Sessão Solene Comemorativa do XXII Aniversário do 25 de Abril

Assembleia da República
25 de Abril de 1996


Quero saudar os militares que prepararam e participaram no Movimento das Forças Armadas do dia 25 de Abril de 1974.
Eles gravaram uma página da História de Portugal.

Ao garantirem a liberdade e a democracia, puseram fim a um regime ditatorial, caracterizado pela opressão das polícias políticas, pela ausência de um Estado de direito democrático, pela violação persistente de direitos fundamentais e pela recusa do direito à autodeterminação dos povos.

Hoje, é já muito grande o número daqueles que, felizmente, não viveram sob a ditadura. É a esses, sobretudo, que importa relembrar o exemplo desses homens que, mal equipados e em número reduzido, tiveram a coragem de arriscar tudo em nome da Liberdade.

Mas, devo lembrar aqui, também, todos aqueles que sofreram e lutaram durante décadas para que um dia como o do 25 de Abril fosse possível. Mulheres e homens de várias gerações, de diversas ideologias e de todos os grupos sociais, mantiveram, desde 1926, uma tradição de luta e resistência. A ditadura militar, primeiro, e o Estado Novo, depois, em nenhum momento se puderam vangloriar de ter eliminado a resistência, de ter morto a esperança.

A Liberdade e a Democracia Representativa são hoje valores fundadores do nosso regime político. Todos nos reconhecemos nesses valores, como o prova o amplo consenso sobre a natureza do regime alcançado, há precisamente vinte anos e mantido até hoje, felizmente, em todas as revisões constitucionais. Esse foi um factor decisivo, na implantação da democracia, para a estabilidade política e para a consolidação do sistema partidário.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O 25 de Abril permitiu o pleno desenvolvimento da cidadania. Deu a todos os portuguesas a liberdade de poder interpretar, sem imposição de dogmas, a evolução da sociedade. A liberdade de escolha democrática devemo-la ao 25 de Abril.

No fundo, o que se comemora no 25 de Abril é a liberdade para optar, para poder debater e decidir sobre o nosso destino colectivo. É a liberdade de escolher. Nada pode separar mais a democracia da ditadura do que a liberdade de poder escolher o caminho para onde queremos conduzir os nossos destinos individuais e o destino colectivo de Portugal.

E se esse dia foi um acto de revolta contra um regime iníquo, que a nossa comemoração possa ser, hoje, um acto de reflexão sobre o conformismo que tantas vezes se abate sobre as sociedades contemporâneas.

Hoje, mais do que nunca, torna-se imprescindível compreender o mundo em que vivemos, bem como as escolhas que se configuram.

Somos continuamente confrontados com a máxima «é preciso adaptarmo-nos», como se não houvesse escolhas, nem alternativas: como se só houvesse uma solução possível.

O 25 de Abril abriu novos horizontes ao futuro de Portugal. Permitiu olhar para a frente com confiança. É importante reafirmar que o destino de Portugal depende de nós. De todos os portugueses.

Mas para decidirmos o que nos interessa, precisamos de iluminar bem o contexto da nossa decisão.

Tradicionalmente, o recurso à experiência histórica bastava para nos garantir um adequado enquadramento das grandes questões e opções.

Mas no mundo de hoje, a unificação geográfica e as revoluções científicas e industriais levam-nos cada vez mais a olhar para o futuro como uma construção, como uma corporização das percepções e decisões do presente, e cada vez menos como uma fatalidade.

Por isso, sem um esforço prospectivo de reflexão sobre o futuro, olhando para além da conjuntura, não seremos capazes de interpretar o presente, não teremos meios, sequer, para avaliar a esperança, no dizer do grande António Vieira.

É preciso medir o futuro. Mas, o futuro decorre apenas em parte dos indicadores de natureza económica: a outra parte, porventura a mais decisiva, resulta das visões e das aspirações dos principais agentes e actores da sociedade em que vivemos.

São eles que nas circunstâncias das sociedades contemporâneas constroem o sentido da nossa identidade.

É que para além da cultura e do património, a identidade depende hoje da capacidade colectiva de construir um desígnio, de uma ideia de futuro.

No mundo contemporâneo não há identidade sem projecto.

É este o desafio que nos está lançado. A nossa identidade já não se pode definir e celebrar apenas pela história, tem de se alicerçar no consenso sobre o futuro de Portugal. Por isso, a construção da nossa identidade depende da qualidade da informação e da qualificação da cidadania.

A necessidade de um enorme esforço colectivo de aprendizagem é a característica técnica do nosso tempo. O nível de coesão de uma sociedade depende hoje de uma elevada actividade de comunicação interna. É esta a complexidade das sociedades modernas. E, por isso, é este o desafio que está colocado à coesão nacional. A coesão nacional é tanto menor quanto menor for a mobilidade social, quanto menor for o nível de articulação do planeamento e da subsidiariedade entre os diversos patamares da Administração.

Mas, a capacidade de reforçarmos a nossa identidade pela construção de um desígnio nacional, em que consensualmente os Portugueses se revejam, precisa que o conhecimento de Portugal e a capacidade de representar e interpretar a realidade não se encontre limitada. A investigação científica, a educação, a formação e a qualificação dos Portugueses são, por isso, uma prioridade. Só
a aposta na qualificação das pessoas pode garantir que os cidadãos dispõem da informação necessária a escolhas cada vez mais complexas. Só assim reconquistaremos permanentemente a liberdade.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O 25 de Abril garantiu, por outro lado, uma nova inserção internacional de Portugal. A adesão às Comunidades Europeias foi o corolário natural do fim de um período de autarcia, baseado na construção ideológica de um Império Colonial pluricontinental.

A implantação do regime democrático permitiu a Portugal ser membro de pleno direito da União Europeia, condição sem a qual teria sido impensável garantir a modernização do País, tão grande era o atraso herdado do anterior regime.

A União Europeia tem perante si, na viragem do século, de resolver o problema da intensificação da integração económica, num quadro de coesão interna, da expansão de fronteiras, com o alargamento às novas democracias europeias. Portugal deve participar activamente no debate dessas reformas identificando os seus objectivos prioritários e estabelecendo em torno deles os consensos nacionais de forma a garantir uma política externa firme e determinada.

Igualmente, as alterações operadas no sistema político português abriram o caminho para um novo relacionamento com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, assente no pleno respeito pela soberania dos povos e na partilha de um passado histórico e cultural comum.

Alicerçadas numa vivência de cinco séculos, as nossas relações com aqueles Países avultam como um autêntico desígnio nacional, constituindo uma consensual prioridade da política externa portuguesa.

Neste quadro, o aprofundamento dos laços de solidariedade e afectividade que nos unem aos Estados Lusófonos e a dinamização das acções de cooperação multilateral assumem o carácter de imperativo nacional e de importante vector para o reforço da nossa capacidade de afirmação externa.

Distinta de outros relacionamentos pela sua especificidade própria, a Cooperação que temos desenvolvido, fundamentada numa solidariedade efectiva e na sua dimensão ética e cultural, projectou Portugal como interlocutor privilegiado e desejado. É um capital de credibilidade que importa preservar e potenciar, na óptica dos interesses mútuos associados às políticas de cooperação, nomeadamente no domínio das relações entre os países do Norte e do Sul.

Entre outros aspectos, gostaria de recordar, hoje, aqui, pelo carácter simbólico de que se reveste, a cooperação que as Forças Armadas Portuguesas têm vindo a desenvolver, no cumprimento das suas missões em apoio da política externa do Estado e em conformidade com os objectivos da política nacional.

Essa política tem alcançado resultados notáveis em acções de cooperação técnico-militar com países lusófonos, abrindo portas a outras formas de cooperação, quer do Estado quer da Sociedade Civil.

A cooperação militar, desejada pelos países africanos lusófonos, tem de ser assumida por nós sem complexos, com naturalidade e ela é, em muitos aspectos, um instrumento da maior relevância na política externa portuguesa.

Essa cooperação abrange áreas que vão desde a formação de pessoal ao apoio da reorganização das forças armadas dos paísesafricanos lusófonos, a acções de intercâmbio no domínio da saúde e da formação de um número significativo de jovens em Portugal, nos estabelecimentos de Ensino e outras Unidades das Forças Armadas.

Estamos, assim, a contribuir: para fomentar a consolidação da ideia da Instituição Militar como elemento estruturante dos Estados e das Nações e suporte do exercício das instituições democráticas; e a contribuir, também, para a valorização do factor humano daqueles países. Qualquer um destes aspectos é vital para a consolidação e estabilização das jovens democracias pluripartidárias da África Lusófona.

Noutro plano, Portugal deverá continuar a lutar pela causa de Timor-Leste, no quadro dos esforços do Secretário-Geral da ONU, no cumprimento do seu mandato, na procura de uma resolução justa e internacionalmente aceite da questão de Timor--Leste.

O empenhamento de Portugal nesta matéria é, aliás, feito em coerência com dois valores essenciais que estiveram na própria génese do 25 de Abril e são hoje valores de referência da actuação internacional do Estado português: a defesa do direito dos Povos à autodeterminação e a defesa dos direitos humanos.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O 25 de Abril marcou também uma importante viragem nas opções estratégicas do País. Hoje é, de novo, chegado o momento de pensar estrategicamente o futuro de Portugal avaliando com rigor alguns factores que o condicionam a curto prazo.

A escassa dimensão da retoma económica, o ajustamento aos critérios de convergência nominal, o aumento da pressão concorrencial externa e a abertura da Conferência Intergovernamental e a pendência de dossiers tão sensíveis para Portugal como o Alargamento, a terceira fase da União Económica e Monetária e a definição das perspectivas financeiras depois de 1999 são matérias que aconselham a identificação rigorosa das linhas de orientação que nos devem nortear e, ao mesmo tempo, a necessidade imperiosa de formular as bases de uma concertação estratégica.

O presente exige opções claras e atempadas, um apurado sentido do interesse nacional, determinação na condução das políticas e, sobretudo, pedagogia na explicação das suas consequências.

As reformas necessárias não podem ser feitas ignorando os impactos sociais negativos que conjunturalmente provocam, porque assim se geram factores de conflitualidade que acabarão também eles por constituir obstáculos adicionais à mudança. Mas também é impossível olhar apenas ao curto prazo, porque a intervenção dispersa e avulsa se acaso impede o agravamento de tensões pontuais adia, porventura irremediavelmente, as opções de fundo. É sobre elas que é necessário acordar uma concertação estratégica.

Assim, é necessário que os agentes políticos e os parceiros sociais aceitem as responsabilidades inerentes aos desafios que se colocam ao País. A resistência à necessidade de concertação estratégica tem como única consequência introduzir um obstáculo adicional ao processo de mudança.

Exige-se, hoje, uma atitude de ajustamento positivo, de determinação, de confiança. Penso que para garantir esse desafio Portugal necessita de preparar, por um lado, as condições para uma competição aberta e, por outro, assegurar em paralelo condições para o controlo social e político das consequências de um mercado concorrencial aberto.

Não acredito na possibilidade de garantir uma economia moderna e competitiva na próxima década sem o desenvolvimento de políticas de solidariedade que lidem com o problema das tensões sociais provocadas pelo processo de modernização.

A capacidade de construir o futuro de Portugal como país moderno, competitivo e socialmente equilibrado depende, em grande medida: da definição de um justo equilíbrio entre a convergência nominal e a convergência real no âmbito da União Europeia; da articulação entre as políticas de Emprego, Formação e Educação, fundamental para melhorar as condições estruturais da competitividade económica e proteger as condições de controlo social da mudança; e da relação importantíssima entre a coesão nacional, as políticas de solidariedade e o sistema de segurança social.

Hoje é necessário uma valorização digna do princípio da mobilidade, da aprendizagem permanente, da polivalência, da capacidade de adaptação à mudança.

Não é possível pensar no futuro, permitam-me que volte a este ponto, sem aceitar que esta realidade requer pessoas com novos padrões de qualificação. Não basta uma reforma no sistema de educação formal, é preciso aceitar que os sistemas de formação profissional estão a ganhar um carácter permanente e passam a ser decisivos para a adaptação constante ao mercado de emprego.

Mas é errado pensar que esta capacidade de adaptação é apenas um problema dos trabalhadores. A formação de um corpo empresarial bem preparado é decisiva para a sustentação do emprego numa economia aberta e para o desenvolvimento essencial de uma sociedade civil mais autónoma e menos tutelada pelo Estado.

Tudo farei, no quadro das minhas competências constitucionais, para ajudar a criar o clima de confiança necessário à concretização dos acordos de concertação estratégica que vierem a revelar-se viáveis e adequados. Tudo farei para criar um clima de confiança na capacidade dos Portugueses em realizar com êxito essas reformas.

Precisamos de fazê-lo com entusiasmo e esperança, valorizando o que é novo, premiando o risco e o êxito, evidenciando o exemplo positivo como factor de mobilização social, combatendo as visões apocalípticas que alimentam a complacência e o conformismo.

O 25 de Abril deu lugar, após eleições livres, à Constituição de 1976, de que se comemoram os vinte anos de vigência.

A Constituição consagrou desde então a possibilidade de criação de regiões administrativas. No espírito dos constituintes estava presente a necessidade de contrariar uma grave tradição centralista e de utilizar a descentralização administrativa como um instrumento de planeamento e um poderoso estímulo ao desenvolvimento, corrigindo assimetrias e desfasamentos, que nos últimos vinte anos só se agravaram, valorizando recursos e competências, fortalecendo, nesse sentido, a coesão nacional.

Durante vinte anos não foi possível encontrar vontade política para levar por diante uma iniciativa legislativa que cumprisse esse preceito constitucional e dotasse Portugal desse instrumento de gestão, planeamento e racionalização de recursos num patamar intermédio entre o Poder Central e o Poder Local consagrado na Constituição da República.

O debate, importa reconhecê-lo, centrou-se sempre mais na discussão dos inconvenientes de um modelo de descentralização político-administrativa que não corresponde ao normativo constitucional que se limita a consagrar uma componente administrativa da descentralização. E, esse facto, descentrou a discussão da reflexão sobre a necessidade de encontrar esse, ou outro, instrumento de planeamento e gestão de recursos que articule operacionalmente áreas geográficas intermunicipais.

Creio que o debate sobre o processo de descentralização, que leve à criação de regiões administrativas no Continente deverá ser encarado com toda a naturalidade.

O facto de vários líderes de partidos com assento parlamentar se terem manifestado em apoio à necessidade dessa reforma, já constitucionalmente consagrada, só deve favorecer a desdramatização do de-bate e contribuir para que ele se centre na questão de fundo — as vantagens e os inconvenientes de se adoptar essa metodologia de descentralização — e menos nas questões de método e de calendário.
O que importa sobre a descentralização administrativa do País, conhecida por regionalização, é a discussão sobre o fundo da questão, sobre o que ela representa para o futuro de Portugal e dos Portugueses.

É sobre a questão de fundo que importa esclarecer os Portugueses. Tantas vezes, em torno desta discussão, avultam ideias feitas fruto de uma escassa pedagogia da reforma que se deseja levar a cabo. O debate de fundo, nos termos em que actualmente está colocado, parece só agora ter começado. Em boa verdade tratando-se de uma reforma da Administração só através dele se pode contribuir para a aproximação entre o Estado e os cidadãos.

Numa matéria desta relevância, entendo dever continuar a advogar, como tenho feito desde o dia em que fui empossado por esta Assembleia da República, a vantagem de se construir um consenso o mais amplo possível.

Sobre a questão de fundo a minha opinião é conhecida. Quanto ao resto, está o Presidente da República obrigado a fazer cumprir a Constituição que jurou e que só a vontade soberana desta Assembleia da República, dotada de poderes de revisão, pode alterar. Mas, também, está o Presidente da República obrigado a interpretar as condições de garantia da Coesão Nacional, por isso tenho atribuído tão alto significado à necessidade de um amplo debate e de um amplo consenso.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Procurei, nos últimos dias, num conjunto de gestos simbólicos, expressar a necessidade de fortalecer um clima de confiança na capacidade de realização do povo português.

Não me esqueço, nunca me esquecerei, dos problemas que afectam Portugal. Dedico-lhes, naturalmente, a maior atenção.

Mas entendo dever contribuir para criar um clima de confiança no País, lutando contra conformismos deterministas e derrotismos injustificados. O País não se encontra num impasse.

Quis homenagear o 25 de Abril através de um conjunto de visitas onde fiz jus à capacidade de dedicação e de realização dos Portugueses, à capacidade para ultrapassar obstáculos e para atingir níveis de realização e de exigência.

O 25 de Abril representou o restaurar da esperança e da confiança na capacidades dos Portugueses, sem as tutelas autoritárias que substituíam a escolha livre e democrática pelo ditame de um poder ilegítimo.

Creio que a melhor forma de dar confiança aos Portugueses que neste momento possam passar por um período difícil é dar-lhes, simbolicamente, um sinal de que é possível acreditar na capacidade para ultrapassar os problemas e os constrangimentos.

Portugal é hoje um país moderno. Deve reforçar a sua identidade baseada no reconhecimento de um desígnio que oriente o nosso futuro.

Eu tenho confiança no futuro de Portugal.

Viva Portugal.