Sessão de Abertura das Jornadas de Direito Constitucional

Faculdade de Direito de Lisboa
18 de Abril de 1996


Há no tema que é objecto das Jornadas Constitucionais e nas circunstâncias do momento em que se realizam, razões suficientemente importantes para justificar que estas breves palavras vão para além do regozijo natural de quem vê neste tipo de iniciativas muito da razão de ser da própria instituição universitária.
De facto, a estabilidade constitucional que experimentamos e a normalidade com que a sociedade portuguesa assume e integra as vicissitudes próprias da vivência de uma cidadania plena num quadro de liberdade, mesmo no que se refere a fenómenos outrora tão contundentes ou sensíveis como os da alternância política, tendem a deixar quase no esquecimento ou a não relevar devidamente aquilo que, sendo natural, não deve ser, por isso, menos assinalável, ou seja, o facto de uma Constituição democrática acabar de cumprir vinte anos.

E basta apelar à história do nosso constitucionalismo e à memória da instabilidade política, mas também constitucional, que percorre os nossos séculos xix e xx — exceptuando o período do nosso século, durante a ditadura, em que a continuidade constitucional foi lamentavelmente construída sobre o sacrifício dos princípios basilares do Estado de Direito —, para verificarmos quão significativa é a efeméride que constitui o feliz pretexto da realização destas jornadas.

E esta nota de estabilidade, que começa a ser uma marca da Constituição de 1976, é tanto mais de realçar quanto ela — tal como a quase totalidade das nossas Constituições — nasceu de e num processo de ruptura política.

Mas, e ao contrário das anteriores Constituições com idêntica origem, ela soube e pôde construir, da diversidade dos contributos que a fizeram nascer, a unidade de um projecto normativo coerente, de virtualidades conformadoras do processo de transformação e desenvolvimento que atravessou a sociedade portuguesa nos últimos vinte anos.

Simultaneamente, aquela diversidade conferiu-lhe a vocação de abertura que, apesar dos receios manifestados na altura da sua aprovação, lhe tem permitido, através, não apenas das diferentes revisões entretanto verificadas, mas também de uma interpretação e aplicação criadoras, constituir a fonte renovada da legitimidade do regime saído do 25 de Abril.

Ao longo deste período, as significativas alterações que entretanto se produziram no seu texto permitiram, sucessivamente: pôr termo ao período de transição inicial, adaptando, consequentemente, a específica organização de poderes e enquadramento ideológico que o caracterizavam; reorientar o sentido da organização económica e acompanhar o processo de integração europeia; aperfeiçoar e reforçar continuamente os mecanismos de racionalização e controlo do poder político e as garantias e direitos fundamentais dos cidadãos.

Apesar disso, podemos dizer que é ainda a mesma a Constituição que aqui nos propomos celebrar e discutir.

E é a mesma porque permanecem os elementos e a natureza do tipo de Estado de Direito, democrático e social, cujo primado se inscrevia já expressamente no Preâmbulo da versão originária da Constituição de 1976; porque é o mesmo o regime político democrático, bem como o sistema de governo e a estrutura da separação e interdependência dos poderes tão judiciosamente equilibrados pela Assembleia Constituinte; porque é a mesma a forma de Estado unitário, mas também descentralizado, regionalizado e participado, que o poder constituinte originário idealizou; porque são essencialmente as mesmas essas estruturas tão decisivas da democracia dos nossos dias como são o sistema eleitoral ou a configuração particular do pluralismo político e sistema de partidos cuja institucionalização a Constituição fixou ou favoreceu; porque permanece inalterada a intenção última de assentar a República Portuguesa na dignidade da pessoa humana e na garantia e promoção efectiva dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Mas, sobretudo, podemos dizer que a Constituição actual é a Constituição de 1976 porque permanece inalterável o consenso em torno da natureza representativa do nosso regime democrático.

A democracia plebiscitária foi explicitamente recusada pelos constituintes de 76 que quiseram fazer da natureza representativa do sistema político um factor de estabilidade e um princípio essencial, ontem como hoje, à consolidação do sistema partidário português.

Creio convictamente que a democracia representativa é um importante factor de estabilidade política. E de entre as reformas que posso conceber necessárias para aumentar a proximidade entre o cidadão e o sistema político não incluo nunca a transformação do nosso regime numa democracia plebiscitária.

A Constituição da República Portuguesa consagra aliás, desde 1989, o instituto do referendo. Fê-lo em termos cautelosos, procurando um equilíbrio dentro do sistema democrático, configurando-o como instrumento de democracia directa, e mantendo-o numa posição secundária face ao princípio da democracia representativa.

Mas o sentido de identidade e permanência da Constituição de 76 não tem sido desenvolvido, nem deve afirmar-se, a custas da rigidez, da cristalização ou da imutabilidade das soluções constitucionais.

A realização destas Jornadas comemorativas dos vinte anos da Constituição ocorre, curiosamente, no preciso momento em que foi aberto um novo processo de revisão constitucional.

É sabido que esta é uma das áreas em que a Constituição é mais ciosa da atribuição da exclusividade da iniciativa e da competência definitiva de aprovação aos deputados e à Assembleia da República.

Assim, a reserva e a contenção normalmente exigíveis ao Presidente da República são aqui ainda mais sensíveis.

Permita-se-me, no entanto, formular os votos que penso serem os de cada um de nós e de todos os portugueses. Que a revisão em curso contribua, tal como as anteriores, para uma renovação temporal e circunstancialmente adequada do conteúdo da Constituição, num processo de desenvolvimento constitucional sem rupturas nem afrontamentos desnecessários.

A abertura de um processo de revisão constitucional não é feita por imposição de um calendário, mas porque a sociedade e o sistema político evoluem.

O aperfeiçoamento do normativo constitucional, para o adaptar a novas realidades e exigências das sociedades contemporâneas torna-se assim uma exigência a que os partidos devem dar resposta procurando um compromisso que garanta uma maioria de revisão.

Por isso, é importante ter presente que há na sociedade portuguesa uma legítima e fundada esperança que a abertura do processo de revisão constitucional desemboque na evolução e aperfeiçoamento do sistema político. E que a procura dos consensos necessários corresponda a esse propósito e que ele não seja afectado pela natural conflitualidade do dia a dia do relacionamento interpartidário.

A abertura do processo de revisão constitucional correspondeu à vontade política dos partidos em querer aperfeiçoar o regime. Creio que os Portugueses assim o compreenderam e desejam, naturalmente, que essa oportunidade não seja desperdiçada: que se conclua a revisão agora iniciada dando consagração constitucional a reformas há muito em debate na sociedade portuguesa.

De resto, a sensibilidade e a procura do consenso que têm presidido às anteriores revisões permitem-nos esperar que, sem perda do seu carácter normativo, a Constituição de 1976 se possa continuar a afirmar e desenvolver como Constituição aberta ao aperfeiçoamento, à mudança e à adaptação permanente às novas realidades.

Não há hoje, ao contrário do que ocorreu nos primeiros tempos da nossa democracia, uma questão constitucional.

Os programas políticos e as reformas prometidas pelas maiorias parlamentares ou as forças políticas que sustentam os governos têm sido e podem continuar a ser realizadas sempre que, para tal, haja a necessária determinação e vontade política, não podendo imputar-se à Constituição ou ao sistema de poderes por ela instituído a causa de qualquer bloqueio insuperável. E essa deve ser uma razão acrescida para fundar legítimas expectativas nos trabalhos de revisão agora iniciados.

No essencial, a Constituição portuguesa tem sido, e é hoje, verdadeira Constituição normativa, fonte de legitimação, limite e parâmetro de actuação dos titulares do poder político, mas também, e sobretudo, garantia a que acedem e recorrem crescentemente os cidadãos na prossecução dos seus interesses e na defesa dos seus direitos fundamentais.

Nessa perspectiva, também o poder judicial tem sabido retirar da Constituição os padrões de valoração e a medida de um adequado controlo judicial relativamente aos eventuais, mas inevitáveis, abusos que podem ocorrer, mesmo em Estado de Direito.

Porém, permanece sempre em aberto uma significativa margem de aperfeiçoamento, correcção ou adaptação, não apenas das soluções constitucionais substantivas, como dos próprios mecanismos do controlo jurisdicional ou das possibilidades de acesso dos cidadãos ao Direito.

Temas tão actuais quanto os da abertura do sistema político a uma maior participação da sociedade civil, de uma maior ligação entre eleitores e eleitos, da racionalização do funcionamento da Administração e da organização administrativa, ou da protecção dos direitos do cidadão nos quadros do instituto da fiscalização da constitucionalidade, reclamam uma consideração ou reavaliação responsável, ponderada, mas não menos corajosa e aberta.

No âmbito específico da sua natureza académica e científica, as Jornadas Constitucionais que aqui se abrem podem, de algum modo, contribuir para fazer o balanço do que foi entretanto realizado, confirmar, esclarecer ou questionar o que é tido por adquirido, mas, principalmente, iluminar e abrir o caminho a novas perspectivas.