a nível de relações familiares e de parentesco, quer a nível dos próprios membros de cada fracção de classe, contradições e dissonâncias, cujas manifestações, por vezes difusas, se projectam nas dinâmicas pessoais e colectivas em curso na sociedade portuguesa, tantas vezes causadoras de estranheza aos observadores externos.

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Ao encerrar esta breve exposição panorâmica sobre as transformações da sociedade portuguesa nas últimas décadas, faz sentido, creio eu, voltar aos números sobre crescimento económico antes e depois da Revolução.

Pois bem: sendo verdade que, entre 1973 e 2000, a taxa média de crescimento do PIB per capita não ultrapassou 2,7% ao ano, nem por isso deixou de atingir valores que continuaram a situar-se acima da média europeia, a qual se ficou por 1,9 % ao ano. Esta impressão positiva sobre o modo como Portugal – com ajudas comunitárias de vulto, é justo lembrá-Io – conseguiu enfrentar as dificuldades colocadas por um processo de democratização que se desenrolou num contexto internacional desfavorável, é, aliás, corroborada através da observação do comportamento do Índice de Desenvolvimento Humano – o conhecido indicador sintético publicado anualmente pelo PNUD. Por ele se verifica que no último quarto do século XX Portugal foi, de todos os Países da UE a 15, aquele que, nesta perspectiva, mais convergiu em relação aos valores médios da União.

A avaliação globalmente positiva da evolução da economia e sociedade portuguesas, se por um lado revela a capacidade portuguesa para enfrentar pesados desafios, não deve todavia fazer esquecer dificuldades sentidas nos últimos anos, que, aliás, se traduzem, justamente, por alguma deterioração no comportamento dos indicadores referenciados. Por isso, para um País, como Portugal, que, pelas razões históricas que invoquei, não dispõe de um sistema de bem estar e protecção social ainda suficientemente estruturado, é positiva a mudança de orientação que parece estar a consolidar-se na União a propósito da forma de entender o Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Pessoalmente, entendo, de facto, que esta flexibilização permitirá à Europa dar um passo importante para conferir novo fôlego ao projecto conhecido por Estratégia de Lisboa e para um mais adequado desenvolvimento da economia europeia.


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A restauração democrática de Abril de 74 permitiu uma outra mutação decisiva, esta no domínio da política externa: a adesão de Portugal à então CEE, abrindo com ela um caminho que até aí nos estava vedado, embora fossemos membros fundadores da OCDE e da EFTA.

A opção europeia fez parte das decisões estruturantes do novo regime português, pois configurou a resposta estratégica de Portugal à alteração do seu posicionamento internacional na sequência da descolonização. Pela participação no projecto de integração europeia consolidámos a transição democrática, reforçámos o Estado de Direito, e desenvolvemos a economia de mercado. O país abriu-se e modernizou-se, os portugueses recuperaram a sua auto-estima, aprenderam a olhar de outra forma a sua história e cultura. E se, ao optar pela Europa, Portugal perfilhou um novo paradigma político, económico e social, também tal decisão substituiu linhas de força tradicionais da sua política externa, e permitiu recolher dessa escolha uma projecção externa acrescida.

Insisto, por isso, na palavra mutação para caracterizar o novo tempo diplomático português. Sem virar as costas ao Atlântico, durante séculos área prioritária e decisiva da sua acção externa, – e cabe aqui recordar a velha aliança com a Grã-Bretanha, que tão bem o ilustra – Portugal regressou à sua matriz europeia, centrando o essencial da sua política na participação activa e empenhada no projecto de integração que está a dar um novo rosto à Europa.

Volvidos estes anos, orgulhamo-nos de poder ser, para além de portugueses, convictamente europeus no sentido de pertencermos a uma comunidade de destino.

Hoje, mantemos laços privilegiados com os países de Língua Portuguesa, podendo-nos rejubilar de ter – permitam-me a expressão – descolonizado com eles as nossas próprias relações. Na verdade, a integração na CEE tornou possível esta evolução, tornando-nos um útil parceiro da lusofonia na Europa e um vantajoso interlocutor europeu junto dos países de língua portuguesa, que agora formam uma comunidade politicamente estruturada, assente em 200 milhões de cidadãos. Valerá também a pena frisar que a opção europeia trouxe igualmente uma notável alteração qualitativa das nossas relações bilaterais com a comunidade internacional e, muito particularmente, com a Espanha, país que, por razões históricas e geo-estratégicas bem conhecidas, assume uma importância singular na nossa política externa.

Por último, parece-me ainda importante frisar que a adesão de Portugal e de Espanha, em 1986, em vez de diluir a dinâmica comunitária, como receavam alguns parceiros, ajudou à sua renovação e ao reforço do processo integrador europeu. Foi por isso um caso plenamente bem sucedido.

Aliás, é minha profunda convicção de que a adesão da Grécia, de Portugal e de Espanha foi decisiva para consolidar uma identidade europeia assente na democracia pluralista, no primado do direito e na economia de mercado. Este foi um rumo que se revelaria essencial para favorecer as transições democráticas na Europa de Leste e a sua participação no projecto comum europeu.

Pode ainda dizer-se que particularmente a adesão de Portugal facultou à Europa o alargamento do flanco atlântico, sem o qual se prejudicaria um ponto nevrálgico do equilíbrio entre a família europeia. Ao mesmo tempo, a integração dos países ibéricos trouxe à União Europeia um novo enquadramento para as suas relações externas, um outro peso geopolítico, e uma outra sensibilidade uma vez que ambos os Estados possuem valiosas experiências históricas e um relacionamento privilegiado com os países da América Latina e de África.


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Fechado o longo ciclo do império, este regresso de Portugal à Europa permitiu ver melhor quanto as experiências históricas acumuladas nas rotas das suas caravelas haviam modelado a identidade dos portugueses e a sua capacidade de superar crises.

Da opção europeia recolhemos também outros ensinamentos. Desde logo, se não tivéssemos aderido a uma comunidade assente num espaço de unificação regional seria bem inferiores, quer a autonomia de decisão, quer a afirmação externa do país, designadamente nas suas áreas prioritárias de relacionamento. Em paralelo, no presente contexto de globalização e da crescente internacionalização da economia, as debilidades sócio-económicas nacionais antes da adesão mostram bem a extrema dificuldade – senão impossibilidade – de enfrentar de uma outra forma os desafios da modernização e de progresso. Enfim, a actual teia de inéditas e difusas ameaças que afecta este princípio do milénio, acrescida no caso português de uma situação geográfica particularmente exposta, não permite dúvidas quanto ao acerto da decisão estratégica de procurar, através das disciplinas de solidariedade do projecto europeu, garantir a segurança e defesa do país.

Tenho-o repetido com segura convicção: para os portugueses – como para outros – a Europa é hoje condição de uma efectiva independência. É no quadro da integração europeia que asseguramos melhor a segurança, o desenvolvimento e a liberdade que são apanágios da soberania. É nesse quadro europeu que poderemos resolver com mais eficácia os problemas e as dificuldades que atravessamos, fazer valer os nossos interesses e continuar a sentir-nos cada vez mais portugueses, sendo ao mesmo tempo mais europeus, – orgulhosamente mais europeus.

Sei bem que no nosso continente estes são tempos de dúvida, e, para alguns, de hesitação quanto à bondade do projecto que hoje estreitamente nos liga. Mais uma razão para, amparado por uma clara experiência nacional, afirmar a minha convicção – pessoal é certo, mas seguida por muitos – de que é numa unidade solidária, no cumprimento de objectivos livremente negociados, e numa consentida partilha de soberanias, que a Europa ocupará o lugar que as suas responsabilidades históricas lhe exigem para a edificação urgente de um mundo mais justo.

Quanto a nós, portugueses, sabemos que, ao longo da história, Portugal tem mostrado – sempre que foi posto à prova – a sabedoria de mobilizar com confiança as experiências e energias do seu povo para assumir caminhos de progresso. Tal como em Abril de 74, assim continuaremos a fazer.