Cerimónia de Lançamento do Livro "A Cooperação nas Políticas sobre as Drogas e as Toxicodependências"

Palácio de Belém
31 de Março de 2000



Quero, antes de mais, agradecer a vossa presença na apresentação deste livro que reúne as principais intervenções no seminário que promovi sobre "A Cooperação nas Políticas sobre as Drogas e as Toxicodependências".

Constitui, seguramente, uma obrigação do Presidente da República debater todos os assuntos que preocupem legitimamente os Portugueses e o problema das drogas é um tema central da nossa sociedade.

Por isso, incentivei, desde sempre, uma permanente abertura ao conhecimento e à reflexão multisectorial e pluridisciplinar para que fosse possível compreender melhor a sua dimensão e as formas tão diversas e difíceis de atenuar as suas consequências.

A imagem dramática da solidão, da exclusão social, da autodestruição do toxicodependente é, seguramente, a que me aparece como mais nítida no vasto rol de situações associadas às drogas.

Muitos cientistas sociais já estudaram os principais factores de vulnerabilização que aceleram, em certos grupos sociais ou em certas circunstâncias históricas e biográficas, a propensão para o consumo das drogas.

Se nos centrarmos apenas no universo juvenil encontramos frequentemente associado à toxicodependência o desgaste do papel protector e socializador da família e de outros mecanismos nucleares de integração social.

E quando o desemprego ou a precarização do emprego, a pobreza ou outras formas de exclusão social minam o equilíbrio económico e afectivo das famílias, as tensões e os conflitos potenciam o consumo das drogas e também o desenvolvimento de diversas formas de delinquência.

Esta é uma realidade de diversas civilizações e de diversos contextos sociais, presente, também, num modelo de desenvolvimento económico que marginaliza muitos dos que, por razões diversas, não conseguem acompanhar o ritmo tão exigente da economia e da sociedade.

A segunda imagem que associo ao problema das drogas é a de manifestações de intolerância para com toxicodependentes.

Eu entendo bem a dificuldade que muitos concidadãos sentem ao conviver com situações de autodestruição sistemática de tantos jovens e com os riscos, por vezes subjectivos, para a saúde, para a tranquilidade e para o crescimento equilibrado dos seus filhos.

A reacção é legítima desde que o combate às drogas não se transforme, como já o afirmei, num combate aos cidadãos toxicodependentes.
E quantas vezes a intolerância se atenua ou desaparece quando nos confrontamos na nossa relação interpessoal, frequentemente na família, com este problema.

O estigma, a discriminação, a marginalização dão lugar, então, à disponibilidade para compreender e aceitar o problema e a diferença.

A terceira imagem que eu associo à toxicodependência é a dos grandes traficantes, criminosos responsáveis por inúmeros dramas individuais e familiares, que, ao mesmo tempo, introduzem factores de forte desestabilização em países democráticos de todo o mundo.

E o lucro deste negócio atinge tais montantes que o tráfico significativo se transferiu progressivamente para o controlo de organizações com ramificações internacionais, dispostas a transgredir todas as leis e a utilizar a máxima violência.

Esta situação cria, aliás, responsabilidades acrescidas aos Estados, num contexto de forte globalização dos mercados. A uma crescente liberdade na circulação de capitais, de produtos e de serviços, deve corresponder uma mais atenta regulação dos Estados na salvaguarda da ética nos negócios.

Este é, portanto, um desafio planetário, não deixando praticamente de fora nação alguma.

E refiro-me tão só ao abuso de drogas ilegais, não cuidando agora do consumo do álcool e do tabaco, responsáveis, também, por significativos problemas sociais e de saúde pública.

Perante um quadro de tamanho dramatismo, de inquietude social de muitos e de desânimo de alguns, pareceu-me prioritário contribuir para uma melhor compreensão do problema, na pluralidade das suas abordagens e com o empenhamento e a qualidade reconhecida de investigadores e de técnicos.

Tinha, também, a convicção de que a comunidade científica que estuda o problema das drogas se apresentava algo fragmentada nos seus vários saberes e que os técnicos das diversas áreas não cruzavam suficientemente as suas experiências e informações.

Tornava-se, então, necessário que o tema fosse entendido e aceite pela sociedade, com todo o seu dramatismo, é certo, mas como um complexo problema, com uma longa história, debatido por investigadores, tratado por técnicos respeitados, mas, também, rejeitado ou estigmatizado por sectores significativos da sociedade portuguesa.

Era necessário, pois, um debate sereno, franco e aprofundado para melhor compreender as situações associadas às drogas, as suas perspectivas plurais de abordagem e as diversas experiências já ensaiadas em Portugal e em outros países para reduzir os seus danos.

Promovi, então, em 1997, um seminário, que reuniu alguns dos mais destacados peritos nacionais e estrangeiros das áreas da prevenção e do tratamento das toxicodependências, da investigação clínica, jurídica e social.

Tratava-se, portanto, não obviamente de encontrar no imediato uma solução para o problema, mas de proporcionar aos técnicos e aos investigadores maior visibilidade e para que as variadas contribuições permitissem conhecer melhor os caminhos a percorrer pelos decisores políticos e pelos técnicos.

Tive, em todas as minhas intervenções, a preocupação de que este problema não dividisse a sociedade e que fosse possível caminhar para a construção de uma estratégia nacional, apoiada por sectores políticos, técnicos e sociais significativos.

E devo deixar aqui, como já o fiz em outras ocasiões, uma palavra de grande apreço para com o Governo e para com os líderes de todos os partidos políticos que tinham então representação parlamentar.

Foi possível, como se verificou, que o tema das drogas, que poderia suscitar posições extremadas dos partidos e, por seu intermédio, da opinião pública, não fosse utilizado como bandeira partidária, nem se introduzissem divergências, onde poderia haver efectivamente um consenso muito alargado.

E esta situação, que não se vive em outros países europeus, foi conseguida graças à compreensão da gravidade do problema e ao sentido patriótico dos dirigentes partidários e do Governo.

Mas o problema das drogas, se não tem curas milagrosas, muito menos as terá no âmbito isolado de um país.

As consequências dos abusos destas substâncias não são, como todos sabemos, apenas as consequências físicas e as psíquicas sofridas pelos consumidores e, desde meados dos anos 80, com a ameaça de contaminação com o vírus da SIDA a abater-se sobre muitos toxicodependentes.

A criminalidade associada ao tráfico e à pressão do consumo provoca, também, forte intranquilidade e insegurança nas populações e enche as prisões de pequenos traficantes e consumidores.

Estamos, hoje, porém, em condições de caracterizar diferentemente o consumidor de drogas em face da lei e de considerar efectivamente o tratamento do toxicodependente como uma alternativa às sanções penais.

Reconhecemos, também, como importantes as iniciativas de redução dos riscos para a saúde, que se desenvolvem nas prisões, onde existe uma significativa percentagem de condenados ou arguidos por crimes conexos com as drogas, embora se possa ainda melhorar significativamente a articulação entre os serviços prisionais e os serviços de saúde.

As drogas ilícitas constituem, ainda, uma ameaça a interesses fundamentais do Estado e, por vezes, à própria democracia.

A existência de organizações criminosas, que intervêm no tráfico de estupefacientes, influenciam de uma forma subterrânea, a vida política e económica de alguns países.

Tudo isto é conhecido e exige por parte dos responsáveis políticos uma intervenção prudente mas eficaz.

Na sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1998, foi aprovada uma declaração política que constituiu uma expressão clara da determinação de encarar frontalmente este problema e da responsabilização de todos os países visando a redução da toxicodependência.

Fiz apelo, então, à premência de uma nova política social preventiva, especialmente em relação aos jovens, que envolva a educação, o emprego, a formação profissional, a saúde, o planeamento urbano, o apoio familiar.

Uma nova política que promova, com equilíbrio, a redução da oferta, traduzida no combate ao tráfico, e da procura, ou seja a prevenção e o tratamento da toxicodependência e a redução dos riscos associados ao consumo de drogas.

Referi, então, que entendia que os programas mais eficazes para reduzir a procura são os desenvolvidos e apoiados, a nível local, pelas cidades, pelas escolas, pelas organizações não governamentais, pela própria comunicação social.

Por outro lado, tem cada vez menos significado a separação maniqueista entre países produtores e países consumidores, em especial quando a União Europeia constitui uma das mais importantes regiões mundiais na produção de anfetaminas e estimulantes do tipo ecstasy.

Foi com esta convicção que promovi o seminário euro-iberamericano que reuniu, no Porto, em Outubro de 1998, representantes pessoais dos Chefes de Estado dos países ibero-americanos e prestigiados peritos de vários continentes.

Não me quero alongar nas conclusões desta reunião inédita que pretendeu identificar as necessidades de cooperação e transformá-las em projectos concretos de trabalho para os decisores políticos, para os investigadores e para os técnicos.

A cooperação nas políticas será, porventura, a chave para uma estratégia mais ampla e consistente, quer a nível comunitário, quer na cooperação norte-sul apoiada pela União Europeia.

Cooperação no combate ao tráfico, certamente, mas também na troca diversa de informações e na redução da procura.

E aqui, mais uma vez, destaco o papel relevante desempenhado, nos últimos anos, pelo Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência.

Penso, todavia, que se torna necessário caminhar em direcção a uma política europeia no domínio da droga, que represente, como já o disse, uma resposta concertada a um problema manifestamente transnacional e que exige, como em outras políticas comuns europeias, um grande esforço de cooperação e de coordenação.

Mas gostaria, ainda, de sublinhar como importantes iniciativas nacionais o Relatório da Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, de inegável qualidade técnica e a Resolução do Conselho de Ministros sobre o mesmo tema.

Quais são, então, do meu ponto de vista, os ganhos mais significativos que a sociedade portuguesa alcançou nesta matéria, nos últimos anos?

Em primeiro lugar estamos agora mais informados sobre a complexidade do problema das drogas e das toxicodependências e discutimos abertamente a sua dimensão e as diversas alternativas que se colocam para limitar algumas das suas mais dramáticas consequências.

Em segundo lugar somos hoje mais realistas, procurando sempre combater o tráfico, mas tentando minimizar os efeitos, os danos, os riscos das drogas para os seus consumidores.

Em terceiro lugar acentua-se a necessidade de uma política social preventiva que estude e identifique os diversos problemas que levam ao consumo de drogas.

Em quarto lugar o esforço maior deverá ser o de promover práticas e hábitos de vida saudáveis, junto da população em geral, mas, em especial para os grupos sociais ou etários mais em risco.

Em quinto lugar assistimos hoje à construção de um novo paradigma político, mas também de um novo paradigma técnico: os toxicodependentes são hoje compreendidos e aceites também como doentes e a saúde pública constitui o ponto de abordagem prevalecente.

Em sexto lugar o entendimento sério e plural do problema convida-nos a ouvir os toxicodependentes para entender a sua responsabilidade e também as suas angústias.

Em sétimo lugar existe presentemente a compreensão de que o problema é transnacional e que a responsabilidade partilhada por todos os Estados e a solidariedade internacional representam as condições básicas para o êxito de uma estratégia concertada.

Em oitavo lugar repensamos permanentemente a adequação e a eficácia das leis, dos tribunais, das autoridades policiais e das instituições prisionais face às drogas.

Finalmente, constatamos, uma vez mais, que a cooperação entre técnicos e políticos é fulcral para o êxito de uma estratégia nacional.

Apesar dos graves problemas com que nos confrontamos permanentemente, esta evolução, na sociedade portuguesa e no plano internacional, permite-nos um espaço para optimismo.

As certezas do passado, assentes na convicção de que a repressão resolveria a prazo o tráfico e o consumo das drogas, não resistem hoje à serena análise dos resultados.

Gostaria que o debate sobre este tema mantivesse o tom de elevação e de seriedade que o tem caracterizado nos últimos anos.

Gostaria, ainda, que não fosse abandonado o consenso possível que todos laboriosamente construímos.

Pelo contrário: que ele seja aprofundado, com base nas nossas convicções, certamente, e com a disponibilidade permanente para aprender com todos os que se têm dedicado ao tratamento, ao estudo e à investigação do problema das drogas e das toxicodependências.

É necessário, então, que o novo paradigma se fortaleça, com base na investigação científica, na avaliação do trabalho técnico, na circulação de informação entre comunidades e países, para que as próximas gerações possam crescer sem as dramáticas situações que hoje ainda observamos em todo o mundo.