Mensagem de Abertura do Ano Judicial


25 de Janeiro de 2000


No momento em que a inquietação com o estado da Justiça atravessa, fundadamente, toda a comunidade, não quero deixar sem uma palavra de apreço todos aqueles que, com enorme empenho e dedicação - magistrados, advogados, solicitadores, oficiais de justiça - têm contribuído, em condições particularmente adversas, para que a administração da Justiça se faça - com múltiplos bloqueios, disfunções várias, inaceitável morosidade, é certo, mas garantindo, apesar disso, o essencial da segurança das pessoas e dos bens, sem a qual soçobrariam os próprios fundamentos do Estado.

Esta palavra de apreço, que é justa e que é devida, não se esgota, todavia, em si própria.

Pretende ainda significar que a abordagem dos graves males de que padece o sistema judiciário tem de ser feita com o senso e a ponderação de quem sabe que se a mudança é imprescindível e inadiável, a sua própria natureza e objectivos impedem resultados de um dia para o outro.

Exige-se, por isso, no entretempo, uma consciência expressa e vigilante quer das debilidades, quer das valias do sistema, sob pena de a exclusiva acentuação das fragilidades distorcer a realidade e ser factor de acrescida descredibilização da Justiça e dos seus agentes.

Com o que todos perderíamos.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Tenho privilegiado a abertura solene do ano judicial, quando se reúnem os mais altos responsáveis pela administração da Justiça e larga audiência dos seus vários agentes, para uma chamada de atenção sobre alguns dos males do sistema e riscos que comportam, pari passu com a identificação de vias de abordagem de soluções e de remédios.

Referi-me, então, à toxicodependência como factor de criminalidade, à insuficiência de resposta à intranquilidade urbana, à frequente impunidade dos poderosos, aos excessos da prisão preventiva, ao escândalo das prisões sobrelotadas e doentes, com a maior taxa média de encarceramento de toda a Europa, à confrontação, ora expressa, ora enviesada, entre agentes do poder político e do poder judicial. Sem esquecer as crispações corporativas e a progressiva constatação de que a Justiça, sendo serviço público, com frequência prestava mal ou a desoras as utilidades que a justificam, exigindo-se uma ordenação do sistema de harmonia com os novos saberes no domínio da concepção e gestão de organizações e de procedimentos.

De alguma coisa valeu.

Cito, a título de exemplo, a toxicodependência, responsável por larga fatia da insegurança urbana, que passou a ser considerada como exigindo intervenções de natureza vária, com abandono da perspectiva tradicional de tratamento do fenómeno da droga no mero circuito da repressão; ou a diminuição do uso da prisão preventiva, agora ordenada de modo mais criterioso, e com melhor avaliação da sua necessidade em concreto, como a estatística tem evidenciado; ou ainda a intenção proclamada de aplicar à mudança do sistema judiciário os novos métodos de gestão de organizações e de procedimentos, que exigem colaboração pluridisciplinar entre juristas e gestores, cujos saberes diferenciados são, todos eles, indispensáveis para a reforma da Justiça.

Devo, no entanto, reconhecer que o aplauso suscitado pelas anteriores intervenções nesta sede e pelas iniciativas que propus, nem sempre foi acompanhado quer nas intenções, quer nos actos.

Apesar disso, não posso, não devo esmorecer.

É esse o imperativo da cidadania e da função suprema para que fui eleito. E não serão razões de calendário político que levarão o Presidente da República a mudar o tom e os termos em que tem intervindo nas anteriores sessões de abertura do ano judicial.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Entrados no ano 2000, o sentimento de Justiça da comunidade é, de novo, abalado, agora pelo risco de prescrição do procedimento criminal de casos que, pela sua natureza e gravidade, foram causa de profunda e compreensível perturbação da confiança nas instituições, que só o apuramento de responsabilidades em Juízo e o julgamento tempestivo dos eventuais culpados poderia restabelecer de modo pleno. E vem isto de par com a divulgação dos milhares de casos prescritos nos últimos anos, a suscitar compreensível perplexidade.

Pôs-se o acento tónico na inaceitável morosidade dos procedimentos; e medidas foram, em boa hora, tomadas, para ajuizar se a negligência de alguns não se terá associado à lentidão do próprio sistema.

Mas convém não esquecer que a responsabilidade desta situação terá de ser partilhada com o legislador de 87, que, sem se dar conta das consequências que as alterações então introduzidas na lei de processo traziam para a prescrição do procedimento criminal, manteve essa desatenção até 1995, deixando o sistema, quanto a este período de tempo, desarmado contra os males, que são de décadas, da lentidão dos processos.

E isto porque, relativamente a todos os crimes praticados entre 1988 e 1995, deixou de ser possível beneficiar da ampliação que, na prática, sofria o prazo de prescrição do procedimento criminal, por via de um acto processual que tinha esse efeito ampliativo, e que, com o Código de Processo Penal de 1987, desapareceu da nossa ordem jurídica, sem nada de equivalente que o substituísse.

É bom que a comunidade saiba que esta omissão legislativa é irreparável, seja pela Assembleia da República, seja pelo Governo; e que só a aceleração dos processos criminais relativos àquele período, que ainda se encontram pendentes, impedirá que, aqui e ali, sejamos defrontados com novas situações de prescrição e com o cortejo de danos daí emergente.

E isso conduz-nos à questão que, afligindo a Europa inteira, assume entre nós contornos particulares - a morosidade dos processos judiciais, a impedir uma decisão pronta e eficaz das questões submetidas a Juízo, sem o que não é possível falar de verdadeira Justiça.

Tem sido traçado o quadro de razões que explicam a inaceitável lentidão do sistema judicial, com largo consenso, no diagnóstico, entre decisores políticos e agentes da Justiça. E se divergências se suscitam no domínio das soluções, todos conviremos em que a mudança terá de se fundar numa cultura de rigor e de responsabilidade, que todos assumam e que a todos se aplique.

E é, por isso, que se impõe, desde logo, ter por claro que o facto de constituir regra comum de todas as profissões forenses serem os magistrados, os advogados, os solicitadores, os oficiais de justiça, servidores do Direito, tal não passará de pia intenção, enquanto não tiver correspondência adequada no estatuto de cada profissão.

A tutela que esse estatuto comporta será, por certo, reforçada, pelo brio profissional de tantos deles e pela ética irrepreensível com que exerçam a sua função.

Mas a garantia de um estatuto, se sai fortalecida pela virtude de cada um, não é nela que tem de assentar, mas na sanção que corresponda à sua violação.

A experiência de mais de vinte e cinco anos de exercício da advocacia, autoriza-me a recordar perante V.Exas, com conhecimento de causa, o rigor e a responsabilidade que é o quotidiano da vida dos advogados.

Nesse quotidiano, por exemplo, a propositura de acções tem de ser feita dentro dos prazos previstos na lei; as pretensões da contraparte, contestadas em tempo; as testemunhas cujos depoimentos podem fazer absolver o réu hão-de ser apresentadas no período assinalado pela lei; e o recurso de uma sentença que manda encarcerar o constituinte tem de ser interposto no prazo legal.

Se o advogado assim não fizer, deitará a perder a causa que lhe foi confiada, tantas vezes com lesão definitiva e irreparável dos interesses ou da liberdade dos constituintes e, portanto, da própria Justiça.

E digo da própria Justiça, porque a lei quer que os direitos contestados, ou em risco, sejam protegidos pelos tribunais; que as pretensões de cada um não sejam decididas sem audição da contraparte; que a sanção pelo crime imputado a um arguido não se aplique sem a produção das provas de que ele disponha para contrariar a acusação; ou que uma condenação em primeira instância não determine a prisão do acusado sem que um tribunal de recurso a reaprecie.

Ora, quando os advogados não cuidam, no tempo legalmente determinado, dos interesses dos seus constituintes, ou quando, por sua negligência, cometem um erro profissional que lesa tais interesses, estão sujeitos a punição disciplinar e obrigados a indemnizar os constituintes pelos prejuízos causados.

E é por isso que, para cumprirem em tempo e tratarem de modo profissionalmente eficaz as causas que lhe são confiadas, têm de limitar a quantidade de mandatos que aceitam.

É esta exigência de rigor e de responsabilidade que tem de ser estendida aos magistrados judiciais, ao Ministério Público e aos oficiais de Justiça.

A benefício de uma Justiça pronta e eficaz, sobretudo quando sabemos que é aí que reside um segmento importante da morosidade na sua administração.

É, na verdade, inaceitável que os prazos para os actos dos magistrados e das secretarias judiciais sejam tão só ordenadores, isto é, uma referência meramente programática, e não representem, com rigor, o tempo de duração de um processo.

Para que deixe de ser assim, para que, também eles, estejam obrigados a um estatuto de rigor e de responsabilidade, tornam-se necessárias condições.

Por um lado, que, em cada período de tempo, os processos a cargo de cada magistrado e, portanto, das respectivas secretarias, não ultrapassem um limite razoável, embora exigente, que tenha, obviamente, em conta as várias espécies de processos.

Depois, uma clara simplificação dos actos, quer dos magistrados, quer das secretarias, com adequado aproveitamento dos meios expeditos de comunicação, de modo que possam ser praticados em tempo útil e em tempo útil produzirem os seus efeitos.

E isto tanto em processo criminal, como em processo civil e laboral.

Permito-me questionar três exemplos.

Na fase de investigação criminal, responsável por tanta da morosidade existente, por que razão, apresentada uma queixa-crime na Polícia Judiciária, não deverá ser ela, de imediato, remetida ao Ministério Público, sendo as diligências que este entenda determinar àquela Polícia, comunicadas por meios electrónicos e informáticos, alguns já disponivéis, com o que se poupariam semanas de trânsito entre edifícios, a determinar, logo de início, um inútil atraso?

Ou, na mesma fase, qual a utilidade de, formulada uma queixa com detalhe e circunstâncias, se fazer perder uma manhã ou uma tarde a um funcionário, quando não ao Ministério Público, e sempre ao queixoso, para, em Juízo ou na Polícia Judiciária, se proceder à mera confirmação do que já consta da queixa?

Ou ainda para que se mantêm as exigências de forma das sentenças, que continuam a pesar, injusta e inutilmente, sobre os magistrados judiciais?

Para a sua suficiência, terá o relatório, em que se descreve longa e detalhadamente o litígio, alguma utilidade, quando tudo já consta do processo e bastaria remeter para as peças processuais pertinentes?

Ou em matéria cível, para que servirá relatar os factos provados, quando já constam da decisão sobre a matéria de facto, para que simplesmente se remeteria?

Ficaria, então, e apenas, a identificação do direito aplicável e, em face dele, a decisão.

E aí, deveria ter-se por regra, nas classificações de serviço, que as sentenças, como, aliás, os acórdãos, não são dissertações de mestrado, nem monografias curriculares. E que, por isso, quer a justeza da identificação do direito aplicável, quer o mérito da decisão, em nada saiem beneficiados por largas exposições doutrinárias, recheadas de citações, ou por extensas excursões jurisprudenciais.

Doutrina e jurisprudência, devem conhecê-las, quer os patronos das partes, quer os magistrados que reapreciem a decisão.

E se as não conhecem, não é o abono doutrinário ou jurisprudencial que tornará mais clara ou mais justa a decisão proferida.

Estes exemplos, e tantos se poderiam citar, aconselham uma revisão criteriosa das exigências de forma dos actos dos magistrados e das secretarias, para que possam ser, na medida em que fique cumprida a sua função, simplificados; e quando representem mera inércia da burocracia processual, eliminados.

Merece aqui especial atenção o regime das notificações, significativamente melhorado na anterior legislatura, mas que constitui ainda um dos factores preocupantes da inaceitável morosidade na administração da Justiça.

É matéria em que terá de se exigir aos cidadãos que cumpram com especial diligência o seu dever de cooperação com as instituições judiciárias, que faz parte de um mínimo de ética democrática.

Para isso, deverão ser ponderados os critérios de domicílio que viabilizem, com segurança, a notificação postal, dando-se para todos os efeitos como notificados aqueles que não comuniquem a alteração de domicílio ou que não cumpram as diligências normais para tomar conhecimento da correspondência judicial que lhes seja endereçada.

É óbvio que uma medida deste tipo não deve ser posta em prática, sem uma adequada campanha de informação pública. Mas feito o esclarecimento, não pode a comunidade inteira ter mais um factor de bloqueio do sistema, pela incúria de muitos em cumprir o dever cívico de cooperar na administração da Justiça.

A tutela desse dever de cooperação passa, também, por os tribunais disporem de meios que lhes permitam fiscalizar, ainda que aleatoriamente, a genuinidade das faltas por doença a actos judiciais. E de utilizarem tais meios de forma habitual.

Trata-se de uma escandalosa situação de laxismo cívico, a que importa pôr cobro, e cujo combate constitui mais um elemento de valia para que os processos cheguem a seu termo em tempo útil.

Mas se há muito a reformular para que se torne visível a mudança necessária, impõe-se um melhor aproveitamento de meios processuais, quer na jurisdição penal, quer na civil, introduzidos, ou ampliados, na anterior legislatura, e cujos efeitos ainda se não fazem sentir.

Refiro-me, em matéria penal, ao reforço de atenção e de empenho do Ministério Público, quer na utilização dos processos abreviados, quer na iniciativa de suscitar a suspensão dos processos.

Previstas, uma e outra, em condicionalismo legalmente fixado, para crimes com penas de prisão até cinco anos - e são tantos - poderão representar, no caso dos processos abreviados, um acréscimo de celeridade das decisões finais, e, no caso da suspensão dos processos, um significativo alívio para os tribunais de julgamento.

Quanto à jurisdição civil, exige-se uma maior largueza na aplicação, pelos tribunais superiores, do regime de rejeição liminar dos recursos sem fundamento sério, que poderá fazer diminuir, em medida apreciável, a carga que impende sobre estas instâncias, e constituirá, a médio prazo, valioso elemento dissuasor para tantos litígios levados a tribunal, ou aí mantidos, com meros propósitos dilatórios.

E aqui terá, por certo, o aplauso de todos os agentes da Justiça uma mais corajosa e frequente condenação como litigantes de má fé de todos aqueles que prejudicam uma boa administração da Justiça com pretensões sem qualquer fundamento.

Impõe-se, aliás, rever, tanto em matéria penal, como em matéria cível, o regime de recursos e seus fundamentos, para que meras questões instrumentais ou acessórias não continuem a entravar a acção da Justiça e a impedir uma efectiva tutela dos direitos dos cidadãos.

As mais das vezes, em benefício dos ricos e dos poderosos, que podem dispôr de meios para eternizar a duração dos litígios.

Trata-se de medidas que, com utilidade, poderiam ser complementadas por uma reponderação do valor das alçadas, proposto pelo Governo na anterior legislatura, e que só em tímida medida foi acolhido pela Assembleia da República.

Sobretudo se pensarmos que o valor actual, em termos reais, é sensivelmente menor do que há vinte anos, quando os litígios eram em número significativamente inferior.

Será também por estas vias, estou certo, que os cidadãos encontrarão Justiça mais pronta e melhor garantia dos seus direitos.

A este propósito, seja-me permitido invocar uma vida inteira de militância pelos direitos do homem, de denúncia das injustiças do dualismo, de combate contra a discriminação e a exclusão social, para não ser mal entendido quando aqui me referi, em anos anteriores, ao excesso de garantismo das leis de processo.

Não estavam, obviamente, em causa os direitos dos arguidos e das vítimas, que ainda se não encontram suficientemente protegidos.

É o caso, a título de exemplo, da prisão preventiva, de tão graves e irreparáveis consequências para o detido, e que continua a ser decretada sem sujeição ao princípio do contraditório.

Ou do registo de prova, tantas vezes em condições tecnicamente deficientes, e com o ónus de transcrição para o recorrente, sem que haja meios expeditos e economicamente suportáveis de a efectuar.

Tão pouco do acesso ao direito, que continuará a exigir sucessivas melhorias, até que todos possam aceder à Justiça em condições mínimas de igualdade.

O que estava em causa era a necessidade de restrição de meios processuais de utilidade discutível, ou a sua desadequada ritologia.

A excessiva largueza do regime de recursos, com inútil reapreciação de questões laterais, propiciando um aproveitamento dilatório do processo, com grave dano para a Justiça.

Ou a possibilidade indiscriminada de recurso para os tribunais da Relação, por exemplo, em matéria de contra-ordenações, tantas vezes em valores inadmissíveis, como é o caso das coimas por infracções de trânsito, com o mero propósito de fazer prescrever o procedimento judicial, face à curteza dos prazos e à morosidade do sistema.

Ou ainda a inexistência de meios que impeçam o aproveitamento das questões de constitucionalidade como mero expediente dilatório, desacreditando, por essa via, a Justiça constitucional, e contribuindo para a lentidão do sistema.

Ora nada disso tem que ver com as legítimas garantias dos cidadãos. Ou melhor, tem tudo a ver. Pois é, entre outras razões, por esses excessos que o sistema bloqueia e fica insuficientemente disponível para a tutela dos direitos das pessoas e dos interesses da comunidade, que é a sua razão de ser.

E é por isso que a reforma da Justiça também passa pela eliminação destes excessos.

Importa, todavia, ter presente que a mudança não se poderá fazer sem que os tribunais sejam dotados dos meios materiais e humanos que continuam a escassear.

A anunciada instalação de redes informáticas em todos os tribunais até 2001 e o investimento na construção e apetrechamento de novos tribunais, sendo de louvar, representam apenas parte do esforço que se torna indispensável para que a prioridade assinalada para a Justiça possa estar adequadamente sustentada por correspondente prioridade orçamental.

Sem o que grande parte do esforço será vão.

A generalização das redes informáticas representa, efectivamente, uma oportunidade única e decisiva para a simplificação e agilização de procedimentos, e para uma aceleração das comunicações no interior do sistema e para fora dele.

Tenha-se, todavia, em conta, que a concepção e reformulação de tudo deve ser feita, de parceria, entre juristas e gestores de sistemas, aproveitando, no caso destes, um saber já trabalhado e padronizado - aqui, e sobretudo fora de portas - e de que a ordenação do sistema judiciário tem estado arredia ou, pelo menos, considerado de modo reticente.

E se o investimento na construção e apetrechamento de tribunais corresponde a uma necessidade patente, importa não esquecer que uma administração de Justiça com qualidade e eficácia exige também que os juizes dos tribunais superiores passem a ter instalações com um mínimo de dignidade e de meios.

Então, haverá condições para que possam trabalhar, diariamente, no tribunal, e reunir aí, com a periodicidade e o tempo necessários, deixando de se ver obrigados a preparar em casa as decisões e a vir ao tribunal uma vez por semana, às vezes percorrendo centenas de quilómetros, para discutir e votar os acórdãos.

Tudo isto, ou seja, a limitação razoável, embora exigente, do número de processos a cargo dos magistrados e das suas secretarias, a simplificação dos actos processuais e das comunicações, a revisão do regime das notificações, o melhor aproveitamento dos mecanismos de intervenção já existentes, a disciplina dos recursos, o alargamento dos meios materiais e humanos, tudo isto, dizia, poderá contribuir para a inadiável reforma e para a introdução de uma cultura de rigor e de responsabilidade, quer dos agentes da Justiça, quer dos cidadãos em geral.

Criadas estas condições, impõe-se, porém, que a inobservância pelos magistrados e pelas secretarias dos prazos legalmente fixados para os seus actos deixe de ser um mero elemento da classificação de serviço e passe a ter consequências disciplinares, restaurando-se igualmente a autoridade dos magistrados sobre as suas secretarias.

E será mesmo de ponderar, em matéria criminal, em que medida, e em que casos, a inobservância dos prazos para acusar, para submissão a julgamento, para prolação da sentença, ou para decidir de um recurso, não deverá determinar a extinção do processo, com adequada punição dos responsáveis.

É que se o Estado exige aos seus cidadãos que cumpram os prazos legais, sob pena de preclusão dos seus direitos, seja a fazenda, seja a liberdade, por que razão não há-de ter ele o mesmo regime, impondo aos seus agentes igual diligência e sancionando as condutas que dela se afastem?

O que vale, ainda, para a responsabilidade civil do Estado e dos magistrados pelos danos que, por sua negligência, causem na administração da Justiça, impondo-se, a esta luz, a revisão do regime em vigor.

Tudo isto é indispensável e inadiável.

Mas não nos iludamos.

A reforma da Justiça é um processo longo, cujos resultados só se fazem sentir, de modo eficiente, a médio prazo.

É, por isso, decisivo que não nos deixemos seduzir quer por tremendismos, quer por utopismos, que trazem em si o risco de destruição do sistema.

Sistema que tem vícios, disfunções e bloqueios, é certo.

Mas é o que temos.

E é a partir dele, e com ele, e não pelo seu maior descrédito, que é o que sempre resultará dos anúncios de catástrofe, ou da promessa de eldorados, que poderemos vencer esta crise que tão fundadamente nos inquieta.

A agilização do sistema que temos não nos pode, todavia, dispensar de reflectir sobre um novo modelo de administração da Justiça.

Modelo que responda, de modo eficaz, quer à aceleração do tempo, resultante da revolução nas comunicações e da generalização informática, quer às expectativas geradas pelo aumento progressivo dos padrões de vida, com o boom de litígios que potencia.

Sem esquecer as novas formas de conflitualidade ou de criminalidade, a exigirem especialização, que o sistema, em larga medida, ainda ignora.

Esse modelo, com formas mais imediatas de resolução de conflitos, predomínio da oralidade sobre a forma escrita, e o aproveitamento das novas tecnologias para reduzir drasticamente a duração dos processos, permitirá a obtenção de decisões que sejam consistentes com um mundo em que, cada vez mais, todo o acontecimento é vivido em tempo real.

E será, porventura, esse o momento de ponderar se deve ser ampliado no nosso sistema o princípio da oportunidade de exercício da acção penal, numa reflexão que resista aos apelos, quer para o diabolizar, quer para fazer dele o milagreiro de todos os males.

Estarão em causa questões essenciais no âmbito do princípio da igualdade e riscos, nem sempre evitáveis, de abusos, excessos e aproveitamentos ilícitos.

Mas isso não é obstáculo a que, sem deixar de se considerar tudo isso, se debata em que medida uma mais equilibrada e eficaz gestão do sistema exige que, em determinado momento, se dê prioridade à investigação de certa categoria de crimes, em detrimento de outros; ou ainda se o Ministério Público, por razões de gestão de meios, ou por exigências do interesse público, deverá abster-se, conjunturalmente, ou em dadas condições, de exercer a acção penal relativamente a um determinado tipo de delitos.

E a ser assim, a quem caberá a responsabilidade de tal decisão e o seu control.

É um tema fundadamente polémico, que só ganhará em ser discutido com serenidade, de modo a que, na sede própria, se decida o que melhor convém a uma boa administração da Justiça.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

É bom que seja claro para todos que temos pela frente um longo combate, que a todos compromete - responsáveis pelo sistema de Justiça e cidadãos em geral.

Mas é aos responsáveis pelo sistema de Justiça que cabe a iniciativa e a condução do processo de reforma.

Nele estão comprometidos todos os órgãos de soberania, de gestão das magistraturas e de representação e disciplina dos agentes da Justiça.

É indispensável que a cooperação entre eles estabelecida se reforce e não seja perturbada por quem, não tendo uma ideia, nem se esforçando por tê-la, substitui propostas por encenações de catástrofe, ou projectos realistas e eficazes por soluções milagreiras.

Isso não significa que deixem de ser ponderados os princípios em que assenta o sistema de Justiça; e que se avalie se o seu aperfeiçoamento é melhor servido, mantendo-se o quadro existente, ou alterando-o.

Tenha-se, todavia, por certo, que não se resolvem problemas com a criação de bodes expiatórios, sejam pessoas, sejam instituições; e que o que foi decidido e mantido, com demorada e séria ponderação, não deve ser alterado, sem que se faça uma cuidadosa contabilidade de custos e de benefícios.

Mas que a necessária ponderação não nos distraia da necessidade, que não pode sofrer delongas, de prover, no imediato, à eliminação dos bloqueios do sistema, cujas virtualidades para vir a prestar uma Justiça pronta e eficaz estão longe de estar esgotadas.

Minhas Senhoras e meus Senhores

A reforma da Justiça não é um leilão de poderes, nem uma feira de vaidades.

É vontade política e trabalho, muito trabalho, que, como responsável pelo funcionamento das instituições, reclamo a todos - aqui e nesta hora, em que todos estão aqui presentes ou representados. Para que possa chegar, na democracia que temos, a Justiça que tarda.

Jorge Sampaio