Sessão Solene de Abertura da VIII Legislatura,

Assembleia da República
19 de Novembro de 1999


A Assembleia da República inicia com esta cerimónia uma nova prática parlamentar. Ao fazê-lo sublinha e reforça o seu papel de pilar do regime democrático. E, em certo sentido, presta também uma homenagem pública aos eleitores que conferem a legitimidade aos deputados que a compõem.

Saúdo esta iniciativa. Revejo-me na riqueza do seu simbolismo. E reconheço a importância política deste gesto inovador. Estou certo de que as cerimónias de Abertura Solene da Legislatura passarão a constituir marcos da nossa vida democrática, oportunidade de exaltar o papel do sistema representativo na nossa democracia e de reflectir sobre aspectos da nossa vida democrática.

Considero um privilégio o convite para participar nesta cerimónia. Privilégio que sentidamente vos agradeço.

Saúdo a nova VIII¬ Legislatura, saída das eleições de 10 de Outubro, na qual se renovou o princípio da representação assente no sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, essência da democracia.

Saúdo a Assembleia da República, representativa de todos os cidadãos portugueses. Saúdo os deputados que nela representam todo o país.

Saúdo os Senhores Membros do Governo.
Saúdo os Senhores Embaixadores e as demais autoridades que se dignaram, com a sua presença, sublinhar a dignidade e a importância desta sessão solene.

Faço votos de um profícuo trabalho parlamentar. E reitero solenemente a minha disponibilidade para um estreito diálogo institucional, assente no princípio do respeito pela dignidade e autonomia dos respectivos órgãos de soberania.

Senhor Presidente,

Excelências,

A existência da democracia em Portugal implicou décadas de luta. Várias gerações se sacrificaram nessa luta prolongada, algumas das quais estão presentes neste Parlamento.

A ausência ou o desrespeito de direitos, liberdades e garantias fundamentais caracterizava a natureza ditatorial do regime político a que o 25 de Abril de 1974 pôs fim. Mas a ditadura não impedia ou limitava apenas as liberdades individuais. Sem democracia era igualmente impossível garantir condições de modernização e desenvolvimento sustentado do país.

Distantes do poder, por nele não se sentirem representados, aos portugueses só restava ou o alheamento da vida política ou o inconformismo do combate contra o regime. Impossibilitados de encontrar no país condições de sobrevivência digna e um horizonte de esperança, só restou a milhões de portugueses o árduo e doloroso caminho da emigração.

Violando todos os direitos dos cidadãos, incapaz de aceitar os direitos dos outros povos, designadamente o direito à autodeterminação, o regime de então isolou Portugal da comunidade internacional.

É o regime democrático que assegura aos portugueses os direitos fundamentais, que reconhece o legítimo direito à independência das colónias portuguesas, que torna possível novas condições de desenvolvimento económico e permite ao país granjear o prestígio internacional de que hoje desfruta.

Não foi um percurso fácil. Vivemos crises políticas, económicas e sociais muito difíceis. Mas ultrapassámo-las sempre. Para isso contribuiu decisivamente um conjunto de factores. Sublinho apenas dois.

Em primeiro lugar, os portugueses participavam activamente na vida política nacional, revendo-se na legitimidade e representação que assim conferiam aos partidos políticos.

Em segundo lugar, em momentos decisivos, os partidos compreenderam que o sucesso do novo regime democrático dependia da sua capacidade de dar resposta aos principais problemas do país e que isso implicava, tanto alcançar um conjunto essencial de consensos e compromissos políticos nacionais, quanto assumir sem equívocos a suas diferenças, como forma de identificação dos eleitores e clarificação de opções. Ambos os caminhos são condições naturais de estabilidade de uma democracia pluralista, ambos foram ensaiados e provaram a sua eficácia.

Ambos foram decisivos, permitindo à democracia assegurar o progresso do país e eventualmente até sobreviver como regime.

Por isso, em resposta ao vosso convite, quis estar aqui hoje, no início desta Legislatura - para expressar a importância decisiva que atribuo à democracia representativa e ao papel central e insubstituível que nela o Parlamento desempenha. Os deputados estão investidos de uma das mais nobres missões e responsabilidades que qualquer cidadão português pode ambicionar: a de representarem este país que todos amamos, e assim servir Portugal.

Sei que à honra de que estão investidos corresponderão com o melhor do vosso esforço. Um parlamentar como eu, hoje com a responsabilidade de representar a República Portuguesa, de ser o garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições, não podia deixar de expressar aqui uma palavra de incentivo e de respeito por este Órgão de Soberania que deve, enquanto tal, ser alvo da maior consideração por parte de todos os portugueses.

Sr. Presidente,

Excelências,

Os regimes democráticos são, por natureza, regimes abertos. Por isso, a sua dinâmica depende da capacidade de entenderem as transformações da sociedade e de se aperfeiçoarem, como forma de dar resposta a novas percepções, exigências e realidades.

Um regime que se fecha sobre si próprio provoca, mais cedo ou mais tarde, uma crise na sua relação com os eleitores que, mesmo sem explicitamente o desejarem, se distanciam, cada vez mais, de práticas e métodos que já pouco lhes dizem.

É preciso estar sempre um passo à frente. Olhar com sensibilidade para os sinais que nos chegam da sociedade. Antecipar o futuro no que ele tem, tanto de encorajador como de preocupante.

Dar resposta, com lucidez e visão, aos desafios que assim se nos colocam. E perceber que manter a vitalidade da democracia deve prevalecer sempre como objectivo sobre a preservação de qualquer outra consideração de interesse individual ou de grupo.

Permitam-me, por isso, que partilhe convosco o meu olhar sobre o sistema político português, centrado em três considerações: sobre as realizações, sobre os sinais e sobre as exigências.

A democracia portuguesa pode e deve orgulhar-se das suas realizações. Portugal credita-lhe o progresso e o desenvolvimento alcançado nestes 25 anos. E, no essencial, os portugueses revêm-se, com justa razão, na nossa democracia.

Sei que as taxas de abstenção parecem indicar um alheamento dos eleitores. Não serei eu a negar esse facto. Mas importa, também, colocá-lo no seu devido contexto. Uma democracia estabilizada, num quadro de crescente melhoria das condições de vida da população, gera por vezes factores de confiança no funcionamento do sistema político que muitos eleitores traduzem em comportamentos de abstenção. Isso não invalida que cresça, a par desta, uma abstenção por insatisfação face ao funcionamento da democracia representativa, ou por exclusão social ou política. Esse é um sério sinal a considerar.

Creio, além disso, que todos reconhecerão que as percepções críticas quanto ao funcionamento do sistema político coincidem com aquelas que são hoje correntes nas democracias modernas, não demonstrando o país, por isso, nenhuma característica que revele uma particular vulnerabilidade do regime português.

É, todavia, indiscutível, que recebemos da sociedade um conjunto de sinais que aconselham uma reflexão profunda e uma actuação urgente. Porquê urgente? Porque é sempre melhor reformar, de uma forma controlada e consensual, quando a credibilidade do sistema ainda é evidente, do que fazê-lo sobre a eventual pressão de uma crise mais profunda.

Precisamos todos de olhar com rigor para esses sinais de distanciamento entre eleitores e eleitos e entre eleitores e certas práticas políticas. E, assim, reconhecer que, se eles existem, é porque são fruto de uma insatisfação que se desenvolve na população à qual se não deu resposta. E não, seguramente, a um qualquer excesso de atenção da Comunicação Social a aspectos negativos do funcionamento do nosso sistema político ou a práticas individuais que, só envolvendo os próprios, descredibilizam, todavia, o sistema no seu todo.

A liberdade de expressão é um bem inalienável de uma democracia e uma das condições que permitem a permanente capacidade de avaliação pelos eleitores da prestação individual dos responsáveis políticos e do grau de satisfação face ao desempenho do sistema político.

É fácil a identificação das críticas que progressivamente se avolumam e consolidam. Sobre elas muito se tem dito. Uma coisa parece clara, apontam todas num mesmo sentido: um distanciamento crescente entre representantes e representados e uma depreciação genérica da avaliação feita pelos cidadãos do exercício de funções públicas.

É igualmente fácil identificar o sentido das expectativas de mudança: Elas apontam para a necessidade de uma rigorosa separação de poderes; de uma efectiva transparência da Administração; de uma clara e exigente identificação de incompatibilidades e conflitos de interesses no exercício de cargos públicos; de um sistema claro e credível de financiamento da actividade política; de uma austeridade nos gastos das campanhas políticas; de uma revisão constitucionalmente compaginável das leis eleitorais; de uma consagração de novas formas de participação dos cidadãos na definição das políticas públicas, e de formas inequívocas de combate a toda e qualquer prática de corrupção.

O sentido a dar a estas reformas também parece ser claro. É necessário assegurar um efectivo reforço da proximidade, da participação e da confiança no sistema político. É preciso melhorar a comunicação entre os responsáveis políticos e os cidadãos, revalorizar a prestação do serviço público, consolidar os partidos políticos e fortalecer as instituições representativas.

Não existe uma forma única de alcançar estes objectivos. Há, como é natural e desejável, uma diversidade de propostas que identificam cada um dos partidos com a solução que consideram mais correcta. Muita da legislação que importa alterar exige, e bem, uma maioria de dois terços. Outras mudanças dependem apenas das convicções e empenhamento político das maiorias parlamentares.

O que parece, porém, inquestionável é que não é possível adiar mais algumas destas decisões. E que importa voltar a estabelecer um conjunto de compromissos e consensos políticos interpartidários, como forma de evitar uma crise maior do sistema de representação.

Foi essa capacidade de estabelecer atempadamente consensos, quando a Constituição assim o exigia, que permitiu à jovem democracia portuguesa ultrapassar muitos dos problemas que lhe colocaram. É isso que de novo é necessário fazer.

Os portugueses desejam essas reformas. E o regime necessita delas. Os partidos têm debatido estes problemas. Quanto mais tarde elas forem introduzidas mais difícil será restabelecer a confiança, superar o distanciamento e credibilizar a actividade política.

Creio, convictamente, que as reformas têm de ser profundas. Elas terão, a título de exemplo, de responder a estas perguntas:

Como é que se assegura a confiança no financiamento dos partidos quando são evidentes os gastos em meios de propaganda de nulo impacto, e opacas aos cidadãos as fontes de financiamento dessas despesas?

Como é que se assegura a proximidade entre os eleitores e eleitos, quando a esmagadora maioria dos eleitores ignora em que candidatos está a votar, e uma percentagem dos eleitos se faz imediatamente substituir nas funções políticas para que tinha sido eleito?

Como é que se garante a confiança na administração quando tantas das suas decisões ou a fundamentação de procedimentos, permanece inacessível aos cidadãos?

Como é que se assegura o envolvimento cívico da população quando as decisões são tomadas de forma distante e não participada pelos seus destinatários?

Como é que se credibiliza um sistema político que, paralisado pelo argumento demagógico da comparação entre o ordenado mínimo nacional e as remunerações dos titulares de cargos políticos, vê, ano após ano, afastarem-se da vida pública tantos portugueses de grande valia?

Como é que se dignifica a actividade política quando aos líderes dos partidos da oposição não é conferido pelo Estado um estatuto protocolar compatível com o papel insubstituível que desempenham no país?

Como manter a confiança dos eleitores se, à acumulação dos sinais de desencanto que enviam, se responde com a acumulação dos anos em que se adiam as soluções?

Olho com atenção redobrada e preocupação crescente para os sinais que se adensam, e pressinto urgência na resposta que tarda. Partilho convosco estas minhas preocupações, consciente, todavia, que o desencanto de muitos cidadãos não se prende apenas com esta ou aquela deficiência no funcionamento do sistema político. E que o debate sobre estas deficiências não pode iludir outras questões de fundo.

Tenho consciência que estamos perante novos patamares de exigência por parte dos portugueses. De desejo de exercício de novos direitos. De reivindicação de novas formas de participação política. De uma consciência mais informada e interventora da dimensão de muitas desigualdades que subsistem na sociedade portuguesa.

De um sentimento de impotência de uns e indignação de outros perante o aparecimento de novas formas de exclusão social, política e cultural.

A percepção da natureza das desigualdades é hoje mais aguda e assente em níveis de informação muito superiores. A ideia, mesmo se globalmente imprecisa, de que os crimes de colarinho branco ficam sempre impunes, de que quem mais ganha menos impostos paga, de que a fronteira entre interesses privados ou corporativos e interesses públicos nem sempre é clara, de que a oportunidade no exercício da justiça pode não depender de aspectos processuais, de que o acesso aos cuidados de saúde pode traduzir-se numa espera desencantada, geram também fenómenos de distanciamento e desencanto. Quis ser claro, mas desejo, também, ser justo. Estes são velhos problemas que atravessaram vários governos, diversos partidos, mas um só país que para eles olha com um sentimento cada vez mais crítico.

Também aqui, hoje, uma vez mais, é preciso que a democracia portuguesa seja, em tempo útil, capaz de gerar níveis satisfatórios de resposta a estas, entre outras, preocupações.

Também aqui, de novo, importa estabelecer os consensos, quando necessários, e as rupturas, quando essa for a única via possível, para restabelecer a confiança numa sociedade mais justa e equitativa.

A soma destas percepções desencantadas constitui para mim um sinal de alerta. Portugal tem hoje condições invulgares para dar resposta a alguns destes problemas. Há uma sociedade dinâmica, estabilidade política e vive-se um período de confiança económica.

Partilho convosco estas minhas preocupações para concluir num apelo e numa manifestação de disponibilidade.

O apelo é a que se tenha em atenção o sentido de prioridade de que se parecem revestir algumas das reformas a introduzir no funcionamento do sistema político e na promoção da equidade social.

A manifestação é de disponibilidade total para contribuir, dentro dos limites constitucionais, com o exercício de uma magistratura de incentivo, conciliação e consenso, quando disso puder depender o sucesso das respostas a dar às expectativas dos portugueses.

Ninguém se pode excluir do debate dos temas hoje aqui abordados, por achar que dele não faz parte. A dignificação da vida política a todos diz respeito. E a todos deve envolver, na diversidade das competências próprias de cada órgão de soberania. O Presidente da República não é um espectador distante. Reconheço-me nas vossas preocupações. Por isso, entendo dever contribuir para estimular o debate e estar disponível para ajudar a incentivar consensos.

Referi-me a um caminho de reformas que entendo tanto necessário e oportuno como dignificante e honroso. Permitam-me que, a terminar, explicite a minha opinião sobre o sentido último desse caminho.

O primeiro aspecto que quero destacar é o da revalorização da função política enquanto função que se cumpre e esgota no serviço público. Os valores republicanos, neste domínio, devem ser reafirmados. A actividade realizada pelos responsáveis políticos não corresponde a uma forma autónoma da cidadania. Os políticos são cidadãos que desempenham cargos de representação, por definição sujeitos a controle democrático e a regras de transparência, e portanto amovíveis. O seu estatuto não é - não pode ser nunca - o de um grupo separado, com lógica de defesa e reprodução próprias, mas o de cidadãos que transitoriamente exercem uma actividade em favor da comunidade que neles directa ou indirectamente depositou confiança para tal.

Devemos velar pelo prestígio desse estatuto. Não para que daí os políticos recolham benefícios, seja de que natureza for, mas porque dessa forma é a sua actividade que ganha apreço e respeito, e, consequentemente, eficácia.

Estamos todos empenhados em vincar na política a razão pública que a fundamenta e em devolver aos políticos o orgulho de serem políticos.

Acredito nesse objectivo e acredito que - todos - o podemos alcançar.

Viva a democracia! Viva Portugal!