Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura "Pensar a Democracia"

Centro Cultural de Belém, Lisboa
25 de Novembro de 2005


Ao dar início ao Seminário de reflexão sobre a Democracia e os processos de democratização que decidi promover, e no qual se dignaram participar, como oradores, quatro dos grandes especialistas internacionais sobre a matéria, gostaria de começar por sublinhar a importância de que o tema se reveste para Portugal.

Para os cidadãos da minha geração, a construção da Democracia no nosso País foi, até à Revolução do 25 de Abril, um desígnio verdadeiramente estruturante das lutas políticas de todos aqueles que não se conformavam em viver sob uma ordem político-social autoritária, desrespeitadora dos direitos humanos e não legitimada por eleições livres.

Fossem quais fossem os projectos globais de sociedade acalentados pelos adversários do regime de então – e sabe-se que eram assinaláveis as diferenças que entre si estabeleciam -, a verdade é que eles convergiam num ponto: todos se reclamavam da Democracia.

A chamada Oposição Democrática era, afinal, uma frente comum pela reinstauração da Democracia em Portugal, com tudo o que isso significava, no imaginário político de então, de reivindicação das liberdades individuais de expressão, de participação cívica e de associação em partidos e outras organizações autónomas de cidadãos, bem como de vontade de abertura fraternal a outros povos e Estados de acordo com regras e princípios jurídicos internacionalmente partilhados, designadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para usar terminologia presente num dos tópicos centrais deste Seminário, poder desenhar o edifício institucional que garantisse no País a instauração de uma genuína Democracia era, pois, um anseio de muitos milhões de cidadãos portugueses, e talvez isso explique por que razão, já depois do 25 de Abril, foi tão esmagadora e vibrante a participação popular nas eleições, enfim livres, para a Assembleia Constituinte.

A ninguém escapava, nesse dia inesquecível de afirmação cívica, que o futuro do País, agora construído em Democracia, iria em boa medida depender do desenho institucional que os deputados dos diferentes partidos, vinculados à vontade popular, traçassem para o novo regime político saído da Revolução de Abril. E a comoção que, quase trinta anos volvidos, nos invadiu, ao acompanhar os primeiros passos da construção democrática em Timor-Lorosae, talvez seja, então, pelo menos em parte, a rememoração reconfortante da nossa própria entrada - primeiro tímida, depois decidida e exigente - na Casa da Democracia.

A verdade é que o trajecto da jovem Democracia Portuguesa não ficou definido – longe disso - nos limites da Constituição, tal como constavam da sua fórmula original.

Em primeiro lugar, porque o processo de mudança desencadeado pelo 25 de Abril ultrapassou largamente a dimensão político-institucional e foi encontrando protagonistas e focos de legitimação que em muito extravasaram as fronteiras do campo político emergente, pondo em crise critérios de representação e de responsabilização política ainda em formação.

Depois, porque as dinâmicas de competição política, envolvendo partidos e instâncias político-militares herdadas do Movimento das Forças Armadas, dificultavam a estabilização do quadro institucional formal saído da Constituinte.

Finalmente, porque as dificuldades económicas resultantes de uma conjugação de crises – as crises energéticas e de crescimento das economias centrais, por um lado, e a crise decorrente da reestruturação do aparelho produtivo nacional, por outro – ameaçavam corroer algumas das energias cívicas com que se alimentara, numa primeira fase, a base de sustentação popular da democracia emergente.

Eis como, em poucos anos, ficam ilustradas, com o caso português, alguns dos problemas da Democracia que, de forma seguramente bem mais aprofundada, aqui irão ser tratados pela voz autorizada dos especialistas.

O que, de forma genérica, eles nos sugerem é que, sendo o desenho institucional da democracia consagrado na Constituição condição incontornável da sua genuinidade e sobrevivência – por isso ele é instituinte, em sentido próprio -, a verdade é que a sustentação da democracia, outro tópico que aqui será abordado, está longe de se esgotar no momento e no acto constituintes.

A Democracia não é um quadro de actores, competências e interdependências estático, autónomo e independente dos sistemas de relações e movimentos sociais tomados no seu conjunto. A Democracia é um processo - um processo social total, para parafrasear conhecida fórmula das ciências sociais –, não separável de um conjunto vasto de condições, e de contradições, económicas, ideológico-culturais, sociais. E por isso é que a sua preservação, promoção e aperfeiçoamento não podem restringir-se a uma série de procedimentos inspirados numa visão reduzida às dimensões formais e institucionais.

Aceitando, por comodidade, que o processo democrático só se inicia verdadeiramente com a consagração de um quadro constitucional formal, há que contar com o facto de que, dada a eficácia substantiva de que as formas jurídicas sempre se revestem, ele não deixará de produzir efeitos sociais próprios. É neste sentido, aliás, que se poderá afirmar que a Democracia é sempre, de algum modo, democratizante - embora tanto mais democratizante, quanto mais os movimentos sociais se intensificarem e conquistarem espaço institucional...instituinte, isto é, quanto mais o processo de democratização e a pulsão democrática progressivamente incorporada nos, e accionada pelos, quadros mentais e disposicionais dos cidadãos puderem intervir, com eficácia, na requalificação da Democracia.

Encarada nesta perspectiva, a velha, mas sempre renovada, discussão em torno da dicotomia democracia representativa/democracia participativa ganhará, aliás, a meu ver, maior pertinência e utilidade.

Admita-se, como parece empiricamente demonstrável, que a fixação, no plano jurídico-institucional, de um conjunto de direitos alarga, em princípio, o horizonte das aspirações democráticas, especialmente no contexto de sociedades onde os níveis de instrução e de reflexividade têm tendência a expandir-se. Então, parece razoável aceitar que os princípios e protocolos da democracia representativa não só não devem, como de facto não conseguem, excluir da vida política a “intrusão” – intrusão benévola, acho eu – do movimento de democratização e participação cívica que eles próprios instauram e promovem.

Entendo, neste sentido, que a melhor garantia para reforçar a participação democrática, ou a democracia participativa – como se queira –, residirá, afinal, no aperfeiçoamento da democracia representativa, ela própria.

Entretanto, há que levar em conta significativas mudanças sócio-culturais que se prendem com a individualização das práticas e o acesso cada vez mais generalizado a técnicas de difusão de informação com flexibilidade e alcance inéditos. Elas mudarão também, inevitavelmente, quer os conteúdos, quer os modos de relacionamento que se estabelecem entre os pólos da referida dicotomia.

Aliás, talvez não seja excessivo prognosticar que, neste contexto, a democracia representativa acabe por incluir, cada vez mais, no seu âmbito, práticas participativas que encurtem distâncias ao cidadão, e que a democracia participativa, por seu turno, se abra, sem complexos, à consagração de critérios formais e genéricos de representação, de expressão e de decisão políticas remetidos, às vezes com injusto desprezo, para a esfera, tida por burocrática e alienante, da democracia representativa.

Procurando exemplificar o primeiro daqueles movimentos, permito-me chamar a atenção para o uso cada vez mais frequente, por parte das administrações públicas, de redes informacionais flexíveis. Tornando mais transparentes e susceptíveis de avaliação em tempo oportuno as suas decisões, tal uso contribuirá, sem dúvida, para reforçar a participação efectiva dos cidadãos na esfera pública e no funcionamento quotidiano do Estado de Direito Democrático.

Por sua vez, e por força ainda das magníficas potencialidades das novas tecnologias da informação e da comunicação, é patente que começa a ser possível alargar sensivelmente a escala de actuação das comunidades participativas, que, entretanto, para ganharem títulos de legitimidade e eficácia política efectiva, terão de aperfeiçoar critérios de representatividade longamente testados pela democracia formal.

Quando, como hoje acontece, começam a ser pensadas as formas de governação multilateral e democrática à escala internacional mais ajustadas ao estádio actual da globalização, esta abertura das comunidades virtuais a certos princípios estabelecidos da democracia representativa é uma perspectiva que não pode ser negligenciada.

Entretanto, as clássicas discussões quanto ao fechamento do campo político sobre si mesmo, formuladas às vezes na linguagem dúbia da crítica à “partidocracia”, outras vezes como denúncia do alheamento - para uns provocado, para outros inevitável - dos cidadãos-eleitores em relação à vida pública, continuam por resolver, e a girar, em boa parte, em torno das questões que acabei de enunciar.

Creio que a experiência democrática portuguesa das últimas três décadas aponta, a este propósito – ora pela positiva, ora pela negativa, como quase sempre acontece -, alguns caminhos que vale a pena percorrer, se quisermos continuar a fazer da Democracia, ou talvez melhor, da democratização das sociedades, um desígnio mobilizador e um factor de genuína emancipação.

Em primeiro lugar, o caminho de uma defesa intransigente – meço as palavras: intransigente – da separação de poderes (incluindo o “quarto poder”), autêntico patamar civilizacional aquém do qual não é possível assegurar o exercício pleno e autêntico dos direitos e liberdades individuais e se corre o risco de escancarar a porta ao arbítrio dos mais fortes, sejam eles os detentores do capital económico, político, simbólico ou mediático. Separação de poderes não quer dizer sacralização de poderes, que a si mesmos se isentem de qualquer crítica ou aperfeiçoamento reformista – quer dizer, tão só e muito simplesmente, independência, auto-responsabilização e controle recíproco das instâncias que os constituem, sob o pano de fundo legitimador da vontade popular.

O segundo caminho é o caminho do rigor e da transparência em matéria de financiamento dos partidos e da actividade política e de ocupação e acumulação de cargos públicos. Associado a ele, está o combate sistemático contra toda e qualquer prática de corrupção ou de abuso e gestão danosa na utilização de recursos públicos. É um combate pelo bem comum, contra toda a espécie de usurpações pessoais em proveito próprio e contra formas de actuação ditadas por interesses particulares ou mesmo corporativos, um combate a que nenhum cidadão poderá virar costas, se quiser evitar que se instale, insidiosamente, à sua volta, a desconfiança no edifício democrático e o empobrecimento da Democracia.

A recalibragem dos sistemas eleitorais de forma a garantir melhores condições de representatividade, bem como a consagração de novas formas de participação dos cidadãos na definição das políticas públicas apontam outras soluções, complementares entre si, que a Democracia não pode, a meu ver, deixar de ponderar em sociedades cada vez mais diferenciadas, e por isso também mais marcadas pela complexidade de interesses descoincidentes e contraditórios, tantas vezes, aliás, cristalizados em perversas rotinas corporativas.

Não ter em conta estas questões ou fugir a dar-lhes solução justa e equilibrada, pode levar, aliás, a uma quase-submersão da agenda política por uma agenda mediática tantas vezes condicionada, hoje, pela lógica e a contabilidade das audiências, e não tanto pela projecção, no espaço público, dos problemas sociais de fundo que não encontram porta-vozes audíveis na esfera da decisão política.

Aproximo-me, com esta última referência, de um outro problema que, percorrendo, também, desde há muito, a reflexão sobre o ideal e as práticas da democracia, adquire hoje contornos novos e gravidade acrescida.
Refiro-me à coexistência, nem sempre pacífica, nas democracias reais, entre direitos cívis e políticos, por um lado, e direitos sociais, por outro.

São muitos os que vêem nestes últimos um apêndice acessório relativamente a um dom pré-existente, o da liberdade – esse, sim, alegadamente essencial ao ideal de democracia.

Para todos os que, como eu, pensem que a ideia de liberdade é inseparável da ideia de libertação – liberdade-processo mais do que liberdade-estado -, vale a pena insistir em que o exercício de um núcleo básico de direitos sociais é, hoje, consubstancial à Democracia. E isso pela razão fundamental de que a erosão generalizada de tais direitos, sempre tão iminente em sociedades ditas de risco e de incerteza, ao conduzir a formas extremas de apatia cívica e de incapacidade de expressão no espaço público, não atinge apenas os fundamentos da equidade e coesão sociais – atinge, sim, também, o próprio coração dos direitos cívicos e políticos, autorizando até que, paradoxalmente, se fale, a propósito de cidadãos livres, em exclusão e em excluídos.

Que a defesa da Democracia implique, para mim, nas sociedades contemporâneas, atenção redobrada às questões da equidade social e às formas concretas de apropriação (efectiva e não apenas formalmente outorgada) dos recursos e instrumentos da participação democrática – eis, pois, o corolário das minhas reflexões, com que desejo finalizar esta intervenção.

Não terminarei, contudo, sem deixar de agradecer a todos os presentes a sua atenção, e sem deixar de dirigir aos distintos Conferencistas que tanto me honram com a sua participação neste Seminário – os Professores Philippe Schmitter, Dirk Berg-Shlosser, David Beetham, Gordon Crawford – uma palavra de sincero reconhecimento. É um privilégio poder contactar durante este dia com os resultados da vossa reflexão sobre o presente e o futuro da Democracia.

Para o Professor Pedro Magalhães, que tão competentemente delineou o Programa do Seminário, vai também um agradecimento muito caloroso.

Quero, finalmente, dirigir uma palavra de sincera homenagem e reconhecimento a Felipe Gonzalez, que aceitou tomar a seu cargo a Intervenção Final do Seminário. Todos sabemos quanto a Democracia em Espanha, na Europa e em Portugal devem ao seu talento, capacidade reflexiva e energia. Estou certo, por isso, que, com as suas palavras, o nosso Encontro fechará – como dizemos em Portugal - com chave de ouro.

A todos muito obrigado.

PENSAR A DEMOCRACIA

Centro Cultural de Belém

25 de Novembro de 2005