Apresentação de Cumprimentos do Corpo Diplomático

Palácio de Queluz
28 de Janeiro de 2000


Senhor Núncio Apostólico,

Senhores Embaixadores e Chefes de Missão,

Agradeço-lhe, Excelência Reverendíssima, os votos tão amáveis que me transmitiu em nome do Corpo Diplomático.

São votos que muito me penhoram e que gratamente retribuo, pedindo-vos, Excelências, que transmitam aos vossos Chefes de Estado e aos vossos Governos os meus votos sinceros de harmonia, bem estar e progresso acrescido, neste novo ano que iniciámos e que, sendo, duplamente, o primeiro, do século e do milénio, reveste grande carga simbólica.

Cada ano novo é portador de uma esperança renovada de paz, progresso, justiça, solidariedade reforçada entre os Homens e entre as Nações.

Com o dobrar do século, à esperança habitual acresce a consciência do peso da História que, constituindo uma herança e legando um património, molda o presente e delineia os contornos do futuro.

Ajuizar um ano de vida colectiva - no plano de cada nação ou da comunidade internacional no seu conjunto - parece tarefa relativamente fácil, embora a falta de recuo não deixe de constituir um óbice.
Aferir cem anos dessa existência é exercício de maior dificuldade. Pesar mil anos da nossa história é obra demiúrgica que parece ultrapassar os limites da nossa consciência temporal.

A memória colectiva não se compadece de cronologias nem de encadeamentos de factos alargados no tempo. A sua lógica é cada vez mais a do imediato e por isso se torna necessário reiterar o exercício comemorativo dos acontecimentos que marcaram a nossa história e reafirmar valores e ideais partilhados pelos homens de todos os continentes.

Se quisermos contribuir para a construção de um futuro desejável, mas viável, assente em princípios que correspondam a um projecto voluntarista de reforma do mundo actual, é indispensável atermo-nos por alguns instantes no passado recente e lançar sobre ele um olhar retrospectivo.

Senhores Embaixadores,

O ano que passou foi rico em acontecimentos particularmente importantes à escala continental, ou mesmo mundial. Uns de sinal positivo, outros infelizmente, de efeitos preocupantes e amiúde negativos. Factos na sua maioria que, pelo significado revestido, continuarão a repercutir-se no tempo.

Assistimos uma vez mais à deflagração de conflitos armados, motivados por diferendos étnicos. Se alguns puderam ser contidos, como no Kosovo, graças à intervenção da NATO, outros continuam ainda a produzir efeitos devastadores, ceifando vidas, defraudando esperanças e acumulando ruínas e destroços. Penso particularmente na Chéchénia.

Infelizmente, a cessação das hostilidades nem sempre tem sido sucedida pela instauração de uma verdadeira paz. As feridas abertas pela guerra tardam a sarar. A persistência de conflitos latentes, contidos pela presença de forças internacionais de manutenção da paz, foi uma constante do ano que passou. Vemos continuadamente prorrogados os mandatos das forças de paz da O.N.U. em catorze zonas do globo. Na Bósnia e no Kosovo, a meta da reconciliação parece ainda distante. Não temos alternativa senão persistir, até que se vão criando as condições que possibilitem uma resolução pela via negocial dos problemas em causa.

Paralelamente, houve focos de tensão que felizmente se atenuaram, estando em negociação ou já consumada uma solução política para os respectivos diferendos. Penso especialmente na Irlanda e no processo de paz do Médio Oriente, formulando votos para que, em relação ao último, as partes interessadas consigam vencer os obstáculos ainda remanescentes e evitar novos impasses.

Motivo de preocupação no ano de 1999 foi certamente a ausência de progressos no domínio do controlo dos armamentos, em especial na vertente das armas nucleares. Faço votos para que esta questão seja objecto da consideração que deve merecer, em especial por parte dos países que, por serem potências nucleares, detêm uma responsabilidade particular nesta matéria.

Entre os acontecimentos de sinal positivo, saliente-se a renovação da dinâmica que anima as Nações Unidas, cujos princípios doutrinários o seu Secretário-Geral tem corajosamente defendido, mau grado a resistência sempre suscitada pelas ideias novas. No novo século, teremos de continuar a lutar pelo reconhecimento universal de que a dignidade da pessoa humana é um valor essencial que cada vez mais justificará uma intervenção da comunidade internacional quando os Estados não a saibam respeitar.

Senhores Embaixadores

De todos os continentes, África tem sido o mais martirizado, palco de guerras, miséria, fome e epidemias endémicas de efeitos devastadores. Não podemos alhear-nos das tragédias humanas que ali proliferam nem sucumbir ao desânimo perante o panorama tantas vezes desolador que o continente nos oferece. Teremos de continuar a procurar um novo modelo de relacionamento com África que alie a solidariedade e a responsabilização e encoraje a boa governação sem, no entanto, querer impor modelos rígidos nem sempre bem adaptados à realidade africana. Estou seguro de que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa poderá contribuir para esse fim.

Ao referir-me a África, desejaria fazer uma menção particular a alguns países da lusofonia. Em relação a Angola, entramos no novo ano com a esperança de que esteja próximo o termo da imensa catástrofe humanitária que ali se vive e que tenha início a reconstrução do país. Quanto a Moçambique, não poderia deixar de mencionar a realização das segundas eleições gerais, que constituem mais uma etapa na implantação de um regime democrático. Congratulo-me igualmente com a evolução da situação na Guiné-Bissau que, depois de ter atravessado uma fase conturbada da sua história, entrou agora num período de normalização da sua vida política, tendo igualmente assegurado a realização de mais um escrutínio democrático.

No que respeita à Ásia, parece entrar no novo século, tendo definitivamente vencido a crise financeira de 1997. É motivo de regozijo, restando augurar que a retoma se consolide também nos países mais afectados da região e que dê lugar ao reforço da democracia e das solidariedades regionais. Para Portugal, o ano que passou foi particularmente rico nas suas relações com este continente. Refiro-me naturalmente à transferência da soberania sobre Macau para a República Popular da China, início de um novo ciclo das nossas relações com este país; à conclusão do processo de auto-determinação de Timor; e ao restabelecimento de relações diplomáticas com a Indonésia. Temos agora pela frente o enorme desafio da reconstrução do território timorense e da gestação de um novo Estado independente. Confio na capacidade dos timorenses para responder a esse repto, para o que poderão contar com a ajuda da Comunidade Internacional e de Portugal. Que me seja permitido formular, em atenção do povo timorense e das gentes de Macau, votos de paz, estabilidade e progresso para a nova época que, em ambos os casos, agora se inicia.

Uma palavra também sobre a América Latina, que continua a rumar corajosamente contra a turbulência financeira que a atingiu, trilhando o seu caminho próprio, entre dificuldades, bloqueios e escolhos e consolidando formas de integração e cooperação regional. Tive o privilégio este ano de participar em mais uma Cimeira Ibero-Americana, ocasião para cimentar a crescente solidariedade entre os países da América Latina, Espanha e Portugal. Uma referência muito especial para as celebrações neste ano de 2000 dos 500 anos da descoberta do Brasil. Que as comemorações desta efeméride espelhem e projectem no futuro o actual dinamismo das nossas relações.

A nível europeu, o último ano do século foi marcado pelo progresso notável da construção da União Europeia, na dupla vertente da consolidação e aprofundamento do acervo existente bem como da sua extensão e desenvolvimento. Em relação ao primeiro aspecto, procedeu-se à aplicação de decisões anteriormente tomadas, de que a introdução do Euro e a criação das instituições reguladoras da nova moeda, a conclusão da Agenda 2000 e a aplicação das reformas institucionais previstas no Tratado de Amesterdão são exemplos notórios. Quanto ao segundo, assistiu-se ao lançamento dos alicerces de uma nova fase, mediante as decisões da Cimeira de Helsínquia relativas ao alargamento e à inclusão da Turquia no grupo dos candidatos à adesão, bem como ao reforço da política externa e de segurança comum europeia.

A actual Presidência Portuguesa da U.E. será a primeira a assumir a grande responsabilidade de aplicar estas decisões. Durante o semestre em curso, serão aceleradas as negociações para o alargamento, desígnio de importância histórica para a consolidação da paz, da democracia e da prosperidade na Europa. Deverão também ser iniciados os trabalhos atinentes à reforma das instituições da União, no âmbito da Conferência Intergovernamental, que será em breve inaugurada e cuja conclusão, desejamos, tenha lugar até ao fim deste ano. Prioritária será também a edificação de uma Política Europeia Comum de Segurança e Defesa, com vista ao desenvolvimento de uma capacidade operacional credível, apoiada pelos instrumentos necessários para uma actuação autónoma da União na gestão dos aspectos militares e não militares de crises, sem prejuízo do papel insubstituível que a NATO continua a desempenhar nesta área.

Ninguém ignora que o desafio com que a U.E. se defronta exigirá, da parte dos seus diferentes actores, talentos de visionário e realismo pragmático, sentido da história e percepção da oportunidade, flexibilidade nas negociações e firmeza nas intenções, em prol do interesse geral. Temos de considerar não apenas os países membros da União e os candidatos ao alargamento, mas também a Russia e a Ucrânia, e, noutro plano, os países da região balcânica. Todos eles devem encontrar o seu espaço nos diferentes segmentos da cooperação europeia. Os próximos anos serão decisivos para a afirmação do projecto europeu; pelo exemplo que este constitui, a evolução da comunidade internacional no seu conjunto é largamente tributária do seu curso.

Senhores Embaixadores

A ordem internacional tem de assentar no primado do direito, no respeito pelos direitos humanos, no empenho sincero na resolução pacífica dos diferendos, na boa-fé e na confiança mútua entre os Estados, na coerência de atitudes.

A estabilidade internacional e a paz não são, no entanto, incompatíveis com mudanças, crises ou convulsões. Há períodos, na história, em que, nos escombros de um mundo velho, desponta uma ordem nova. São períodos de charneira, em que se torna necessário restabelecer os princípios de uma organização renovada. São, em geral, épocas de renascimento, de labor e entusiasmo excepcionais, mas também de dificuldade e incerteza causadas pela necessidade de reformular os arquétipos da vida colectiva em prol das gerações vindouras.

Como disse, este ano que iniciámos, revestindo-se de um simbolismo particular será para todos, estou certo, um ano exigente. Olhamo-lo com optimismo e confiança mas estamos cientes da dor e da miséria que continuam a estigmatizar a humanidade, bem como da nossa responsabilidade colectiva na procura de um mundo mais justo e mais humano.

A globalização, associada à nova ordem económica mundial, tem permitido, graças aos progressos tecnológicos e científicos, um assinalável progresso material e bem estar acrescido das populações.
Não ignoramos contudo que também tem redundado no aumento das desigualdades, criando marginalização e exclusão crescentes, quer a nível interno dos países mais desenvolvidos quer a nível internacional.

Não nos podemos fiar exclusivamente no mercado se quisermos combater estas tendências, de modo a repartir a riqueza com mais equidade. Teremos de criar os instrumentos para uma melhor governabilidade, à escala mundial, do processo de globalização, através do reforço e da reforma das instituições multilaterais e da criação de espaços regionais mais sólidos e integrados.

A decisão de acelerar e iniciar a aplicação do processo de perdão da dívida aos países mais pobres do terceiro mundo, cujos efeitos começam a ser visíveis é, neste contexto, de saudar. É um gesto que testemunha da responsabilização dos chamados países ricos perante o depauperamento e exclusão crescentes de uma extensa franja da população mundial.

A racionalização da produção dos bens económicos e da riqueza passará, outrossim, pela inclusão inevitável da vertente ambiental. Este é um dos desafios específicos do novo milénio que as gerações passadas ignoraram, mas a que as gerações presentes não se poderão furtar.

Nos últimos anos, há a registar notáveis progressos materiais, uma elevação dos padrões de bem-estar de um número crescente de populações, o aprofundamento e acumulação dos conhecimentos científicos e a sua divulgação a grupos cada vez mais extensos de pessoas e manifestações múltiplas e plurais das mais diversas culturas, acessíveis a um número cada vez maior de indivíduos. Não obstante, temos por vezes a sensação de assistir a uma fragmentação do saber e a uma erosão de valores comuns e de ideais partilhados.

É desafio do novo século forjar uma cultura que dê um sentido político à globalização, aliando a noção de um destino comum, assente no respeito pelos direitos humanos e na busca da paz e do progresso, à consciência da diversidade e à necessidade de tolerância e de diálogo entre todos os povos do nosso planeta.

Senhores Embaixadores

Para terminar, desejo-vos que o ano agora iniciado seja de paz e de progresso para os vossos povos, e de bem-estar para os Chefes de Estado que aqui representais. Peço especialmente aos Embaixadores dos países que tive o prazer e a honra de visitar no ano passado que transmitam os meus penhorados agradecimentos a Suas Majestades os Reis de Marrocos, da Bélgica e da Tailândia, e a Suas Excelências os Presidentes da Confederação Suíça, Irlanda, Eslovénia, Hungria, México e Cuba pela forma tão cordial como me acolheram, de que guardo recordações indeléveis.

Permitam-me que, pelo seu significado tão especial, termine, referindo de uma forma particularmente sentida, a deslocação que, no ano de 1999, efectuei ao território de Macau e a viagem de homenagem ao povo timorense, que finalmente só este ano poderei realizar.

Muito obrigado e Bom Ano !

Jorge Sampaio