Discurso de SEXA o PR na sessão de abertura da Conferência Gulbenkian sobre Terrorismo e Relações Internacionais

Lisboa
25 de Outubro de 2005


Senhor Presidente da Fundação Gulbenkian
Senhoras e Senhores Embaixadores
Ilustres convidados
Minhas Senhoras e meus Senhores


Agradeço à Fundação Gulbenkian o convite para inaugurar este colóquio, que reúne em Lisboa uma série de personalidades nacionais e internacionais para discutir a questão do terrorismo internacional, sem dúvida uma das mais importantes do nosso tempo.

Passados pouco mais de quatro anos sobre o 11 de Setembro, esta é uma boa oportunidade para esboçar uma avaliação do impacto na política internacional da campanha terrorista a que temos estado sujeitos nos últimos anos.

Que o terrorismo represente uma significativa ameaça, já foi por todos dito e repetido. Que deve ser inequivocamente condenado, é algo que ninguém contesta. Que é necessário combatê-lo de forma intransigente, constitui para todos uma evidência. Para o levar de vencida, precisamos contudo de uma estratégia. E para elaborar essa estratégia precisamos de compreender o fenómeno terrorista.

Friso bem que compreender não significa justificar ou desculpar; limito-me a afirmar que, sem esse esforço de compreensão, será difícil combatê-lo de forma inteligente.

O terrorismo é uma arma política com uma longa história. Tradicionalmente, tem sido utilizado - por vezes com sucesso - ao serviço de causas revolucionárias ou nacionalistas, em conflitos localizados. Um dos traços distintivos da presente vaga terrorista é o facto de ter um carácter e objectivos internacionais. Nesse sentido, o terrorismo internacional, tal como hoje se manifesta, é também um fenómeno da globalização, de cujas possibilidades e meios aliás se serve, com eficácia e proveito, nas suas operações.

Um segundo traço distintivo da presente vaga terrorista diz respeito à dimensão da ameaça. Com efeito, o 11 de Setembro - que causou milhares de mortos e incalculáveis prejuízos materiais - alertou-nos para a possibilidade de se verificarem atentados terroristas com uma dimensão catastrófica. A utilização de armas de destruição em massa por movimentos terroristas é, por conseguinte, um perigo que devemos considerar, embora, felizmente, não devam ser subestimadas as dificuldades técnicas de desenvolver e utilizar esse tipo de armamentos, as quais, até ao momento, apenas um número reduzido de Estados conseguiu ultrapassar.

Não sabemos com precisão até que ponto o actual terrorismo é coordenado e centralmente comandado. Todavia, parece lícito supor que a guerra no Afeganistão terá em boa parte desarticulado a cadeia de comando da Al Qaeda, responsável pelo 11 de Setembro e, anteriormente pelos atentados no Quénia, na Tanzânia, no Yemen e na Arábia Saudita. Actualmente, os elementos que têm vindo a lume apontam para a existência de uma rede descentralizada, espalhada pelos quatro cantos do mundo, com contactos informais entre os seus membros, que actuam por vezes por iniciativa própria. Estas características dificultam o combate ao terrorismo.

Não obstante a aparente ausência de uma direcção centralizada, parece claro que os atentados dos últimos quatro anos - e quero aqui lembrar, depois de Nova Iorque e Washington, Bali, Moscovo, Riade, Casablanca, Istambul, Madrid e Londres, para referir apenas os pontos mais importantes na geografia do terror - esses atentados, dizia, inscrevem-se numa estratégia coerente: não são fenómenos dispersos.

Todos eles têm a assinatura de movimentos islamitas radicais e fundamentalistas, inspirados em doutrinas conhecidas como “salafistas”. Todos eles se reclamam do espírito da “jihad” e partilham objectivos comuns: introduzir e aprofundar uma clivagem irreparável entre o Ocidente e o Islão, de modo a isolar o mundo muçulmano e, por fim, colocá-lo sob o jugo dessas doutrinas fanáticas e retrógradas. Nesse sentido, o terrorismo internacional é, também ele, revolucionário e profundamente ideológico.
Só que, em vez de actuar num quadro nacional, age no plano internacional; não é enquadrado por uma hierarquia rígida, operando de forma descentralizada; os seus objectivos não são localizados, mas transnacionais; e, em vez de se inspirar em doutrinas políticas e sociais, actua - de forma abusiva, escusado será dizê-lo - em nome da religião.

Estamos a braços com um fenómeno que, muito provavelmente, nos vai ainda acompanhar durante anos. Por maiores que sejam os esforços para combater, no terreno, a ameaça terrorista - e esses esforços já lograram prevenir e impedir dezenas e dezenas de conspirações e de atentados projectados - mais vale não alimentar ilusões: temos de contar com a ocorrência de novos atentados nos próximos anos, cuja dimensão não podemos avaliar.

Feito este diagnóstico sumário da natureza e dos objectivos políticos do terrorismo conduzido ou inspirado pela Al Qaeda, que balanço podemos fazer da campanha terrorista iniciada em meados dos anos 90 e dos esforços realizados até agora para a combater?

Não há dúvida que esta campanha provocou um ambiente de crispação nas relações entre o Ocidente e o Islão e teve importantes consequências directas e indirectas.

Refiro, em primeiro lugar, as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, que alteraram profundamente a situação política no Médio Oriente e cujas repercussões continuam, e continuarão durante muito tempo, a fazer-se sentir de forma poderosa e até certo ponto imprevisível em toda a problemática das relações entre o Ocidente e o Islão. Ao contrário da intervenção no Afeganistão, que foi amplamente respaldada pela Comunidade Internacional, a guerra do Iraque abriu grandes brechas no consenso internacional. Não é este o momento para analisar, em toda a sua complexidade, a situação que se vive naquele país e as suas perspectivas de evolução. Relativamente ao tema que hoje nos ocupa, bastará porventura assinalar que uma das consequências dessa intervenção foi a de abrir uma nova frente na luta contra o terrorismo internacional. No contexto dos países muçulmanos, o Afeganistão e o Iraque pertenciam a mundos separados. Agora participam da mesma problemática. Por isso, fossem quais fossem as posições de partida relativamente à questão do Iraque, é do interesse de toda a Comunidade Internacional que os Estados Unidos sejam bem sucedidos naquele país.

Menciono, em segundo lugar, que o exemplo do 11 de Setembro e as suas sequelas parecem ter alargado a base de recrutamento dos movimentos terroristas e inspirado uma nova geração de activistas dispostos a tudo para cometer novos atentados, embora, até ao momento, nenhum tenha tido resultados comparáveis aos ataques contra as Torres Gémeas e o Pentágono.


É particularmente preocupante que alguns dos indivíduos que compõem essa nova geração de terroristas sejam oriundos da vasta comunidade muçulmana residente na Europa. Esta é uma questão que precisa de ser abordada com particulares cuidados para evitar que a grande maioria dos muçulmanos residentes na Europa, que repudiam energicamente o terrorismo e as ideologia em que se inspira, sejam injustamente afectados.

A campanha terrorista lançada pela Al Qaeda teve importantes consequências. Todavia, se colocados na perspectiva dos seus objectivos políticos mais vastos, forçoso será reconhecer que os efeitos desta campanha têm ficado aquém das ambições dos seus mentores e executores.

Para os países ocidentais - e foram eles que, até agora, suportaram os ataques mais violentos - não parece que o terrorismo seja capaz de pôr em causa a solidez das suas democracias ou do seu sistema económico. Mesmo que a luta contra o terrorismo tenha implicado, ou venha a implicar, algum atropelo - nunca justificável - aos direitos humanos e às liberdades e garantias dos cidadãos, parece exagero dizer que esta campanha de violência cega e indiscriminada põe em perigo as nossas democracias. Pelo contrário, os nossos sistemas políticos têm demonstrado uma notável capacidade de mobilização para resistir e combater o terrorismo.

Quanto aos países muçulmanos, cujos regimes políticos, embora de forma indirecta, são os principais visados por esta campanha, os objectivos estão longe de ter sido atingidos: os regimes denunciados como “apóstatas” não caíram; pelo contrário, foram os “taliban” a ser derrubados no Afeganistão. Estudos de opinião recentes - refiro-me aos mais recentes resultados do Pew Global Attitudes Project - mostram também que o apoio aos extremistas e aos seus métodos violentos está em declínio no mundo muçulmano - de forma particularmente pronunciada nos países, como Marrocos e a Indonésia, que foram vítimas de atentados suicidas.

Conforme já referi, no plano internacional, o objectivo ultimo da campanha terrorista parece ser o de isolar os países muçulmanos da influência ocidental, a fim de os submeter a uma nova forma de totalitarismo religioso. Os atentados são um instrumento para semear o ódio e a desconfiança e provocar um ciclo de represálias que alimente e consolide esses sentimentos. Nessa medida, atingiram pelo menos em parte os seus objectivos, tendo provocado um ambiente de crispação e desconfiança entre o Ocidente e o Islão, tanto no plano internacional como nas relações com as comunidades muçulmanas na Europa. A situação criada inspira preocupações mas não é irreversível.

Quais devem ser, então, os elementos de uma estratégia para combater eficazmente o terrorismo?


Em primeiro lugar, a lógica do confronto entre civilizações é a que melhor serve os interesses terroristas. É de crucial importância evitá-la. Sucumbir ao impulso xenófobo, identificar Islão e terrorismo, retaliar indiscriminadamente - nada melhor do que isso para estimular o ressentimento, o ódio e a incompreensão. Convém, por isso, calibrar as nossas respostas e não errar o alvo. Devemos a todo o custo evitar cair na armadilha de contribuir para os fins que os terroristas visam atingir.

Em segundo lugar, precisamos de aliados no mundo muçulmano para combater este flagelo. É preciso evitar que se estabeleça, na mente das pessoas, uma identificação abusiva entre Islão e terrorismo; mas, para que essa percepção não se consolide, é preciso também que o mundo muçulmano colabore activamente neste combate. Estou plenamente convencido de que a larga maioria dos muçulmanos não se revêem nas concepções fanáticas em que os movimentos terroristas se inspiram. Pelo contrário, têm uma concepção moderada da religião e aspiram a um futuro de progresso económico e social e de liberdade, no respeito pela sua identidade cultural própria. Para esses muçulmanos, o terrorismo representa uma ameaça pelo menos tão grande como para os países ocidentais.

Precisamos por isso de ouvir a voz dos moderados no mundo muçulmano denunciar o terrorismo alto e a bom som. Os líderes religiosos têm neste capítulo uma particular responsabilidade, pela autoridade de que estão investidos para refutar as interpretações do Corão invocadas pelos extremistas para justificar o assassinato indiscriminado e em massa de civis. É sobretudo nos países muçulmanos que o terrorismo tem de ser politicamente desacreditado, isolado, derrotado e eliminado, pela acção dos seus Governos e pela pressão da opinião pública.

Em terceiro lugar, para ajudar a que tal aconteça, temos de procurar resolver problemas que também contribuem para o actual estado de crispação nas relações entre o Ocidente e o Islão. Um dos factores que mais contribui para disseminar o ódio ao Ocidente nos países muçulmanos é o conflito entre Israel e os palestinianos. Avançar na resolução deste conflito, que representa um foco de tensão permanente, que se arrasta há demasiados anos, daria um importante contributo para tornar esta relação mais fluida e mais pacífica.

Em quarto lugar, precisamos de continuar a mobilizar a comunidade internacional para esta luta. A cooperação é determinante para o sucesso deste combate. Nos últimos quatro anos, a União Europeia realizou enormes progressos nesta matéria. Devemos agora estender esta cooperação ao conjunto da Comunidade Internacional. Embora não tenha sido possível obter uma definição consensual do terrorismo na recente cimeira das Nações Unidas, os termos da declaração adoptada representam um avanço importante. Com efeito, foi possível alcançar, pela primeira vez, uma condenação firme e unânime do terrorismo. É necessário agora avançar para uma Convenção Global sobre esta matéria.

Em quinto lugar, no plano policial e militar não podemos baixar a guarda. É necessário manter as redes de apoio prático e ideológico ao terrorismo sob constante vigilância e pressão. No plano interno, não deve também haver tolerância para as actividades de supostos líderes religiosos que abusam da liberdade de pensamento e de expressão para pregar o ódio e incitar à violência.

A médio prazo, é no âmbito político e ideológico que temos de vencer este combate. O 11 de Setembro foi importante não apenas pelo seu impacto imediato mas também por ter revelado que as ideologias extremistas possuía no mundo muçulmano uma base de simpatias e apoios surpreendentemente extensa. Para a derrotar definitivamente, e todos os movimentos terroristas que nela se inspiram, importa por isso não apenas mobilizar todos aqueles que se lhes opõem mas também recuperar para posições mais moderadas muitos dos que actualmente as subscrevem.

É difícil conseguir que isso aconteça em sistemas políticos de há muito bloqueados e com grandes dificuldades em oferecer a populações em franca expansão demográfica perspectivas de vida compatíveis com as suas expectativas. Esses sistemas políticos terão por isso de evoluir. Essa evolução será provavelmente turbulenta, mas é inevitável. Forçar essa evolução através de intervenções externas tem todavia grandes riscos.


Com efeito, estas intervenções tendem a gerar poderosos efeitos perversos, em especial quando são executadas sem levar em conta a especificidade histórica e cultural dos países em que têm lugar. Seria por isso preferível que essas evoluções resultassem de dinâmicas internas.

O Islão e a democracia não são incompatíveis. No diálogo do Ocidente com os países muçulmanos, não devemos abdicar de propor a liberdade, a democracia, os direitos humanos e a emancipação das mulheres, que arduamente conquistámos. Mas temos de o fazer com a plena consciência de que esses valores só poderão vingar de forma duradoura se corresponderem à vontade independente e genuína de cada povo e se forem expressos e vividos nos idiomas das suas respectivas culturas.

Quero concluir esta intervenção com uma nota de confiança. Ainda que o caminho seja longo e difícil, e apesar de algumas opções no mínimo discutíveis, estou plenamente convencido de que o Ocidente tem os meios, a determinação e a inteligência política para conter a ameaça do terrorismo internacional, sem pôr em causa os seus valores e princípios. O combate contra o terrorismo e as ideologias em que se inspira exigirá paciência e determinação e envolverá certamente alguns reveses. Mas é um combate que nos foi imposto, ao qual não nos podemos furtar e do qual, estou certo, acabaremos por sair vencedores.

Desejo a todos um bom trabalho e agradeço a vossa atenção.