Abertura do Seminário Nacional sobre Avaliação Global do Ensino Superior
Promovido pelo Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior
(CNAVES)

Centro Cultural de Belém, Lisboa
11 de Abril de 2000



Minhas Senhoras e Meus Senhores,


Nas últimas semanas, tenho tido a possibilidade de conhecer melhor o ensino superior e os seus problemas. Nas palavras de alunos e professores, senti uma grande preocupação com o futuro dos nossos Institutos e Universidades. Parece haver a consciência nítida de que não são pequenas as transformações que se impõem.

Não podemos adiar por mais tempo a entrada do Ensino Superior no século XXI. O que está em causa é muito mais do que a viabilidade das instituições. O que está verdadeiramente em causa é a posição de Portugal na nova sociedade do conhecimento e da informação. Percebemos, de repente, que o futuro não se compadece com decisões avulsas nem com qualquer desregulação de políticas públicas.

Quero começar esta intervenção enunciando duas condições que me parecem essenciais para a modernização do ensino superior.


A primeira é a organização de uma rede coerente e diversificada de instituições. Já demos conta de que o que se passa hoje em dia não é aceitável. Os cursos e as escolas, os pólos e as extensões foram-se desenvolvendo, frequentemente ao sabor de interesses locais, económicos ou corporativos, de forma pouco cuidadosa e sem o devido planeamento. Não creio que o problema se resolva andando para trás, procurando, a posteriori, reconstruir uma qualquer racionalidade. Bem pelo contrário. Temos de considerar a capacidade instalada no público e no privado, no politécnico e no universitário e definir processos de ordenamento da rede do ensino superior, aproveitando ao máximo os recursos humanos e materiais existentes. Em vez de erguermos barreiras, tantas vezes artificiais, entre os diversos subsistemas, julgo que deveríamos caminhar no sentido da sua integração e articulação, visando uma efectiva cooperação interinstitucional. Se houver um clima de confiança, poderemos assegurar, simultaneamente, a diversidade e a coerência de uma rede nacional de instituições politécnicas e universitárias.

A segunda condição é uma maior abertura ao exterior. É preciso criar um ambiente propício à modernização das Escolas, à mobilidade de estudantes e professores e à internacionalização do ensino superior português. O conceito de autonomia universitária parece hoje, ao mesmo tempo, excessivo e insuficiente. Excessivo, na medida em que reforça os poderes internos e as lógicas de funcionamento de uma instituição que raramente foi capaz de se auto-reformar. Insuficiente, porque não permite às Escolas definirem as suas formas próprias de governo e de gestão. Por isso, do mesmo modo que critico a proliferação de cursos e especializações, defendo a consolidação de Escolas com diferentes projectos científicos e pedagógicos, de Escolas que se afirmem pela sua identidade própria. É nesta diferença que reside o sentido de uma autonomia que tem como corolário indispensável a responsabilidade.

Promover a educação e a formação é o esforço mais nobre que podemos realizar. O nosso mal não é termos licenciados a mais, como tantas vezes se ouve dizer. O nosso mal é justamente o contrário: é o défice de qualificações da população, sobretudo da população adulta, e a incapacidade que temos revelado para o resolver. Eu desejo que cada português vá o mais longe possível nos seus estudos, realizando-se plenamente como ser humano e como profissional.
Proponho-me partilhar convosco algumas ideias sobre o ensino superior, colocando-as à distância de uma geração. O que serão as nossas Escolas daqui a 25 ou 30 anos? Não gostaria que nos deixássemos arrastar por respostas pontuais e avulsas às solicitações de um presente tão incerto. Só seremos capazes de enfrentar devidamente os tempos actuais, de mudanças rápidas e imprevisíveis, se sustentarmos num património comum de cultura e de valores o esforço de pensar o futuro. Eis o que me leva a organizar esta intervenção em torno das duas missões do ensino superior ou da Universidade (termos aqui usados indistintamente, sem excluir nenhum dos sub-sistemas). São essas missões históricas as seguintes: formar pessoas e produzir conhecimento.


Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A formação das pessoas é hoje e será no futuro a missão fundamental do ensino superior. Mas nem as pessoas serão as mesmas, nem a formação terá o mesmo significado. Actualmente, cerca de 1/3 dos alunos tem mais de 25 anos e esta tendência será cada vez mais forte. Actualmente, o ensino nas grandes Universidades mundiais já tem como suporte principal os sistemas de comunicação interactiva e este processo está ainda no início.

Unicamente a partir destes dois elementos, é fácil imaginar um conjunto de mudanças na formação universitária e prever (sem grande margem de erro) que as instituições que não souberem adaptar-se terão poucas probabilidades de sobrevivência. Permitam-me que identifique, rapidamente, três destas mudanças.

Primeira: As escolas do ensino superior tendem a ser frequentadas por públicos muito diversos, com um leque alargado de interesses e objectivos: jovens em formação inicial, graduada e pós-graduada; profissionais em formação contínua; adultos em busca de uma actualização de conhecimentos ou de uma valorização pessoal. Por isso, a formação universitária terá de ser flexível, integrando momentos de trabalho e de estudo, frequência de cursos e disciplinas em mais do que uma instituição, processos de reconhecimento de aprendizagens informais. Ora, é fácil constatar que as instituições não estão ainda preparadas para lidar com estas realidades, que exigem alterações muito profundas nos modos de recrutamento, de apoio social e de orientação dos alunos.

A segunda mudança decorre da necessidade de colocar os estudantes (os diversos tipos de estudantes) no centro do trabalho universitário. É a compreensão do modo como estudam e como aprendem (e já não estudam nem aprendem como há dez anos atrás!) que nos permitirá imaginar outros modelos de formação. Dentro em pouco, a maioria dos jovens frequentará o ensino superior, sendo necessário encontrar respostas ajustadas para as suas diferentes necessidades, sob pena deste processo de abertura defraudar as expectativas dos grupos sociais mais carenciados e provocar novas formas de exclusão. Para além da insuficiente preparação pedagógica de muitos docentes (aliás, frequentemente referida pelos estudantes nas avaliações já realizadas), é evidente que as elevadas taxas de insucesso escolar se justificam, em boa parte, pelo desfasamento entre a procura estudantil e uma oferta institucional muitas vezes rígida e desajustada.

A terceira mudança tem em atenção a volatilidade do conhecimento e a sua difusão transnacional, o que torna inevitável a existência de estruturas e de programas flexíveis, que facilitem processos de mobilidade dos estudantes e de diferenciação dos percursos escolares. As instituições que não conseguirem promover estas dinâmicas irão desaparecendo a pouco e pouco. Alguém acredita que o ensino sebenteiro pode concorrer com as lições de Oxford ou de Harvard disponibilizadas via Internet? O recurso sistemático às novas tecnologias de informação e comunicação transformará, radicalmente, o ensino superior, desde a orgânica dos cursos às estratégias de transmissão e aquisição do conhecimento, passando pelo quotidiano dos professores e pela própria configuração física das instalações e dos edifícios.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,


A missão de formar pessoas, em particular no contexto que acabei de mencionar, é indissociável da missão de produzir conhecimento, de produzir ciência e cultura. Mas também aqui é ilusório pensar que basta melhorar os modelos do passado, introduzindo ligeiras adaptações. São de maior vulto as mudanças que se exigem, por três razões principais.

Em primeiro lugar, porque o ensino superior está a perder, rapidamente, o controlo da produção e difusão do conhecimento. Torna-se, por isso, urgente consolidar comunidades académicas fortes, com práticas sistemáticas e continuadas de investigação científica. Abertas ao exterior, em particular à indústria e à cultura, estas comunidades devem investir no sentido de uma efectiva internacionalização. Países como Portugal correm o risco de se transformarem em meros consumidores, acentuando a sua situação periférica na nova sociedade do conhecimento. Por isso, é importante prosseguir uma política de investimento na formação avançada e na qualificação dos investigadores portugueses, promovendo os grupos e os centros de maior qualidade científica. Mas é evidente que este desiderato é impossível de atingir em pequenas instituições, pulverizadas pelo país, sem equipas e sem infraestruturas sólidas de investigação.


Em segundo lugar, é útil chamar a atenção para dois aspectos que não podem ser realizados por nenhum outro meio: a formação científica e a vida académica e cultural dos estudantes. Na Internet circula informação, mas só nas universidades é possível produzir saber em articulação com um ensino experimental (laboratorial), com a aquisição de uma cultura científica e tecnológica, com a integração em grupos de pesquisa. Por outro lado, todos sabem que sou muito sensível à necessidade de revitalizar a vida académica, nas suas dimensões culturais, desportivas e sociais. Ser estudante é viver um tempo que vai muito para além do espaço das aulas e dos estudos, um tempo que marca a nossa identidade pessoal. Num e noutro caso, a experiência do ensino superior. Mas ela só adquire todo o seu significado em comunidades abertas à ciência e à cultura, à convivialidade e ao associativismo, em campus com uma autêntica vocação universitária.


Em terceiro lugar, quero dizer-vos que uma dinâmica nova, mais exigente do ponto de vista científico, não poderá ter lugar em instituições velhas, rígidas, paralisadas por inércias e resistências. Não terá lugar, também, sem professores e investigadores motivados e altamente qualificados. A expansão dos mestrados e dos doutoramentos tem possibilitado a emergência de uma geração de jovens cientistas, cujo futuro depende, em grande parte, de um Estatuto menos rígido, que permita uma concepção inovadora da carreira docente e de investigação. É urgente promover a internacionalização da nossa comunidade académica e encontrar formas adequadas de recompensar a dedicação e o mérito.


Minhas Senhoras e Meus Senhores,


Não quero terminar sem uma referência a dois objectivos que, nos dias de hoje, não podem ser ignorados pelo ensino superior:

– por um lado, a preparação para a vida profissional, para a inserção no mercado de trabalho, através de uma oferta diversificada de formações, ajudando a ultrapassar a própria debilidade da estrutura do emprego em Portugal;

– por outro lado, a participação nos processos de desenvolvimento local e regional, através de ligações fortes aos movimentos sociais, económicos e culturais.

A experiência recente dos Institutos Superiores Politécnicos e de muitas Universidades revela bem a pertinência destes objectivos e a necessidade de os aprofundar. Mas devemos compreender que o sentido último do ensino superior vai muito para além das lógicas do trabalho e do desenvolvimento, da resposta às necessidades locais e económicas.

A mudança define-se, em grande parte, de fora para dentro do espaço universitário. Mas as instituições não se podem deixar arrastar por soluções avulsas e pontuais. Eis o que me leva a apelar, uma vez mais, à participação de todos na definição de linhas de consenso que permitam a reforma do ensino superior público e privado, politécnico e universitário. Este apelo não diminui as responsabilidades do Estado. O que está em jogo é tão importante para o futuro do país que não podemos correr o risco de uma menor presença dos poderes públicos ou de quaisquer tendências de subfinanciamento deste sector.

Mas também deve ser afirmado que a rigidez na origem dos recursos não resolverá o que pode ser solucionado. Acredito que se podem obter fundos suplementares, por diversas formas, que poderão constituir mais-valias para fomentar programas de qualidade de ensino e de investigação.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,


As minhas palavras finais dirigem-se às questões da avaliação, tema deste Seminário. A avaliação é vista, por vezes, como uma panaceia que resolveria, milagrosamente, todos os problemas do ensino superior. Os participantes neste Seminário sabem que não é assim. Mas sabem também que ela pode ser um meio essencial para promover uma cultura de exigência e de qualidade, de rigor e de responsabilidade.

É importante que a avaliação seja conduzida num clima de confiança e que tenha consequências, sob pena de arrastar o seu próprio descrédito.

O clima de confiança estabelece-se através de regras que garantam a independência face à administração e às instituições, a isenção e a transparência dos procedimentos e a divulgação pública dos resultados. Num país pequeno, e sem tradições fortes neste domínio, o pior que poderia acontecer seria a burocratização ou a corporativização dos processos de avaliação.

É preciso cuidado para não cair na tentação de multiplicar instâncias e órgãos que, muitas vezes, se anulam uns aos outros. Neste sentido, é importante separar as dinâmicas de avaliação do que deve ser o funcionamento normal do Estado e da sociedade civil, a quem compete fazer cumprir os requisitos legais, fixar as normas de acreditação dos cursos, controlar as qualificações profissionais e os processos de entrada nas profissões ou atestar a pertinência das formações do ponto de vista da empregabilidade.

Diferentes são os objectivos da avaliação, da qual se esperam resultados úteis para a administração, para as instituições e para os estudantes:

– Para a administração, avançando elementos que ajudem à definição de políticas diferenciadas de financiamento e de desenvolvimento da rede do ensino superior;

– Para as instituições, disponibilizando instrumentos essenciais para a sua própria regulação e inovação;

– Para os estudantes, fornecendo dados que lhes permitam escolhas mais seguras e informadas.

Considero muito importante que o sistema de avaliação do ensino superior abarque de forma coordenada o ensino público, privado, concordatário e militar.


A avaliação faz-se com vistas largas, não se deixando encerrar no que já existe, antes imaginando o que pode vir a ser. Os seus termos de referência devem situar-se nesta ideia de futuro do ensino superior. Por isso, organizei a minha intervenção a partir das mudanças que se anunciam. Eu sei que muitas já estão em curso e já fazem parte do dia-a-dia das instituições do ensino superior. É esta constatação que reforça a minha esperança e a minha confiança como Presidente da República.

O futuro que me interessa não se situa num tempo distante. O futuro que me interessa é hoje, começa na acção de todos e de cada um de nós em prol de um ensino superior de qualidade, capaz de responder aos anseios de jovens e adultos, colocando Portugal no centro da sociedade do conhecimento.