Abertura da Sessão Especial da 88º Conferência da OIT

Palácio das Nações Unidas, Genebra
05 de Junho de 2000


Senhor Presidente,
Senhores Vice-Presidentes,
Senhor Director-Geral,
Senhores Representantes das Organizações Internacionais,
Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,


Permitam-me que comece por agradecer as palavras, tão amáveis e tão estimulantes, do Embaixador Juan Somavia e que saúde vivamente o modo como vem exercendo o seu importante cargo de Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho.

Foi com muita honra que aceitei o convite para me dirigir a esta ilustre assembleia, onde marcam presença personalidades e organizações com funções e responsabilidades tão decisivas perante o presente e o futuro da dignidade no trabalho das mulheres e dos homens do mundo inteiro.

Uma das principais responsabilidades de todos aqueles a quem o voto conferiu o dever de garantir a liberdade e de promover a equidade das sociedades em que vivemos é a de contribuírem activamente para que a efectividade dos direitos dos cidadãos ocupe um lugar central nas decisões políticas que condicionam o futuro da humanidade.

Como português e como europeu, a honra e o prazer de me dirigir a esta Conferência são tanto maiores, quanto é de elementar justiça reconhecer que, quer o modelo de protecção social dominante na Europa, quer a evolução das relações industriais em Portugal devem muito a décadas de investigação séria e de cooperação técnica com a OIT.

Quero ainda agradecer a oportunidade que me foi dada de vos falar em português, uma língua na qual se expressam, nos vários continentes, duzentos milhões de pessoas, com culturas tão ricas quanto variadas.

Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
A segunda metade da década de 90 mostrou que a OIT encara com lucidez e com determinação o desenvolvimento do seu lugar no sistema das Nações Unidas e está a consolidar novos métodos de actuação, susceptíveis de optimizar o papel do tripartismo internacional na reinvenção progressista dos direitos no trabalho.

Porque considero essencial que esses esforços sejam bem sucedidos, desejo dar um contributo para o debate sobre as velhas e as novas formas de desigualdade induzidas pela economia, bem como sobre a definição das fronteiras da decência e da dignidade do trabalho.

O mundo em que vivemos é, todos o sabemos, muito diferente daquele que nos viu nascer.

Os sistemas de valores e aspirações sociais, as relações entre os cidadãos e os Estados-nação e entre os diferentes países e espaços regionais estão hoje sujeitos a condicionalismos que não existiam na época que fez nascer e desenvolver a Organização Internacional do Trabalho.

Sem esquecer outros factores condicionantes, gostaria de sublinhar três dimensões: a globalização dos fluxos financeiros, a transnacionalização das actividades empresariais e o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação. Estou convicto de que tais factores alteraram, em todo o mundo, as premissas do desenvolvimento económico, da própria solidariedade social, da governabilidade das sociedades contemporâneas e as representações colectivas de tempo, de espaço e, o que é extremamente importante, as relações de poder dos nossos dias.

É certo que a globalização dos mercados financeiros, o aumento do poderio das empresas transnacionais e a revolução das tecnologias da informação e da comunicação, ao mesmo tempo que criaram oportunidades de desenvolvimento sem precedentes, vieram agravar a situação de desigualdade em que vivem regiões imensas do mundo e amplos grupos de pessoas, que se viram ainda mais afastados do que antes, quer do jogo competitivo mundial, quer dos benefícios das mudanças em curso.
No meu entender, estamos perante novos riscos e sérias ameaças a regras, sistemas e organizações a quem a história reconhece um papel decisivo na promoção e na defesa dos valores da dignidade humana e da solidariedade social.

Não considero que os imperativos da competitividade empresarial nos condenem à opção, mutuamente exclusiva, entre a eficiência económica e a justiça social.

Recuso a tese segundo a qual a intervenção dos poderes públicos nacionais e das organizações internacionais está hoje limitada a um espaço tão exíguo que, em muitos casos, seria incapaz de assegurar a efectividade dos direitos cívicos e políticos, ao mesmo tempo que transformaria os direitos sociais num luxo só possível nas regiões e nas épocas de maior prosperidade.

Como todos sabemos, dentro da comunidade científica, nos sindicatos, nas organizações empresariais e nas instituições políticas, cresce o número de vozes e multiplicam-se os argumentos contra a inevitabilidade desses pretensos determinismos económicos e tecnológicos.

É cada vez mais claro que o mundo em que vivemos e o futuro que podemos construir não estão condenados a ser um espaço e um tempo em que os maiores e mais poderosos vencem sempre os mais pequenos e mais vulneráveis, e em que a ética social tem de ser sacrificada à competitividade empresarial ou mesmo às lógicas especulativas dos mercados financeiros.

Quanto a este último aspecto, não quero deixar de afirmar que me parece necessário desenvolver no seio de organizações internacionais, como a OIT e outras, o debate aprofundado sobre os modos de regulação dos mercados internacionais de capitais face a alguns movimentos que são de natureza eminentemente especulativa.

Sabe-se que eles têm sido responsáveis por choques e perturbações na economia e nos sistemas de emprego com repercussões sociais de enorme gravidade. E também é sabido que existem propostas, subscritas por reputados economistas, que apontam no sentido de disciplinar esses movimentos e de minimizar os seus efeitos mais funestos, não sem ao mesmo tempo criarem condições para consolidar formas mais equilibradas e solidárias de relacionamento entre as nações.

Não me parece legítimo ignorar estas contribuições, nem adiar por mais tempo um esforço sério e conjugado, no plano das instituições internacionais, para avaliar o seu rigor e operacionalidade. Estou convencido que, se não caminharmos nesta direcção, acabará por se ir perdendo a esperança na possibilidade de introduzir racionalidade acrescida no sistema económico internacional.

A meu ver, podemos e devemos fazer muito para que a economia aumente e melhore as condições de que a humanidade dispõe para satisfazer as suas necessidades e os seus anseios.

Mas é no quadro de uma ética social humanista que se têm de encontrar os valores que organizam e dão coesão às sociedades, assim como é às instituições políticas democráticas que compete regular as relações entre os homens e entre estes e a natureza.

Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Terminada a primeira parte da minha intervenção, permitam-me que me ocupe seguidamente de alguns temas que, embora referenciados à Europa, espaço económico, social e cultural em que o meu País se integra, me permitirão abordar as questões mais gerais do trabalho e do emprego.

Durante as duas últimas décadas, o chamado welfare state europeu esteve debaixo do fogo dos que consideram que é impossível responder simultaneamente, com eficiência, ao triplo desafio da competição económica, da promoção do emprego e da limitação das desigualdades sociais.

Apesar dos milhões de pobres e de desempregados que existem na Europa, os sistemas de relações industriais, os modelos de protecção e a generalidade dos instrumentos de promoção da cidadania social foram, e nalguns casos ainda são, criticados por alegadamente serem responsáveis pela perda da competitividade europeia.

Todos estaremos lembrados das receitas simplistas que, em nome da promoção do emprego, afirmavam a necessidade da Europa reduzir os níveis e limitar drasticamente o alcance das garantias cívicas e sociais que a singularizam no Mundo.

Conto-me entre os que consideram que o chamado modelo social europeu, com o sistema de relações industriais que o integra, está na base das décadas de crescimento económico e de progresso social que os países democráticos da Europa conheceram no pós-guerra.

Mas pertenço também ao grupo dos que sabem que tal modelo não resultou de qualquer automatismo económico ou tecnológico. Resultou sim, pelo contrário, de um esforço continuado das sociedades democráticas avançadas para limitarem e corrigirem, através de um quadro institucional adequado, as desigualdades induzidas pelas economias de mercado.

Não creio que a solução para as dificuldades de competitividade das empresas ou para os problemas de emprego e de desemprego que as sociedades europeias vêm conhecendo, possa ou deva passar pelo desmantelamento, mesmo que cautelosamente realizado, desse traço comum da nossa identidade colectiva que é a ligação estreita entre os direitos cívicos, sociais e políticos dos cidadãos.

Perante esta audiência, não me deterei a enumerar e a discutir os motivos que me têm levado a juntar a minha voz à dos que, constatando a crise do sistema de emprego, do sistema de relações industriais e dos modelos de protecção social europeus, se batem pela sua reinvenção, isto é, pela sua melhor adequação aos desafios que a equidade social e eficiência económica colocam nos nossos dias.

Sei bem que falo de uma das tarefas mais difíceis, mas também das mais importantes, que a governabilidade das nossas sociedades hoje nos impõe.

Reinventar as condições do pleno emprego, adaptar os sistemas de relações industriais à mudança económica e às novas clivagens sociais e melhorar o nível e a equidade dos sistemas de protecção social em função das mudanças já verificadas ou previsíveis são, evidentemente, tarefas cuja importância não carece de qualquer sublinhado.

Acresce que, também o sabemos, tais transformações, sendo urgentes, nem podem ser realizadas da noite para o dia, nem podem ser concretizadas apenas pelo Governo de cada um actuais dos Estados membros da União Europeia, ou de quaisquer outros países europeus.

O desafio com que estamos confrontados na Europa não é o de defendermos, a qualquer preço, um modelo que precisa de ser reformado.

O desafio para que temos o dever de encontrar respostas eficazes é o de adaptarmos a legislação do trabalho, as instituições e as práticas de diálogo social e de negociação colectiva às exigências duma competição económica em que a inovação e o conhecimento ocupam um lugar sem precedentes; é o de reestruturamos os sistemas de protecção social de modo a erradicar a pobreza; é o de facilitarmos a integração social dos grupos mais vulneráveis; é, em suma, o de limitarmos as desigualdades e promovermos a equidade social e a dignidade no mundo do trabalho.

Acredito firmemente que a resposta a tão complexo desafio não pode prescindir de um esforço sério de concertação social tripartida, e que esta última obriga, por seu turno, a alguma ousadia e disponibilidade recíproca em matéria de compromissos políticos.

Sem essa abertura ao diálogo e à partilha de responsabilidades por parte dos protagonistas institucionais da vida política e social, sem essa consciência de que o bem colectivo e a noção de serviço público se devem sobrepor a interesses e estratégias de acção particulares – diminuirá fortemente, quanto a mim, a probabilidade de contribuirmos para a edificação de sociedades realmente inclusivas. A acção política, a administração pública e, de um modo geral, o conjunto de instituições sociais correm o risco, nessa eventualidade, de serem vistos não como um instrumento activo da democracia participativa, mas sim, como um adereço supérfluo na vida dos cidadãos. Não o podemos consentir.

Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A Cimeira de Copenhaga, de 1995, a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, realizada em Singapura em 1996, definiram a via que a ‘Declaração da Organização Internacional do Trabalho relativa aos princípios e aos direitos fundamentais no trabalho e à sua aplicação’, aqui adoptada em 1998, veio desenvolver e explicitar.

Faço questão de reafirmar, nesta Conferência, a adesão de Portugal a esse núcleo essencial de valores, bem como de vos garantir que estou profundamente convicto de que a dignidade humana e o progresso social do conjunto da humanidade têm muito a esperar dos métodos de acompanhamento estipulados por aquela Declaração.

Portugal, que integra a OIT desde a sua fundação, orgulha-se de pertencer ao grupo dos países que ratificaram as oito convenções que consagram as normas da OIT que dão corpo a esses quatro pilares de direitos fundamentais no trabalho. Tenho o prazer de vos dizer em primeira mão que acabamos de ratificar a Convenção Contra a Exploração do Trabalho Infantil 182, de 1999.

O meu País, onde, durante décadas de ditadura, foram coarctados os direitos de cidadania e as oportunidades de desenvolvimento económico e social, sabe dar todo o valor à liberdade sindical e ao reconhecimento efectivo do direito de negociação colectiva, à eliminação do trabalho forçado, à abolição efectiva do trabalho infantil, bem como à eliminação da discriminação no domínio do emprego e da formação.

Portugal encara com optimismo o papel da OIT no mundo actual e entende que deve contribuir para que esta organização internacional disponha dos meios necessários para que possa realizar plenamente a sua indispensável função de fórum de regulação social do desenvolvimento económico e do progresso social.
Nos últimos anos, Portugal tem vindo a desenvolver a sua cooperação com a OIT, tanto no plano bilateral, como no plano multilateral.

Dessa cooperação desejo salientar, quer o programa visando o desenvolvimento do diálogo social nos países africanos de língua oficial portuguesa, quer o projecto, pioneiro em países desenvolvidos, de cooperação técnica para a erradicação efectiva do trabalho infantil no nosso País.

Num caso como noutro, avaliamos de forma muito positiva os resultados obtidos, o que constitui uma razão adicional para nos assumirmos como adeptos entusiastas das vantagens da cooperação com a OIT, quer para os países desenvolvidos, quer para os países com níveis de desenvolvimento menos consolidado.

Neste ano em que a Conferência Internacional do Trabalho aplica, pela primeira vez, a metodologia adoptada em 1998 para avaliar os progressos realizados no primeiro dos quatro pilares que estruturam os direitos fundamentais no trabalho – a liberdade sindical e o direito de negociação colectiva - , quero congratular-me com os esforços que estão a ser desenvolvidos para complementar o conjunto de instrumentos de intervenção do tripartismo.

Também por isso, gostaria de terminar a minha intervenção fazendo uma sugestão e lançando um apelo.

A sugestão consiste em que se usem todas as potencialidades criadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação para que as opiniões públicas do mundo inteiro conheçam melhor e mais depressa os problemas do trabalho no mundo e o que vem sendo feito para que, em todo o planeta, cada vez menos crianças, mulheres e homens sejam forçados a trabalhar em condições indignas.

Todos os que, como eu e, felizmente, tantos outros no mundo inteiro, se bateram pela dignidade e pelo direito do Povo de Timor-Leste a dispor de si próprio, sabem que as opiniões públicas podem constituir um factor decisivo na criação de condições para que a liberdade e a cidadania percorra o caminho que vai das proclamações abstractas ao seu exercício quotidiano pelas pessoas.

Daí decorre o apelo que aqui gostaria de lançar à comunidade internacional dos intelectuais, dos artistas, dos escritores e dos jornalistas. Peço, a partir desta prestigiada tribuna, que apoiem a Organização Internacional do Trabalho, com a generosidade própria dos que decidiram pôr-se do lado das grandes causas da Humanidade, na realização de uma campanha mundial a favor da dignificação do trabalho.

Através da palavra escrita, da imagem, da dança, da performance teatral, e recorrendo a meios de difusão com toda a eficácia dos velhos e novos media, seria possível criar, dessa maneira, um movimento de consciencialização da opinião pública internacional para a injustiça das desigualdades e exclusões que continuam a impedir a realização plena, no mundo do trabalho, das extraordinárias capacidades humanas de criação e progresso.

Estética, técnica e ética não têm de permanecer como momentos isolados da vida – porque não uni-las num magnífico laço solidário?

Fica o apelo.

Muito obrigado pela vossa atenção.