Sessão Solene que Assinala a Transferênciade Soberania do Território de Macau

Assembleia da República
14 de Dezembro de 1999


Foi com muito gosto que aceitei o convite para participar nesta sessão solene da Assembleia da República, nas vésperas da transferência do exercício da soberania no Território de Macau.
Desde logo, a sua realização sublinha a importância excepcional desse momento, tão carregado de história, designadamente para todos os da minha geração, cujo tempo político coincidiu com o fim do império e nos impôs a responsabilidade das grandes decisões sobre o nosso destino comum como nação livre e independente.
Por outro lado, a presença de todos os órgãos de soberania cuja legitimidade decorre do principio da representação democrática assinala o consenso nacional sobre as principais linhas de orientação no processo de transição em Macau, que foi possível manter, nomeadamente desde a assinatura da Declaração Conjunta luso-chinesa. Esse consenso é ainda testemunho do sentido de responsabilidade do conjunto das forças políticas com representação parlamentar e da maturidade da democracia portuguesa.
Por último, é este o quadro institucional apropriado para afirmar, na pluralidade das suas expressões, a permanência de uma vontade nacional indispensável para garantir o empenho continuado de Portugal no futuro de Macau, para lá da transferência do exercício da soberania, que se subordinará, naturalmente, a um principio de cooperação com a República Popular da China e com as futuras autoridades do Território, no estrito respeito pelos acordos existentes.
Portugal reconheceu Macau como parte integrante da China em Janeiro de 1975, quando se deram os primeiros passos para estabelecer relações diplomáticas com a República Popular da China, corrigindo-se, desse modo, uma situação anómala, que se prolongava desde 1949.
Esse reconhecimento, inscrito na Constituição da República, que passou a definir Macau como um território sob administração portuguesa, implicava uma disponibilidade para determinar, por meio de negociações entre os dois Estados, o futuro do Território. A mesma posição foi expressamente reiterada, em Fevereiro de 1979, quando Portugal e a República Popular da China acordaram em estabelecer relações diplomáticas oficiais. Em 1985, na sequência da Declaração Conjunta sino-britânica e por iniciativa da parte chinesa, os dois Estados decidiram iniciar conversações sobre a transferência do exercício da soberania em Macau, que se concluíram, em 1987, com a assinatura da Declaração Conjunta luso-chinesa, ratificada, por unanimidade, pela Assembleia da República.
O processo de transição em Macau, que se prolongou durante os últimos doze anos, foi um processo excepcional, quer no quadro das relações entre Portugal e a China, quer quanto à evolução do Território nesse período. Tratava-se de uma empresa de grande complexidade, que poucos acreditavam poder ser levada a bom porto, sem crises, nem sobressaltos, tanto nas relações bilaterais entre os dois Estados, como em Macau.
A complexidade política do processo resultava, desde logo, da necessidade de articular posições não só entre as autoridades centrais e a administração portuguesa de Macau, mas também entre Portugal e a República Popular da China, designadamente no Grupo de Ligação Conjunto.
A transição exigia, por um lado, um quadro de estabilidade política, económica e social em Macau e, por outro lado, um esforço extraordinário para adaptar as leis, a administração pública e os tribunais, de modo a garantir, nos termos da Declaração Conjunta, uma regra de continuidade essencial na passagem da administração portuguesa para a futura Região Administrativa Especial de Macau, que será formada em 20 de Dezembro de 1999.
Ao mesmo tempo, tornou-se indispensável criar as condições para uma estratégia de desenvolvimento acelerado, designadamente para consolidar as instituições políticas e judiciais do Território, bem como para dotar Macau de grandes infra-estruturas, de que são exemplos significativos o aeroporto internacional e o Centro Cultural, uma e outras essenciais para sustentar o estatuto de autonomia do Território depois da transição.
Era necessário dar um sinal claro do nosso empenho em projectar a posição regional e internacional de Macau como uma cidade moderna, com instituições próprias estáveis, subordinadas ao primado da lei, assentar a sua economia em fundações sólidas e garantir a segurança e o bem-estar da comunidade do Território, num quadro de respeito pelos seus direitos, liberdades e garantias.
Creio poder afirmar que cumprimos todos os objectivos essenciais. Foi possível antecipar as previsíveis dificuldades e evitar situações de crise nas relações entre Portugal e a China, bem como garantir um quadro de estabilidade sem precedentes na administração de Macau, que pôde contar, em todos os momentos, com o indispensável apoio do Governo da República, numa articulação permanente, sem a qual teria sido impossível realizar a nossa estratégia.
Num quadro formal, o futuro de Macau está definido, com uma precisão sem precedentes na sua longa história, pela Declaração Conjunta e pelos respectivos anexos. Nos termos dos acordos entre Portugal e a República Popular da China, durante cinquenta anos, Macau manterá as suas instituições, as suas leis, o seu modelo económico e o seu modo de viver próprio, no quadro de um estatuto especial de autonomia que rege a Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China. O português continuará a ser uma das duas línguas oficiais.
O Território tem instituições próprias consolidadas, uma administração moderna e uma moldura jurídica consistente. Nos termos previstos pela Declaração Conjunta, os direitos, liberdades e garantias da comunidade estão codificados nas suas leis internas e pela aplicação a Macau dos principais pactos internacionais de direitos, que foi confirmada no quadro do Grupo de Ligação Conjunto luso-chinês. Tem também uma economia sólida e aberta, sistemas educativos e de segurança social eficazes. O rendimento per capita dos seus habitantes é dos mais altos da Ásia Oriental.
Macau tem também, e sobretudo, uma forte identidade. A sua história, a sua comunidade, as suas instituições, a sua especificidade cultural tornam Macau uma cidade única, com um trajecto singular, designadamente nas relações entre a civilização ocidental e a civilização chinesa.
Macau demonstrou, ao longo de séculos, uma grande capacidade de adaptação às mudanças e, neste momento, com o quadro formal do seu estatuto especial de autonomia e as condições económicas e sociais do Território, está preparado para iniciar um novo ciclo.
Os Portugueses têm boas razões para ter orgulho no passado e confiança no futuro de Macau, que, doravante, dependerá, sobretudo, das suas gentes e das autoridades da República Popular da China e da futura Região Administrativa Especial de Macau.
No entanto, Portugal continuará a estar presente em Macau, onde a nossa história deixou tantas marcas, visíveis e invisíveis, que seria pretencioso procurar descrever cada uma delas.
Foi feito um esforço notável, por parte do Governo da República, da administração portuguesa do Território e de outras instituições para garantir uma visibilidade adequada da nossa presença em Macau depois da transição, nomeadamente na educação e na cultura. A Escola Portuguesa é um bom exemplo desses esforços. É igualmente importante uma presença de Macau em Portugal e foi nesse sentido que se criou o Centro Cultural e Cientifico de Macau em Lisboa.
Em paralelo, deve insistir-se na importância das relações económicas e fazer um esforço para desenvolver os investimentos recíprocos. São outros tantos vínculos necessários para o futuro das nossas relações com Macau e um sinal da nossa vontade em trabalhar, num espirito de abertura e cooperação, com as autoridades da futura Região Administrativa Especial.
Minhas senhoras e meus senhores
Todos os fins podem ser um principio.
A transferência do exercício da soberania em Macau abre um novo ciclo nas relações entre Portugal e a China, as mais antigas entre um Estado europeu e a principal potência da Ásia Oriental, que adquirem uma relevância acrescida para os equilíbrios internacionais, no quadro das relações entre a União Europeia e a República Popular da China. Abre também um novo ciclo das nossas relações com Macau, que queremos fortes e solidárias, portadoras que são de uma parte da nossa história. Abre, sobretudo, um novo ciclo na história de Macau, que se inicia marcado por um espirito de assinalável confiança no futuro, para o qual contribuímos e queremos continuar a partilhar.