Sessão de Abertura da Conferência Internacional “A Reforma sobre o Pacto Social”

Centro Cultural de Belém
08 de Novembro de 1999


A efectividade dos direitos dos cidadãos e o desenvolvimento da cidadania devem ocupar um lugar central na acção política. Constitui, aliás, um dever de todos aqueles a quem o voto conferiu a responsabilidade de velar pelo bem comum e pela coesão das nossas sociedades. Por isso decidi promover esta Conferência Internacional sobre a Reforma do Pacto Social.
Ora, como sabemos, as mudanças em curso em cada um dos nossos Países, na Europa e no Mundo, afectaram profundamente as relações entre as esferas do político, do económico e do social. Trouxeram à superfície os sinais da crise do pacto social tradicional. Apesar das características próprias de cada um dos Estados membros da União Europeia, esses sinais são iniludíveis em todas as sociedades europeias.
Sei bem que os esforços para encontrar novos meios de conjugar a cidadania e o desenvolvimento económico, o progresso social e a competitividade empresarial motivam inteligências, saberes, vontades, instituições e poderes. É importante que os resultados desses esforços sejam avaliados e dessa forma recebam também um novo estímulo.
Conhecer melhor, com o rigor garantido pelo alto nível das personalidades que aqui intervirão, as diferentes manifestações concretas que a crise do modelo social europeu assume nos diversos países que, como Portugal, ambicionam construir uma Europa que se mantenha como uma das referências mundiais da cidadania democrática, justificaria, só por si, estes dois dias de trabalho.
Mas permitam-me que exprima a ambição de que este encontro constitua, além disso, uma oportunidade para nos interrogarmos explicitamente sobre o presente e o futuro da cidadania europeia e, em particular, sobre as exigências e as possibilidades de reforma dos diferentes sistemas de relações industriais que integram o modelo social europeu.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Portugal saiu, há um quarto de século, de uma das mais longas ditaduras que Europa conheceu. Depois de institucionalizada a Democracia, optou, há quase década e meia, pela integração nas Comunidades Europeias.
O nosso futuro está hoje profundamente ligado ao da União Europeia, em cuja construção os cidadãos, as empresas e as instituições portuguesas vêm participando com uma lucidez e com uma determinação que muitos, dentro e fora do País, não julgavam possível.
E é porque estou certo de que queremos continuar nesse caminho, exigente e rigoroso, do desenvolvimento económico, da solidariedade social e do aprofundamento da cidadania que proponho um confronto e uma avaliação de respostas à crise do modelo social europeu. Trata-se de debater afinal os modos de melhorar a eficiência e a qualidade das respostas que têm vindo a ser dadas, dentro e fora de Portugal, à crise do acordo social que garantiu às democracias desenvolvidas da Europa décadas consecutivas de crescimento económico e de progresso social.
Partilhar informações, avaliar experiências próprias e alheias, discutir as possibilidades e as condições para disseminar boas práticas, são, certamente, alguns dos instrumentos que usaremos com vantagem.
Fazê-lo, quando queremos partilhar responsabilidades quanto ao futuro da casa comum europeia, parece tanto mais necessário quanto temos pela frente dificuldades pesadas e complexas.
Os sinais das dificuldades em que nos encontramos são claros e bem conhecidos, por essa Europa fora.
Em primeiro lugar, os altos níveis de desemprego que conhecemos e, em particular, a permanência de elevadas taxas de desemprego de longa duração.
Em segundo lugar, as persistentes desigualdades sociais no acesso ao trabalho, ao emprego e aos rendimentos. Atingindo de forma particularmente intensa as mulheres, os menos qualificados e os mais idosos, tais desigualdades também não poupam alguns grupos de jovens muito escolarizados.
Em terceiro lugar, a insegurança de uma parte crescente dos cidadãos quanto aos seus níveis de rendimento no presente e no futuro e o desenvolvimento de novas formas de pobreza, associadas às mutações em curso nos mercados de trabalho.
Em quarto lugar, os problemas de financiamento da segurança social, derivados tanto das mudanças demográficas, como do aumento das necessidades de protecção social; tanto do aumento do desemprego, como, ainda, das pressões para a redução da carga contributiva ligada ao trabalho e ao emprego.
É sabido que são profundas as divergências entre os analistas quanto ás origens e à dimensão dos processos que condicionam a evolução da crise do pacto social tradicional.
Mas seja qual for a opinião que cada um tenha sobre as causas da situação acima descrita, espero que possamos concordar que nas, duas últimas décadas, os temas da agenda das relações laborais sofreram uma mudança radical.
Nalguns casos, optou-se por uma abordagem neoliberal que pretendeu responder à crise económica e social pela supressão de muitas, se não mesmo de todas, as barreiras legais e contratuais que condicionam o funcionamento dos mercados.
Noutros casos, a discussão sobre as formas de protecção do emprego cedeu lugar ao debate sobre a empregabilidade e sobre as medidas capazes de a promover. As polémicas sobre os ritmos e as formas de garantir a universalidade da protecção social foram substituídas pelo controvérsia quanto às prioridades que devem incumbir aos sistemas públicos de protecção social. A questão da partilha dos aumentos da produtividade perdeu prioridade em relação à da eficiência das políticas de gestão dos mercados de trabalho.
Mas, qualquer que tenha sido o caminho predominante nos diferentes países, os especialistas, os agentes sociais e económicos, os decisores políticos e a comunicação social convergem muitas vezes na ideia de que, enquanto se ampliaram os problemas socioeconómicos com que nos deparamos, as alternativas políticas susceptíveis de os enfrentar se estreitaram.
É esta situação, com muito de paradoxal, que ainda hoje vivemos e que parece insustentável a muitos de nós.
Dir-se-á que, sobretudo na última década, se multiplicaram iniciativas, algumas de indiscutível importância, destinadas ao debate das reformas que a situação exige.
Dir-se-á, a meu ver também com justiça, que a União Europeia, teve nesse debate um papel de grande relevo e que, desde o Livro Branco sobre Crescimento, Competitividade e Emprego, até à Cimeira do Luxemburgo se fez uma parte do caminho que, respeitando as especificidades próprias de cada Estado membro, permite a coordenação das políticas de emprego para objectivos comuns definidos por acordo ao nível europeu.
E é igualmente certo que os parceiros sociais europeus esboçaram já o que pode vir a ser uma das dimensões relevantes dum sistema de relações industriais europeu, sistema esse que, com a criação dos comités europeus de empresa, promete alguns desenvolvimentos da informação e da consulta dos trabalhadores nas empresas mais importantes.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Estou certo que os trabalhos desta Conferência permitirão esclarecer melhor o alcance das mudanças em curso tanto dentro dos Estados membros como na própria União e avaliar com maior precisão as tendências nelas detectáveis, pelo que aguardo com muito interesse os resultados dos debates que aqui terão lugar.
Quero, porém, deixar, desde já, enunciar algumas grandes questões que importam ao nosso futuro comum de cidadãos europeus.
A primeira delas, diz respeito às possibilidades de conciliar diferentemente o aumento da competitividade empresarial e a cidadania social dos europeus. Que poderemos fazer para evitar a oposição, tantas vezes invocada, entre um alto nível de direitos sociais, que faz parte da própria identidade europeia, e a necessidade das empresas responderem com eficácia aos desafios da competição internacional?
Que novos direitos é preciso assegurar para que os cidadãos, para além de disporem de reais possibilidades de adaptação à situação presente, possam encarar o futuro como um tempo mais promissor do que o passado?
A segunda interrogação prende-se com as políticas de promoção do emprego. Que poderemos fazer para melhorar a eficiência e a equidade dos sistemas de emprego, tantas vezes discriminatórios, quando não mesmo segregacionistas, para os que partem de posições socialmente desfavorecidas? Na situação actual, como poderemos reduzir a segmentação dos mercados de trabalho e promover flexibilidades não precarizantes?
A terceira interpelação refere-se à capacidade de orientar e de regular a mudança. De que alternativas dispomos para assegurar que, numa União Europeia monetariamente unificada, os diferentes mercados de trabalho, com as características que os individualizam, conseguem responder às alterações conjunturais e estruturais em curso, sem darem lugar a crises sociais graves dentro de cada Estado e a crises políticas relevantes entre Estados membros? Quem pode e quem deve fazer o quê para criar um conjunto de instrumentos de solidariedade económica e social que garanta a coesão europeia?
A quarta questão que gostaria de suscitar é a da europeização dos diferentes sistemas de relações industriais que coexistem no interior da União e da “zona euro”. Que possibilidades de coordenação ou de convergência entre os diferentes sistemas existem desde já? Que balanço fazem, quer os especialistas, quer os parceiros sociais das evoluções possíveis e desejáveis no curto e no médio prazo? Que requisitos pressupõem cada uma das alternativas em presença? E que instrumentos são utilizáveis?
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Estou convicto que muito do nosso futuro como cidadãos europeus depende das respostas que formos capazes de construir para enfrentar esse duplo desafio permanente das sociedades avançadas que consiste em, por um lado, assegurar o desenvolvimento económico que o mercado permite, e, por outro lado, limitar as desigualdades que ele engendra e potencia.
Temos pela frente desafios novos que, todos o sabemos, não poderão ser ganhos com estratégias cujos resultados ficaram aquém do que prometiam.
Julgo que todos reconheceremos que estamos obrigados a procurar soluções inovadoras para enfrentar as causas contemporâneas da iniquidade, que instala a descrença e corrói a coesão social.
É, uma tarefa difícil, que exige a cooperação das nossas melhores inteligências, de todo o saber a que pudermos aceder, de toda a determinação de que formos capazes.
Espero e desejo que esta Conferência permita dar um passo mais na direcção dum debate cada vez mais atento às inovações, plural, crítico, fundamentado, que envolva a comunidade científica, os agentes económicos e sociais e, evidentemente, os que têm especiais responsabilidades na condução das políticas públicas.
Devo, por isso, um agradecimento sincero a todos os que nela quiseram participar e, em particular, aos que, apesar dos compromissos decorrentes das suas responsabilidades científicas e académicas, profissionais ou políticas, se dispuseram a sacrificar algum do seu tempo para aqui virem dar conta dos resultados do seu trabalho, manifestando o desejo duma estadia agradável e proveitosa para os que se deslocaram propositadamente a Lisboa.