Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão Solene de Abertura do XV Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses

Palácio da Alfândega, Porto
09 de Dezembro de 2005


É sempre com grande satisfação que me dirijo a um congresso de autarcas.

Por razões pessoais que não escondo pois nelas me revejo. Mas também porque as autarquias locais são um fenómeno novo da República democrática que temos vindo a institucionalizar desde o 25 de Abril.

Com efeito, nem a monarquia liberal e nem a 1ª República valorizaram devidamente a dimensão democrática das instituições locais. As câmaras municipais e as juntas de paróquia ou de freguesia tiveram a maior parte do tempo comissões administrativas de simples nomeação governamental cuja composição contrariava, tantas vezes de modo frontal, as preferências políticas dos munícipes e dos fregueses.

O facto causa alguma estranheza pois os monárquicos liberais e os republicanos de 1910 acreditavam na soberania do povo.

Por outro lado, figuras destacadas destes dois regimes políticos, como Alexandre Herculano, um homem respeitado na monarquia liberal, e José Félix Henriques Nogueira, cujos «Estudos sobre a Reforma em Portugal» tanto influenciaram sucessivas gerações republicanas, eram ambos municipalistas fervorosos.

Terão sido as exigências de curto prazo da política que impuseram aos liberais oitocentistas e do começo de novecentos o esquecimento ou secundarização do saudável princípio do municipalismo autónomo, num certo sentido democrático, que aliás marcou presença ininterrupta no nosso País desde o começo da nacionalidade até ao final do século XVIII.

Se a acção dos liberais causa estranheza neste campo autárquico, já não surpreende que o Estado Novo tenha reduzido os municípios e as freguesias a pouco mais do que repartições de execução local de um Estado central autoritário – e, porque autoritário, centralizador.

Por isso, após o 25 de Abril, se todos dávamos por certo que os portugueses seriam capazes de instituir um Estado democrático – desmentindo a doutrina do Estado Novo para o qual a democracia se opunha ao carácter dos portugueses –, já muitos duvidávamos que fosse possível a existência de tantas democracias locais quantos os municípios e as freguesias de Portugal.

Por isso, as autarquias democráticas são – continuam a ser – uma bela surpresa. Os autarcas são os políticos portugueses que aprendem no terreno, em contacto directo com os eleitores. Os autarcas agem numa escala bem próxima do eleitor, que as mais das vezes conhecem pessoalmente.

É uma experiência bem diferente da de muitos outros governantes que foram chamados a funções de responsabilidade democrática por virtude dos seus percursos universitários, partidários, burocráticos ou empresariais, sem terem tido nunca a experiência do contacto com o problema concreto e localizado com o eleitor que reclama solução, ou tão só atenção, sabendo que da resposta que derem e da forma como a deram pode depender uma reeleição.

Por isso – e digo-o com franqueza e sem vaidade –, esta vivência do autarca enriquece o regime político português.

O facto de os autarcas terem quase todos realizado a sua aprendizagem política no terreno, em contacto directo com o eleitor, o facto de terem feito e continuarem a fazer política numa quadrícula de pequena escala, dá ao nosso regime uma riqueza, uma dimensão pessoal, um toque humano, que de outro modo lhe faltaria – ou que, pelo menos, estaria por demais enfraquecido.

É por isso que os autarcas têm sobrevivido. Nasceram nas asperezas de um terreno pedregoso ou arenoso, sabem enfrentar as dificuldades, sabem quase por instinto enfrentar os novos obstáculos que vão emergindo.

Os autarcas encararam com naturalidade a regionalização – na qual muitos poderiam ver uma ameaça aos municípios – e jogaram o jogo das Comunidades Urbanas lançadas pelo anterior Governo. Tanto as Comunidades Urbanas em gestação, como as regiões, previstas e derrotadas – talvez apenas provisoriamente – são um estrato intermédio entre o Governo e o nível municipal.

Os autarcas sabem que deverá existir um estrato intermédio entre o Governo que age na arena mundial e aqueles que tem que fazer frente às necessidades mais comezinhas de qualquer cidadão, desde o fornecimento da água ao aquecimento dos jardins de infância. Competindo à maioria propor na Assembleia da República a exacta configuração desses corpos intermédios, sejam eles os actuais ou outros, os autarcas não têm deixado de ir impondo novas escalas de acção administrativa, adequadas às exigências dos tempos.

Aliás, em certas situações, a iniciativa privada, em contacto com os municípios está já a criar esse mesoescalão da administração da comunidade portuguesa.

Todos conhecem o que está por exemplo a ocorrer no centro do País. Associações de empresários e autarquias locais estão a dotar-se de instrumentos para afirmarem a sua presença e a sua competitividade em Portugal e sobretudo no estrangeiro.

Este mesoescalão é necessário para assegurar a competitividade das cidades portuguesas, como propus em diversas intervenções ao longo dos meus mandatos.

Os autarcas portugueses são sensíveis a esta necessidade de concorrência peninsular, europeia e mundial.
Sabem que têm hoje que concretizar esse aumento da nossa capacidade competitiva do mesmo passo que favorecem a integração em Portugal e na República de antigas e de novas vagas de imigrantes.

Estas novas exigências correspondem a novas dificuldades. Essas dificuldades condensam-se na questão financeira.

Tenho defendido a necessidade de reforma da lei das finanças locais. Em Junho do ano passado, afirmei ser necessário, nesta matéria de finanças locais, "responsabilizar politicamente mais os autarcas, assegurar melhor a equidade e a coesão territorial e garantir com mais segurança o controlo e a sustentabilidade das finanças públicas".

É uma pecha, que nos vem dos tempos da centralização, que os Governos olhem os autarcas como executores de decisões suas ou, quando menos, como objecto de uma «tutela de mérito» operada pela burocracia estatal – tutela que sempre condenei.

Continua a ser «minha convicção que a autonomia financeira dos Municípios só se garante se forem os seus órgãos próprios, que são democraticamente eleitos e democraticamente julgados por isso, a estabelecerem a incidência, as taxas e as isenções dos impostos locais».

Esta ambição, tantas vezes repetida, será porventura excessiva. Mas é indispensável que seja fixada uma fronteira clara entre as competências da administração central e as da local. Sem essa linha de fronteira, os autarcas estarão na triste situação de mendigarem os favores políticos do Governo do dia – e o Governo face aos municípios e freguesias estará na tristíssima função de agente eleitoral do partido que o sustenta na Assembleia da República.

A lei das finanças locais é simultaneamente restritiva e laxista, obscurecendo a responsabilidade política dos decisores municipais.

A conjuntura financeira de Portugal obriga a restrições, e dessas restrições se queixam os municípios e as freguesias que consideram terem as suas responsabilidades aumentadas sem proporção com os meios que lhes são disponibilizados pelo governo e pela Assembleia da República.

Seria imprudente supor que as restrições vigentes serão eliminadas em tempos muito próximos.

Para responderam à falta de fundos, alguns municípios terão a tendência para se endividarem, para além do que a lei manda, pois, estando na primeira linha da satisfação das necessidade dos cidadãos, não querem abrir brechas, talvez irreparáveis, dado o actual espírito público.

Esta tendência seria, porém, fonte de gravíssimos riscos pois o espectro da insolvência municipal teria as mais graves consequências.

As finanças dos municípios têm conhecido sucessivos agravamentos, mas a solução está por enquanto ao alcance de leis avisadas e atempadas.

Se essas leis não forem aprovadas com rapidez, é bem possível que, mais cedo do que muitos supõem, a crise das finanças municipais seja tão ou mais grave do que a do Estado – Estado que tem dado aos municípios, simultaneamente, o grosso das verbas e o grosso dos maus exemplos financeiros.

O Estado, além de vos dar bons exemplos, como parece agora querer fazer, tem que vos dar boas leis.

Tem que vos dar uma boa lei de finanças locais que vos permita ter boa saúde financeira.
Hoje, as finanças municipais estão por demais dependentes do imobiliário.

Como poderá o Estado exigir que as autarquias procedam a um excelente e sustentável ordenamento do território quando sugere, pela receita que lhes consigna ou autoriza, que as autarquias dependam de quem, para mais lucrar, precisa de um permanente e insustentável desordenamento do território?

Esta distracção do Estado, evidentemente, não vos exonera do pecado de omissão.

Do pecado silencioso de nem sempre explicar cabalmente as políticas que aplicam.

Continuam a fazer muito de bom – mas nem sempre anunciam essas boas obras. E, por isso, nem sempre os meios de comunicação social as relatam com o relevo que elas merecem.

Há um outro pecado silencioso que por vezes os autarcas cometem.

Nem sempre separam o trigo do joio.

De facto, os PDMs nem sempre separam os campos de trigo e os campos de joio.

Mas o vosso bom senso e a vossa experiência ensinar-vos-ão a fazer essa distinção necessária, sem causar mais feridas do que as estritamente necessárias.

Se não forem os meus queridos amigos autarcas a fazer essa distinção, outros haverá que tentarão fazê-la.

E fá-la-ão na praça pública. Com alarido. Com meias verdades. Sem rigor nem garantias de defesa.

É do vosso interesse e é do interesse da República que os autarcas portugueses reponham permanentemente a verdade perante os cidadãos sobre a acção das autarquias pelas quais são responsáveis.

*

Caros autarcas:

As finanças existem para servir o homem. Não é o homem que existe para servir as finanças.

Por isso, quero deixar-vos um derradeiro apelo.


Na vossa acção futura, olhai para o futuro.

Passaram os tempos gloriosos do necessário saneamento básico, da indispensável electrificação – e veio o tempo do betão.

Algum betão era, é e será necessário, sem dúvida.

Mas algum dele era também dispensável.

Sei que são capazes de ultrapassar o betão dispensável e de se consagrarem ao enriquecimento intelectual, profissional e humano dos vossos munícipes.

Peço-vos que passem das pedras mortas para as pedras vivas, na metáfora de António Sérgio.

O futuro são as pessoas. O futuro são os vossos filhos.

Ponham os vossos municípios e freguesias cada vez mais ao serviço das pessoas.

Dêem a prioridade à educação.

Se for indispensável subsidiar, subsidiem pessoas e não metros quadrados de território.

Se agirem assim, os vossos filhos terão emprego em Portugal e conservar-vos-ão não só no coração mas também na memória.