Alocução de SEXA o PR, Dr. Jorge Sampaio, por ocasião da 33ª Conferência-Geral da UNESCO

Paris
11 de Outubro de 2005


Senhor Presidente da Conferência Geral
Senhor Director-Geral da UNESCO
Senhor Primeiro Ministro da Tailândia
Membros das delegações nacionais

Gostaria antes de mais de agradecer o amável convite que me foi endereçado para participar na 33ª Conferência-Geral da UNESCO.

A feliz coincidência de este ano se celebrar o 60º aniversário das Nações Unidas e da constelação das suas organizações, a que a UNESCO pertence, empresta a esta Conferência-Geral um significado muito particular não só no plano simbólico como também ao nível dos compromissos e das decisões que resultem deste conclave.

No âmbito da realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, cabe à UNESCO um papel determinante.

Se a segurança e o desenvolvimento sustentável formam um binómio cujos termos se pressupõem mutuamente, a base de ambos repousa na educação. Não há desenvolvimento sustentável nem segurança sem educação. Trata-se, ademais, como lembra, a justo título, Kofi Annan, de uma questão de direitos humanos.

Por isso, a meu ver, o objectivo 2 do Milénio – Educação para Todos – que ainda recentemente, por ocasião da Assembleia-Geral, reiterámos o compromisso de realizar até 2015, representa uma prioridade política da Agenda Global e um imperativo ético mínimo da Comunidade Internacional.

De facto, no nosso tempo, é indispensável assegurar a educação primária a todos, ou seja, tornar universal a possibilidade de saber ler, escrever e contar, como diziam os nossos antepassados. O domínio destas competências é hoje praticamente condição de sobrevivência. Não só porque a iliteracia se tornou num caminho directo da exclusão como é também, particularmente nas sociedades subdesenvolvidas, a via de permanência na espiral da pobreza, da doença e da degradação.

Em matéria de educação, é especialmente chocante verificar a existência de uma relação directa entre o nível de riqueza e o acesso à escolaridade. Contam-se cerca de 115 milhões de crianças no mundo que não têm ainda acesso ao direito fundamental da escolarização. Destas, oito em cada dez vivem na África sub-saariana e na Ásia do sul. E não é por acaso que a extrema pobreza, a fome, a insegurança, a mortalidade, as pandemias e as desigualdades se concentram também nestas regiões. Para quebrar este ciclo infernal é necessário apostar na educação.

No nosso mundo globalizado, a educação tornou-se, mais do que nunca, um bem público de primeira necessidade. O que, no nosso tempo, distingue as sociedades e civilizações e lhes dá afinal perspectivas de futuro ou as condena é o seu grau de educação e o lugar que nelas ocupam a ciência, a cultura e a comunicação.

Temos a obrigação de assegurar a educação de base a todas as crianças e adultos, ou seja garantir-lhes o acesso aos instrumentos que são fundamentais às suas vidas pessoais, profissionais e ao exercício da cidadania. Considero, na verdade, que em todos os processos de educação formal e não formal, realizados em qualquer etapa da vida, devem ser assumidas dimensões de educação para a cidadania, designadamente a educação para a saúde, a educação para a defesa do planeta, educação para a paz, tolerância e amizade entre as nações, a educação para os media e, claro, a educação para os Direitos Humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos deveria ser assumida como um conteúdo a aprender, que ajudará a desenvolver a identidade de cada pessoa como cidadão do mundo. Mas não deve ser descurada a criação de ambientes em que se aprendam os direitos humanos na vida escolar, e em que, sem pôr em causa o papel do professor, cada aluno aprenda a exprimir os seus pontos de vista, a ouvir, a respeitar os pontos de vista do outro, a fazer opções fundamentadas. É importante que a vivência na escola seja também uma aprendizagem dos direitos humanos

A meu ver, a educação para os Direitos Humanos é uma das estratégias da educação para fomentar a compreensão e a solidariedade internacionais.

É bom lembrar que também nas sociedades desenvolvidas há ainda muito a fazer para que se possa falar de uma educação para todos. Não porque existam dificuldades de acesso, que esses países já ultrapassaram, mas porque as escolas se têm confrontado com problemas de adaptação à heterogeneidade cultural e social dos públicos que as frequentam. Daí têm resultado processos de exclusão e abandono escolar sem qualificação, que põem em causa o futuro desses jovens. São problemas que exigem da escola novos tipos de organização e que colocam novos desafios aos professores.

Só as sociedades em que exista uma educação de qualidade para todos estão aptas a assegurar o seu efectivo desenvolvimento, a optimizar, numa base científica e tecnológica, a utilização dos seus recursos, a garantir o acesso livre e igualitário à informação e à comunicação, bem como a preservar a sua identidade e património cultural.

Coube à UNESCO um papel determinante na definição inovadora dos objectivos da Educação para Todos, sufragados na histórica reunião de Jomtien, na Tailândia, em 1990.

Cabe-lhe agora naturalmente bater-se pela sua implementação, dando assim um contributo decisivo para alcançar estas metas do Milénio, aliás na linha do que vem já fazendo, desde a sua criação, fiel aos princípios e valores fundadores, apesar da escassez de recursos e das recorrentes dificuldades de financiamento com que se tem defrontado.

Muito foi já feito, é certo, mas assim como a globalização provocou uma aceleração da história, também se acentuou a desigualdade de oportunidades e a fractura Norte-Sul, com tudo o que isso implica, revelando claramente que a educação é o ponto crítico, a linha de clivagem e o factor de diferenciação.

A educação tornou-se uma prioridade da Governação global. Na ausência de Estados capazes de assegurarem o direito igualitário e fundamental à educação, sustentáculo da democracia, é indispensável a intervenção reguladora da Comunidade Internacional. Sem ela, os efeitos perversos da lógica economicista dos mercados e da competição internacional - a que nenhuma sociedade nem região do mundo se subtrai, por remota que seja a sua localização ou aparente afastamento -, podem tornar-se devastadores uma vez que são completamente avesso aos princípios da ética e da justiça bem como ao valor da pessoa humana e ao conjunto dos seus direitos fundamentais.

É neste contexto que entendo também caber à UNESCO um papel insubstituível. Não já só por vocação natural, mas também pela força dos tempos. Mais do que nunca importa preservar, para além dos direitos básicos da pessoa humana, as identidades culturais, na pluralidade e diversidade das suas manifestações. A comunicação universal que caracteriza o nosso século não pode tornar-se sinónimo de homogeneização ou expressão de um pensamento único.

Há quem pretenda que aos conflitos ideológicos, a que o fim da guerra fria pôs termo, se substituirão os choques de civilizações, com as suas clivagens religiosas, étnicas e culturais. Não podemos permitir que a realidade dê razão a esta negra profecia.

É sabido que a história das nações, das religiões e das civilizações tem alternado períodos de paz e de guerras, momentos de afrontamento, conflitos e intolerâncias com vontade de diálogo, abertura ao Outro e a cultura da diferença, da tolerância e de valores universalistas.

Mas a experiência dos séculos mostra-nos que a História é feita de luzes e de sombras e que só na consciência de que não há fatalismos nem determinismos invencíveis podemos recuperar o sentido da liberdade como condição da unidade fundamental de todos os seres e, com ela, o do respeito pelo valor universal dos Direitos Humanos. A meu ver, é nesta base que o complexo e exigente diálogo de civilizações, culturas e religiões adquire pleno significado, não só como o melhor contraponto para o isolamento, a desconfiança e o confronto mas também como o mais potente incentivo à abertura, ao entendimento e à tolerância. Por isso defendi na primeira parte da minha intervenção a importância da educação para os Direitos Humanos.

A História ensina-nos que este diálogo é necessário, possível e frutuoso. Mas mostra-nos também que não é um diálogo fácil e que, se não for ensinado e cultivado, cede o lugar ao monólogo ou ao mutismo que são quase sempre fermento de perigosas atitudes extremistas e de pulsões fanáticas.

De facto, as culturas tendem por vezes a afirmar as respectivas identidades no confronto com as outras. E os particularismos culturais, legitimados por factores religiosos ou étnicos, têm funcionado como vectores de conflito e de dominação. Por isso, é preciso que cada civilização, cada religião e cada cultura seja capaz de praticar, no seu próprio interior, a tolerância, o reconhecimento da liberdade de consciência e o direito à diferença. Não só porque a intolerância de uma cultura ou de uma religião é proporcional à intolerância no seu próprio interior mas também porque a intolerância de uma cultura ou de uma religião não é estável mas tem variado ao longo dos tempos.

A situação internacional criada na sequência dos ataques terroristas de 11 de Setembro em Nova Iorque, bem como dos outros atentados que têm tragicamente marcado o dealbar deste novo século, imprimiram uma acutilante premência ao diálogo de civilizações, religiões e culturas, que urge promover.

Não podemos desperdiçar o património que, nos seus melhores momentos e como antídoto às suas horas mais negras, o século XX penosamente conquistou e nos legou, o do reconhecimento de princípios, valores e direitos fundamentais que são universais e válidos para todos os seres humanos, independentemente da religião, sexo ou nacionalidade.

A UNESCO tem inscrito na sua matriz de actuação o princípio da diversidade cultural, do pluralismo e do diálogo de civilizações. Nela, a cooperação internacional tem encontrado mecanismos únicos de promoção destes valores através de inúmeros programas, iniciativas e acções na área da educação, da cultura, da ciência ou da comunicação, na multiplicidade das suas vertentes e manifestações. É bom que assim seja e que prossiga, nesta via complexa, em que por vezes os resultados tardam a tornar-se tangíveis.

Dos seus variados domínios de actuação, gostaria, para concluir, de destacar o das línguas. Naturalmente, porque sou português; depois, porque para parafrasear Fernando Pessoa, a língua portuguesa é a pátria dos que a falam, isto é de 200 milhões de pessoas; e, sobretudo. porque o multilinguismo, hoje ameaçado por força da globalização e da hegemonia planetária do inglês, representa uma expressão da diversidade e do respeito pela diferença. As línguas são uma das primordiais manifestações da identidade dos povos e das culturas, importa pois protegê-las.

No caso particular da defesa da língua portuguesa, gostaria de ver o papel da UNESCO reforçado. O espaço da lusofonia, constituído pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que agrega oito países membros da UNESCO (Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, S.Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Timor-Leste) reúne todas as condições para servir de terreno de ensaio a experiências inovadoras no campo da preservação do multilinguismo. Porque a lusofonia tem uma dimensão intercontinental, porque é de matriz intercultural e ainda porque é portadora de valores universais. Porque apresenta uma enorme vitalidade e dinamismo (é das poucas línguas de comunicação internacional que está em crescimento) e ainda por ser uma das línguas mais faladas no mundo, mas que não usufrui, por isso, de um estatuto de prestígio correspondente. Por todas estas razões, justificar-se-ia uma maior cooperação entre a UNESCO e a CPLP com vista ao desenvolvimento sustentado da língua portuguesa - no plano da alfabetização, do ensino com recurso às novas tecnologias, da comunicação, da informação, da conservação do riquíssimo património histórico e literário de língua portuguesa e da divulgação da sua cultura.

É um desafio e um apelo que deixo aqui, na certeza do empenho do meu país e da CPLP em desenvolver uma parceria forte com a UNESCO, cuja acção apoiamos e com a qual contamos, seguros de que, sob a orientação do seu Director-Geral, cuja recondução no cargo subscrevemos, continuará a dar o seu inestimável contributo para a realização dos Objectivos do Milénio e para a prossecução dos seus princípios e ideais fundadores.

Gostaria, por último, de exprimir um desejo e lançar um repto: que cada um de nós, em cada um dos nossos países e no mundo combata a ignorância e se torne um militante da Educação para Todos …….