Discurso de SEXA PR por ocasião da cerimónia comemorativa do 57º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem

Ordem dos Advogados, Lisboa
10 de Dezembro de 2005


Minhas senhoras e meus senhores,


Quando se cumprem 57 anos sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, num tempo em que eles continuam a ser tão gravemente violados, vale a pena lembrar que não se trata de um projecto de agora, nascido das luzes dos tempos novos, mas de uma aspiração milenar da humanidade, expressa na magnífica proclamação de Hamurabi, 1700 anos antes de Cristo:

“(...) fazer brilhar a justiça para impedir o poderoso de fazer mal ao fraco”.

Foram, todavia, precisos séculos de arbitrariedades e de horrores, de que a II Grande Guerra de 39-45 representou a fronteira do intolerável, para que fosse possível, sob a égide das Nações Unidas, colocar os Direitos do Homem sob a protecção de toda a humanidade, representada na mais universal das suas instituições.

No então recém inaugurado Palácio de Chaillot, proclamou-se à cidade e ao mundo que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, e que todos “são dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros com um espírito de fraternidade”

É com este programa que se inicia a moderna luta pelos Direitos do Homem, à luz de uma Declaração Universal que a Senhora Roosevelt, cuja clarividência e militância nunca é demais encarecer, justamente qualificou de Magna Carta de todos os homens.

É, também, este programa que hoje nos congrega, com a exaustiva consciência de que mal começamos o combate que nos é proposto.

Combate que não se esgota nos acontecimentos que, pela sua espectacularidade, suscitam a atenção e a indignação de todos - o Kosovo, o Afeganistão, a Palestina, o 11 de Setembro, o Iraque, Guantanamo, o 11 de Março, para falar apenas de alguns dos mais recentes, mas que ganha particular relevância aí onde a humilhação e o sofrimento vivem em silêncio à espera de reparação.

É o caso da prostituição e das crianças desvalidas, de que têm cuidado de um modo exemplar as instituições que hoje recebem o prémio “BASTONÁRIO ANGELO D’ALMEIDA RIBEIRO”, a quem presto pública homenagem e público reconhecimento – ao instituidor e aos premiados, a estes, nas pessoas de Manuela Eanes e de Inês Fontinha, que são, uma e outra, credoras da nossa admiração e do nosso respeito, pelo notável desempenho que têm patenteado ao serviço da comunidade.

Minha senhoras e meus senhores,

Portugal, apesar dos níveis apreciáveis de fruição dos direitos humanos que a instauração da democracia veio trazer, tem ainda um longo caminho à sua frente.

A Constituição de 76 representa um momento exemplar de proclamação sem reservas dos Direitos do Homem. E, no entanto, volvidos mais de 30 anos sobre a Revolução de Abril, sobram-nos algumas ilhas, que sem assumirem a dramaticidade das grandes violações, que atingem, reiteradamente, comunidades inteiras, constituem inaceitáveis espaços em que o homem e a dignidade do seu estatuto não estão presentes.

É o caso dos imigrantes, das mulheres vítimas de maus tratos, de muitos condenados e de muitos detidos, dos socialmente excluídos.

Tema de Direitos Humanos é, também, o estado da Justiça criminal, sobretudo nas fases que antecedem o julgamento, e em que ainda não vingou uma cultura de escrupulosa tutela de direitos de arguidos e de vítimas, como reiteradamente sublinhei nas múltiplas intervenções que tive em 2003, a propósito do processo Casa Pia, quando as vítimas pareciam ter saído da cena mediática e o estatuto de arguido não estava a ser respeitado.


Dizia, então, o que parece estar esquecido:

“Perante o horror de que, por incúria nossa, foram vítimas tantas crianças e adolescentes, que nos tinham sido confiados para guardar e educar, impõe-se proclamar aqui a certeza do Presidente da República de que os responsáveis serão severamente punidos e que cessará, finalmente, a impunidade que, décadas a fio, fez deste caso uma vergonha para todos nós”.

E referindo-me ao estatuto de arguido, afirmava, agora em de Setembro de 2003:

“À presunção de inocência tem de aliar-se a lealdade processual, que é o modelo de Justiça penal consagrado quer na Constituição da República, quer nos pactos internacionais de direitos humanos de que Portugal faz parte, com sublinhado para a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o seu indeclinável princípio do julgamento equitativo.

Ora a lealdade processual não é compatível com formas de administração da Justiça em que o julgador, iluminado pela sua convicção, se exima a confrontar o arguido com ela, ou recuse o risco de a ver infirmada por uma instância de recurso.”

O respeito dos direitos humanos na Justiça criminal exigirá que a formação de magistrados seja especialmente exigente nesta área, e que, no quadro da definição e execução da política criminal, sejam instituídos meios de o Governo e o Ministério Público prestarem contas da sua acção.

Não se pense, todavia, que a mudança de protagonistas constitui solução para o que quer que seja. Primeiro, cuide-se do quadro de actuação, e só depois das pessoas e sua eventual substituição, se e na medida em que o novo quadro o possa aconselhar.

É questão, porém, que pela cronologia das coisas já não será tema do meu mandato.

Minhas senhoras e meus senhores,

A comemoração de hoje é História e projecto. Honrando a História, saibamos encontrar as vias de cumprir o projecto.