Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura da I Conferencia de Lisboa sobre o Direito e a Política da Concorrência

Centro Cultural de Belém, Lisboa
03 de Novembro de 2005


Exmo. Senhor Presidente da Autoridade da Concorrência, Prof. Abel Mateus
Exma. Senhora Comissária Europeia para a Concorrência, Dra. Neelie Kroes
Ilustres conferencistas
Minhas senhoras e meus senhores

Quero começar por manifestar a minha satisfação por presidir a esta sessão de abertura, acedendo ao convite que amavelmente o Sr. Professor Abel Mateus me dirigiu.

A realização desta Conferência, e o momento em que se verifica, constituem, por si sós, um marco importante na urgente modernização da economia e da sociedade portuguesas. Depois de ouvir a detalhada explanação do Programa, e observando o notável conjunto de conferencistas, estou certo de que estes dois dias permitirão a todos os participantes uma profícua reflexão sobre o estado actual da teoria e da prática sobre direito e políticas de concorrência, seus problemas e sua provável evolução no quadro do Tratado da União Europeia e das políticas comunitárias e nacionais com ele articuladas. Sobre isso, aliás, todos ouvimos com interesse as palavras da Sra. Comissária, que reflectem a importância e a complexidade da matéria, e o ainda longo caminho a percorrer na busca da harmonização.

Portugal deve à sua adesão à União Europeia o impulso decisivo na criação de instrumentos modernos de promoção da concorrência e de regulação da actividade económica, nomeadamente no que se refere ao combate a práticas comerciais restritivas e aos abusos de posição dominante. Partimos com muito atraso e temos um longo caminho a percorrer, mas é notável o que foi realizado nos últimos dez anos, criando uma consciência completamente diferente entre a generalidade dos agentes económicos e dos cidadãos quanto à necessidade de observar regras e quanto ao conteúdo de direitos e deveres, em quadros estáveis não dependentes de flutuações conjunturais.

Para os defensores radicais do mercado, qualquer forma de regulação aparece como um obstáculo à eficiência e é por isso considerada desnecessária. No mundo real, todavia, a regulação pode disciplinar e agilizar as relações económicas e compensar não apenas "falhas de mercado" mas enormes discrepâncias entre a teoria e a prática.

Ao longo de grande parte do século passado, os sectores mais importantes das maiores economias do mundo ocidental, e nomeadamente dos Estados Unidos da América, foram alvo de quadros regulatórios apertados e respeitantes a todos os aspectos da sua actividade, sem que isso tenha deixado de permitir o extraordinário sucesso económico verificado, sobretudo no pós-guerra. Foi o caso da electricidade, das telecomunicações, dos transportes, dos "media", entre outros.

Nas últimas duas ou três décadas assistiu-se todavia a um forte movimento ideológico anti-regulação, considerando que ela tinha ido longe de mais ou que a evolução tecnológica e a globalização deixavam de a justificar. Aliás, muitos dos debates sobre a regulação e, a partir dos anos setenta e oitenta, sobre desregulação e re-regulação, sempre tiveram uma forte e natural carga ideológica, por vezes obscurecendo as próprias origens da necessidade de regulação - protecção dos mercados e dos consumidores - e enfatizando os vícios e as derivas burocráticas das agências regulatórias, deste modo procurando inverter o ónus da justificação da própria regulação.

Mas convém ter presente que, sobretudo à medida que os Estados têm deixado de intervir directamente na economia, o bom funcionamento desta requer a existência de formas inteligentes e ágeis de regulação, e os interesses dos cidadãos impõem que ela abranja também outros aspectos da vida em sociedade, em que existe o risco de sérias externalidades negativas - casos da legislação anti-poluição e ambiental em geral, da segurança no trabalho ou da saúde. Isto bastaria para nos lembrar que é inevitável (e desejável) que questões ideológicas e políticas relativas ao modelo de sociedade e ao poder económico estejam presentes sempre que se debate a regulação, não a reduzindo a um mero instrumento técnico.

Aliás, as práticas abusivas que as autoridades regulatórias, nomeadamente no campo da concorrência, identificam e punem geram prejuízos sobre agentes económicos e pessoas concretas - mesmo que eles, por vezes, disso não tenham perfeito conhecimento. O cidadão-consumidor tem cada vez mais escolha, mas está também sujeito a maiores abusos.

Minhas senhoras e meus senhores:

A criação, em Portugal, de Autoridades Sectoriais dotadas de ampla autonomia, a partir de 1996, foi um passo decisivo, e o modelo seguido, sendo exigente e naturalmente sujeito a avaliação periódica, já mostrou as virtualidades do caminho encetado, por vezes em áreas de enorme complexidade. A atribuição de poderes regulamentares, de supervisão e sancionatórios a essas Autoridades, no quadro das orientações estratégicas do Governo, e de legislação normativa específica, visou assegurar a desejável estabilidade dos diversos quadros regulatórios, necessários face à privatização de actividades tradicionalmente asseguradas pelo Estado, ou em que este tinha peso determinante. Esta desgovernamentalização do modelo regulatório é seguramente exigente, mas introduz um referencial de autonomia e previsibilidade que, a prazo, não deixará de beneficiar produtores e consumidores. A opção por este modelo de regulação sectorial pareceu-me por isso acertada quando foi adoptada e tudo deverá ser feito para que se consolide.

A criação da Autoridade da Concorrência veio concluir essa primeira fase de criação das instituições básicas, e começa agora a mostrar a sua importância crucial na modernização da nossa economia, devendo articular a sua acção com as Autoridades sectoriais, com as entidades governamentais competentes e com a administração, com organismos virados para a protecção do consumidor e com o poder judicial.

Os desafios que temos pela frente, nestas matérias, obrigam os agentes económicos e os cidadãos, mas também os governos, a administração pública e o sistema judicial, a um esforço de adaptação e à criação de novos quadros de referência.

Com efeito, embora Portugal tenha começado a criar um quadro legislativo sobre defesa da concorrência desde a sua adesão à União Europeia, a verdade é que a prática demonstrou como não basta o esforço legislativo, sobretudo quando a cultura subjacente é predominantemente alheia às questões da concorrência. Não é seguramente um dos menores efeitos do regime político anterior a 1974 a prevalência de mentalidades proteccionistas, como ainda hoje se pode verificar em tantos sectores da nossa sociedade.

E é por isso que a actuação de entidades como a Autoridade da Concorrência, para além dos poderes de supervisão e investigação que detém, se reveste de enorme importância na modificação dessa cultura e na pedagogia das boas práticas. Recentes actuações e decisões em diversos sectores, com a clara explicação dos procedimentos seguidos e dos efeitos das práticas sancionadas, tiveram um enorme impacto mediático, como se sabe, mas deram sobretudo um contributo incalculável para a consciencialização de agentes económicos e cidadãos.

O poder de dissuasão que actuações deste tipo têm está no entanto, como já referi, criticamente dependente da modernização da administração pública e da especialização e celeridade do sistema judicial, para que, sem prejuízo de legítimos direitos de defesa, não se percam nos tempos de decisão sobre recursos muitos dos efeitos positivos possíveis.

Trata-se, por vezes, de matérias muito complexas, e é necessário que todos os agentes envolvidos se actualizem e estudem não apenas a legislação, mas também os casos que, a nível nacional e da União, são dirimidos, alguns dos quais, recentemente, envolveram empresas portuguesas. A realidade é dinâmica, e muito há ainda a fazer na harmonização e na aplicação do princípio da subsidariedade, com as dificuldades adicionais trazidas pelo alargamento. Para um país como Portugal, é decisivo que se consiga um equilíbrio que leve em conta as diferentes realidades nacionais e permita tratar diferentemente o que é diferente, sem prejuízo dessa harmonização.

Internamente, o contínuo aperfeiçoamento legislativo, a importância dos tribunais no combate à cartelização e a diversas formas de restrição da concorrência e a colaboração institucional são essenciais. Mas, se as investigações ou recomendações em preparação pela Autoridade da Concorrência, em diversos sectores, mostram o muito que está por fazer, elas são também a prova clara de que estamos no caminho certo e que nada poderá ser como dantes.

Concessões, empreitadas, concursos públicos, profissões liberais, serviços, escrutínio de fusões e aquisições - todas são áreas onde a actuação da Autoridade da Concorrência tem um elevado interesse público. Que o sucesso da sua actuação a venha a tornar cada vez mais compreendida são os votos que aqui deixo.

Esta Conferência, pelos temas que vai discutir e pela qualidade dos oradores, será uma realização marcante. Por isso também, quero mais uma vez felicitar a Autoridade, na pessoa do seu Presidente, pela oportunidade e coragem na sua promoção, e a todos desejo um bom trabalho!