Sessão Conjunta de Abertura da 6ª Conferência Nacional sobre a Qualidade do Ambiente e da Internacional Conference on Public Participation and Information Tecnologies

Lisboa
20 de Outubro de 1999


Aproveito esta ocasião única em que me encontro perante uma assembleia conjunta de técnicos de Ambiente e de especialistas da Participação das Populações e das Tecnologias da Informação para procurar reflectir sobre alguns temas que são essenciais, no nosso dia a dia, e dizem respeito a todos, qualquer que seja o nível de responsabilidade em que nos situemos, pois representam uma exigência primordial de cidadania.
Estes temas ligam-se a um problema fundamental que é o da relação entre o Homem e a Natureza, o qual tem de ser, hoje, encarado como uma verdadeira questão do nosso progresso e da nossa sobrevivência como Espécie.
A consciência que temos da nossa situação cria-nos a responsabilidade de agir.
Sabemos que somos uma espécie, entre os biliões delas que povoam e povoaram o Planeta - uma espécie que, como todas, usa a Natureza para assegurar a sua vida, saúde e bem-estar, provocando perturbações e mudanças no próprio processo natural de evolução.
Mas sabemos também que somos a única espécie capaz de conhecer e estudar o meio em que vive, bem como os efeitos e consequências da sua acção sobre ele.
Esse conhecimento dá-nos a capacidade de gerir para além do interesse imediato, numa perspectiva de longo prazo, e a aptidão por entendermos que pertencemos a um sistema que não é inesgotável nos seus recursos. Essas capacidades e aptidões de compreender e agir representam também uma obrigação, uma responsabilidade e um dever.
Uma obrigação perante nós e os nossos contemporâneos.
Uma responsabilidade face ao futuro e às gerações que nos sucederão.
Um dever, em suma perante o passado, o presente e o futuro da Terra e da espécie humana.
Como único ser vivo com capacidade de compreender, prever e gerir a longo prazo, temos a obrigação de preservar e promover o sistema ambiental, buscando um equilíbrio que assegure a vida, a saúde e o bem-estar da Humanidade de forma durável, ao mesmo tempo que defenda, proteja e promova o ambiente e aqueles factores que, nele, são decisivos para a continuação da nossa existência como espécie.
Enunciar este princípio fundamental, não é desconhecer que a sua prática está sujeita a dificuldades de vária ordem.
Desde logo, a que resulta do facto de que, se conhecemos já alguma coisa, desconhecemos ainda muito, sobretudo no que se refere às reacções e consequências das nossas intervenções.
Depois, temos a dificuldade que advém de uma pulsão biológica que se exerce em ordem ao preenchimento e à resposta imediata das nossas necessidades, impedindo, tantas vezes, a necessária racionalidade dos actos de gestão da natureza.
É por sabermos isto que temos de estar cada vez mais preparados, prevenidos e conscientes. É por isso mesmo que gerir recursos naturais representa um desafio técnico, político, social e ético.
Um desafio técnico, de modo a assegurarmos que as soluções encontradas e postas em prática são, no estado dos conhecimentos e da tecnologia de cada momento, as que melhor asseguram a preservação da capacidade do ambiente, potenciando a equidade socio-cultural e a eficiência económica das nossas actividades.
Um desafio político, social e ético, porque, nestes actos de gestão estamos, muitas vezes, não apenas a obedecer a princípios e convicções que não são os que a nossa biologia determina ou seja, a mera sobrevivência como ser e como espécie, como temos mesmo de reprimir algumas dos nossos impulsos socio-culturais que, porventura, se mostrem desfasados dos objectivos de equidade social e do respeito pela capacidade do ambiente.
Tendo presente o quadro geral em que estas questões se põem julgo importante reflectir um pouco sobre a forma como as nossas sociedades podem caminhar no sentido de, dentro das condições que asseguram um equilíbrio ecológico durável, prosseguir visando a Saúde e o Bem-Estar de todos os seres humanos. Como sabemos, os sistemas ambientais são o suporte de todos os sistemas sociais, como sempre constituíram o suporte de todas as comunidades de espécies que vivem e viveram na Terra.
Sabemos hoje, mais do que nunca, que esses sistemas dependem das utilizações que deles fazem toda a comunidade dos seres vivos e o ser humano em particular, o Homem, introduzindo modificações na natureza desses sistemas cujos efeitos têm de ser avaliados.
Não podemos analisar a qualidade e o respeito pela capacidade do Ambiente sem a equacionar em termos do funcionamento equitativo dos sistemas socio-culturais e, ainda, da eficácia dos sistemas económicos que lhes dão consistência, assegurando a subsistência e o progresso individual e colectivo.
Tudo isto introduz um complexo desafio em termos de conhecimento do funcionamento das nossas sociedades: a saber, o da gestão integrada e simultânea de três complexos sistemas, o Ambiente, a Sociedade e a Economia, profundamente interligados, sujeitos a diferentes regras e condicionantes de natureza cultural, social, económica ou geográfica, para citar apenas algumas das mais importantes.
Este desafio é um desafio global, porque, como sabemos, o ambiente terrestre é uno, tendo qualquer perturbação grave, por mais localizada que seja, um efeito na totalidade do sistema.
É também global porque diz respeito à globalidade dos valores, princípios e objectivos que conduzem a gestão política, económica, social e cultural do nosso globo.
No primeiro caso estamos perante um exigente problema técnico, domínio no qual o progresso tem sido nos últimos anos muito significativo e que estas conferências de certo reflectirão.
No segundo caso, estamos perante problemas de uma enorme complexidade, que tem que ver com a integração, na temática ambiental, da questão do desenvolvimento.
De facto, urge alterar o modo como nas nossas mentalidades e práticas temos abordado o Desenvolvimento, circunscrevendo-o, quase só ao domínio económico, esquecendo que a omissão das componentes social e ambiental põe em causa as próprias bases e a sustentabilidade desse “desenvolvimento”.
Se consideremos as crises socio-políticas que o Mundo atravessa, encontramos como suas causas frequentes a injustiça social, a violência exercida sobre culturas, a ineficácia dos sistemas económicos ou a disputa de recursos ambientais escassos.
Enfrentar estas crises numa perspectiva meramente sectorial é manter a sua latência e o risco de, num maior ou menor prazo, reeclodirem com maior intensidade.
Encará-las globalmente, exige responder a um conjunto de desafios, sobre os quais interessa reflectir para podermos agir. Posso sintetizá-los sob a forma de interrogações.
Como resolver a contradição aparente ou real, entre a globalização económica, informativa, cultural social e ambiental e a soberania nacional, expressa em termos da soberania democrática tradicional e dos novos modos de participação popular nos sistemas de decisão?
Como envolver as pessoas na vida social, sem que elas se sintam desmotivadas pelo gigantismo e pela inércia das instituições, já não locais ou nacionais, mas crescentemente globais?
Como implementar soluções equitativamente fundamentadas, num universo crescentemente mediatizado pela difusão da informação, no qual a opinião individual assume um valor completamente diferente da no passado, tomando a representação e a concertação muito mais complexas?
Como ultrapassar a tendência crescente de desresponsabilização individual que, contraditoriamente, perante a referida crescente individualização da opinião pela difusão global da informação, se traduz na, incapacidade de acção que leva por vezes os indivíduos a abdicarem da sua condição de cidadãos, relegando para os “outros” a responsabilidade pela solução dos problemas colectivos?
Como assegurar uma real participação dos indivíduos e comunidades nos processos de decisão num mundo em crescente “desnacionalização” dos mecanismos de poder político e económico, e a emergência cada vez mais acentuadas das corporações supranacionais, totalmente regidas estas por normas que fogem à lógica da soberania e dos direitos dos indivíduos, das comunidades ou mesmo das Nações?
Como fazer emergir uma estrutura efectiva de poder partilhado e democrático em que os cidadãos envolvidos local e regionalmente, se concertem como poder em contraponto e em colaboração com os órgãos de natureza mais central ou global, sejam elas corporações ou comunidades e administrações regionais, nacionais ou internacionais?
Como assegurar a igualdade na diversidade, seja ela nos domínios cultural, económico ou social, sem reduzir a importância da diversidade cultural, ecológica e geográfica a uma pseudo igualdade económica, desprezando as especificidades e valores locais, em favor de uma uniformização que fere o próprio princípio da igualdade que se afirma querer preservar e concretizar?
Como assegurar, em suma, o equilíbrio entre a globalidade do acesso à informação e a preservação dos valores e individualidades locais, regionais e nacionais, numa perspectiva inversa do chauvinismo que marcou tão dolorosamente o último século? Como assegurar, em suma, a afirmação das mais-valias individuais em termos de contribuição para a riqueza e o bem estar globais?
Acabei de enunciar um conjunto de questões que, como cidadão e como político me preocupam, e para as quais sei que, só colectivamente, poderemos ir encontrando as soluções.
Estou consciente da existência de uma certa incomunicabilidade entre aqueles que decidem politicamente e aqueles que investigam e têm responsabilidades técnicas.
Essa incomunicabilidade é um mal que deve ser ultrapassado. Precisamos de falar mais uns com os outros, de aprender com as nossas experiências diversas.
A Economia, a Sociedade a Cultura e o Ambiente estão intimamente ligadas e, sem uma visão plural e global, apenas semeamos conflitos, seja eles entre os homens, seja nos efeitos que decorrem da incapacidade da Natureza em suportar, de uma forma compatível com as necessidades humanas, as perturbações que nela se vai provocando.
As vossas conferências contribuirão, estou certo, à semelhança das anteriores, para um avanço, sempre naturalmente incompleto, no sentido da resolução de algumas destas questões. Quero louvar, por isso, esta realização e a feliz iniciativa de as conjugar num forum comum. Todos os esforços que se façam no sentido de desenvolver as técnicas e motivar os processos sociais e éticos que nos permitam olhar o futuro de uma forma responsável e mais confiante merecem ser apoiadas.
Desejo o maior êxito aos vossos trabalhos e fico à espera das conclusões a que chegarem, pois elas são muito valiosas e úteis para permitir decidir com mais informação e maior consciência do que verdadeiramente está em causa. Bom trabalho!