Abertura do Seminário sobre Gestão das Grandes Áreas Urbanas

Lisboa
02 de Fevereiro de 2000


Senhor Reitor da Universidade Nova de Lisboa

Senhores Membros da Mesa

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quero começar por agradecer ao Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Universidade Nova de Lisboa o convite para participar neste Seminário Internacional sobre Gestão de Grande Áreas Urbanas. Saúdo os promotores e intervenientes deste Seminário, a quem quero dedicar uma palavra de apoio pelo seu empenho em identificar problemas, comparar experiências e esclarecer as opções que temos pela frente.

Acompanho, como se sabe, interessadamente, a discussão dos temas relacionados com a metropolização e o crescimento urbano em geral, que nos coloca perante desafios complexos e exigentes. Desafios no plano da gestão do território, desafios no plano da competitividade, desafios no plano da participação cívica. Eu próprio, promovi, em Junho do ano passado, com a colaboração da Universidade de Aveiro, um debate sobre "Coesão e competitividade das aglomerações urbanas – níveis de governo, competências e cidadania", cujas conclusões estarão disponíveis em breve.

As questões desta natureza não se compadecem nem com avaliações superficiais nem com decisões avulsas, e daí a importância deste tipo de jornadas com a presença de académicos e responsáveis políticos. Mas também é certo que o aprofundamento da análise dos problemas terá de ser acompanhado pela adopção das competentes propostas de solução, e julgo que é chegado o momento de pôr em marcha novos instrumentos de gestão para as aglomerações urbanas em Portugal.

Justificarei em seguida esta perspectiva: em primeiro lugar, caracterizando a evolução recente da urbanização que obriga a repensar o modelo de gestão; em segundo lugar, referenciando os limites a que chegou a experiência portuguesa actual neste domínio; em terceiro e último lugar, sublinhando os contornos de uma nova política para a regulação do sistemas urbanos mais complexos.

Minhas Senhoras meus Senhores,

As cidades são cada vez menos "ilhas", não me canso de repetir. Em poucas décadas alargaram e reconfiguraram os seus limites; tornaram-se menos individualistas, formaram redes. Em suma, de ilhas passaram a … arquipélagos. São poucas as áreas urbanizadas de alguma dimensão que ainda correspondem ao modelo da cidade-município isolada.
São várias as razões porque hoje, entre nós, e noutros países europeus, se repensa a organização – económico-social, administrativa, e também política – destas cidades-região.

Por um lado, há a preocupação de obter economias de escala para a gestão de alguns dos seus serviços locais. Por outro lado, há a preocupação de gerar efeitos de aglomeração que beneficiem a sua base produtiva e de emprego e justifiquem um "marketing de cidade" mais agressivo. No mínimo, trata-se de evitar ser excluído do quadro de vantagens comparativas da presente globalização das oportunidades.

Mas para que estas vantagens sejam reais é necessário que a aglomeração intermunicipal funcione como uma verdadeira rede de complementaridades. Não é um objectivo fácil de atingir, como se sabe.

É preciso que as naturais diferenças não dêm lugar a insuportáveis desigualdades e muito menos a antagonismos inultrapassáveis.. E é essa capacidade que é afinal posta à prova no momento de gerir internamente um elenco de recursos sempre escassos, de definir as prioridades de um conjunto de equipamentos que não podem ser repetidos em todas as sedes da rede, ou ainda de localizar outros que, ao contrário, pelos seus possíveis impactes, ninguém quer no seu próprio território...

Penso poder resumir esta primeira nota da minha intervenção, afirmando que é preciso que as tendências que concorrem para a desigualdade de oportunidades na vida urbana sejam contrariadas e alteradas. E que, para tal, é preciso dispôr de níveis de decisão global, de "arquipélago", e não apenas de "ilha".

Em face destas dificuldades - e entro aqui na análise da nossa experiência - porventura contraditórias, a simples boa vontade associativa e negocial de que têm dado provas diversos grupos de municípios mostra ter um alcance limitado.

Vale, é certo, enquanto a prossecução do interesse comum for compatível com o interesse de curto prazo de cada parceiro autárquico, mas dificilmente esses agrupamentos terão legitimidade para redistribuir ou gerir oportunidades que constituam discriminações, embora positivas, para a coesão do sistema de conjunto. Basta olhar para a experiência das ainda recentes instituições metropolitanas …

Ao nível mundial, europeu, transnacional ou nacional a dinâmica das cidades alargadas, das maiores às médias, assenta cada vez mais em estratégias de competitividade externa, baseadas na oferta de melhorias de infraestruturas e serviços, ambiente urbano, equipamentos de excelência. Mas essas estratégias supõem elevados níveis de consenso sobre a sua complementaridade e coesão interna, como condição para rendibilizar os recursos sempre escassos e o aproveitamento de oportunidades de investimento não menos escassas. Conciliar a competitividade com a redução das assimetrias internas em ambiente de, aliás legítimos e normais, protagonismos municipais, eis o problema mais crítico e que carece de respostas claras e corajosas.

Noutros países europeus o "centralismo distributivo" do Estado Providência coexistiu, durante décadas, com maior ou menor sucesso, com o reforço de tecno-estruturas administrativas nas maiores aglomerações. Aí assistimos, hoje, ao repensar do novo problema que consiste em fortalecer as complementaridades intermunicipais nas aglomerações potencialmente mais competitivas, sem destruir, entretanto, tanto a dinâmica da democracia local, como a da cooperação ou parcerias, emanadas da sociedade civil.

Entre nós, as tentativas mais interessantes surgidas com o regime democrático têm-se situado ao nível do associativismo expontâneo de municípios. Estamos em regra a falar de municípios de média dimensão, e só raramente metropolitanos, mais próximos pela distância ou pelos problemas – ou por ambos. De modo geral esses municípios acham-se empenhados em responder com maior probabilidade de êxito a programas nacionais ou comunitários que premiavam justificações estratégicas de racionalidade da aplicação dos recursos públicos.

Não regateio elogio a essas experiências mais ambiciosas de "governo local ao nível de rede" de cidades-municípios ou de territórios urbanizados relativamente homogéneos. Mas a admiração não pode levar-nos a esquecer as dificuldades com que eles se debateram e debatem, não só para conseguirem os consensos políticos para cada decisão importante (sobretudo sempre que não se pode satisfazar todas as partes), como para serem ouvidos e contemplados enquanto conjunto autárquico e não simplesmente soma de autarquias. Os problemas tornam-se particularmente evidentes quando se trata de negociar contratos-programa, ou medidas coordenadas de âmbito inter-ministerial, visando as máximas sinergias possíveis.

Longe de se pretender transferir para estas estruturas, por natureza politicamente frágeis, "mundos e fundos" – como se tal pudesse constituir remédio para os efeitos da centralização e para os problemas do ordenamento do território – importa discutir as condições de legitimação política de decisões de natureza inter-municipal, que assumem um verdadeiro nível "supra-municipal".

Minhas Senhoras e meus Senhores

Uma terceira nota, a encerrar esta intervenção, dedicada ao novo consenso a que é necessário chegar para reforçar o papel da nossa rede urbana, e, em especial, das nossas aglomerações.

De facto, como referi, apesar de mais evidentes nas chamadas áreas-metropolitanas, estas questões surgem também noutras aglomerações menores, ou territorialmente menos coesas ou contínuas, e compreendendo municípios de menor peso e capacidade.

Dito por outras palavras, estamos perante questões que não poderão ter resposta no plano da estrutura técnica ou do financiamento autárquico se, ao mesmo tempo, se não encontrar uma arquitectura politico-administrativa adaptável às variadas situações de complexidade dos territórios visados.

Esta arquitectura implicará, pelo menos, uma progressiva separação de funções entre o nível da rede e o nível das autarquias que a integram e, em consequência, uma legitimação democrática do governo da rede no que respeita às funções que lhe forem atribuídas.

Ou seja, uma representatividade própria – não entrarei agora no tema do modelo institucional desejável e possível – sem a qual a coesão da associação voluntária pode ser posta em risco ou, em alternativa, o cumprimento das decisões de consenso difícil pode ser inviabilizado ou distorcido (para parecer que beneficiaram todos…).

Se estes e outros problemas da moderna governação de sistemas urbanos mais complexos não forem amplamente discutidos e não conduzirem a soluções adequadas às diferentes realidades do País, de pouco servirá repetir fórmulas administrativas de aparência – como as que já se conhecem na sua prática pouco estimulante.

E se os municípios em causa serão postos perante novas perspectivas, ao ceder para o nível da rede algumas das suas competências tradicionais – em princípio aquelas mais distantes da participação local directa – também a Administração Central poderá encontrar uma base sólida, porque responsável, para descentralizar competências específicas e serviços tutelados que tem vindo, talvez, a exercer, sob o argumento da relativa atomização e debilidade orçamental do poder local.

Minhas Senhoras e meus Senhores

As realidades são diferentes e não resolveremos nenhum problema propondo que se lhe aplique um mesmo modelo institucional. Nem os municípios são todos iguais em termos de competências e critérios de fiscalidade, nem os espaços urbanos alargados tem a mesma configuração. O tema do governo destes espaços tem que atender a essa diversidade de situações (não é a mesma coisa uma área metropolitana, como a de Lisboa, com a sua estrutura radiocêntrica, e uma aglomeração urbana policêntrica) além de ser congruente com os objectivos que se pretendem atingir de cooperação institucional e de concertação estratégica.

É necessário responder adequadamente e com sentido da oportunidade, pois a ausência total de qualquer mecanismo de integração e concertação ao nível da aglomeração pode ter consequências irreparáveis em termos das condições de sustentabilidade urbana, tanto do ponto de vista ambiental, como nos domínios social, económico e cívico.

A incapacidade de conferir uma "inteligência colectiva" a sistemas tão complexos como são as esses espaços urbanos aumenta exponencialmente a importância das dimensões mais críticas do crescimento urbano, ao mesmo tempo que contribui para reduzir drasticamente a nossa capacidade de as regular.

O que está em causa, num período em que esses espaços se têm vindo a associar a situações de fragmentação e exclusão sócio-urbanística, é, por outro lado, transformar esta nova cidade numa fonte de oportunidades, de identidades, de cultura cívica e de inovação política, isto é, redescobrir a missão histórica dos espaços urbanos.

A "inteligência colectiva" que temos de encontrar passam certamente pelos modelos institucionais de administração. Mas a grande pergunta dificilmente poderá deixar de ser: que novas formas de governabilidade queremos para os nossos espaços de tipo metropolitano?

Este Seminário não deixará de propôr respostas a esta pergunta crucial.

Jorge Sampaio