Sessão de Encerramento da Manifesta 96 — II Assembleia e Feira do Desenvolvimento Local «Os Caminhos do Desenvolvimento Local»

Tondela
17 de Novembro de 1996


A atenção e o interesse com que acompanho tanto as iniciativas de desenvolvimento local, como a reflexão que lhes anda associada, obtêm neste forum plena compensação, como resulta das intervenções e dos documentos apresentados.
Desejo por isso cumprimentar os organizadores e participantes na Manifesta 96, pela oportunidade da organização, pela exemplaridade das actividades mostradas, pela pertinência dos temas trazidos a debate e pela projecção nacional que conferiram à realização. Neste sentido, cumpre referir que o documento que acaba de ser lido como «Declaração de Tondela» constitui uma plataforma multissectorial que deverá suscitar novas e mais esclarecidas intervenções no domínio do desenvolvimento local.

Adequadamente, a dimensão local materializou-se através do envolvimento de instituições de Tondela na organização do evento. Associo-me ao reconhecimento que tem sido dirigido à Associação de Cultura e Recreio de Tondela e à Câmara Municipal. De forma especial, quero felicitar a Câmara de Tondela pela disponibilidade em acolher e apoiar este tipo de projectos (e sei que este não é o único tipo de encontros com especialistas que promove).

Senhoras e Senhores Participantes,

O conceito de desenvolvimento tem sido objecto, nas últimas décadas, de profunda reformulação.

Em largos sectores da produção científica e da opinião pública mais informada, e até mesmo em diversas instâncias da decisãopolítica, o desenvolvimento é hoje entendido como fenómeno eminentemente pluridimensional. Recusa-se assim uma visão dos problemas limitada à componente do crescimento económico.

Pouco a pouco, foi-se impondo a ideia de que discutir níveis e processos de desenvolvimento obriga a ponderar outros factores, factores tão diversos como: o acesso das populações aos cuidados de saúde, à informação e à instrução, a quantidade e qualidade do emprego disponível, os modos de utilização dos recursos naturais e protecção ambiental, ou as próprias orientações dominantes em matéria de política social. E até os laços de dependência política à escala internacional, que tão decisivamente marcam as regras de efectiva partilha do mercado mundial, foram chamados a primeiro plano nos diagnósticos do «desenvolvimento do subdesenvolvimento».

Bastará consultar os Relatórios actualmente publicados no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — sintomaticamente intitulados, aliás, «Relatórios do Desenvolvimento Humano» — para se obter uma imagem expressiva dos resultados a que chegou a renovação do pensamento nesta matéria.

Renovação porém insuficiente, uma vez que se não traduziu em fórmulas eficazes de combate às desigualdades mais gritantes entre os povos do mundo. Renovação insuficiente, além disso, pela dificuldade manifestada pelas teorias e políticas económicas do desenvolvimento em lidarem com as próprias assimetrias regionais existentes no interior de um mesmo espaço nacional.

O insucesso de muitas das fórmulas adaptadas resultou, neste último caso, de se ter partido do pressuposto de que a correcção das desigualdades regionais e dos círculos viciosos do não-desenvolvimento podia ser concretizada através da imposição, pelos órgãos da Administração Central, de planos e investimentos sem qualquer participação, a não ser decorativa, das populações interes-
sadas.

Sabem bem os membros desta assembleia que, em reacção a tal modelo, foi emergindo um quadro de pensamento e acção alternativo.

Nessa outra perspectiva, acredita-se que a satisfação das necessidades e aspirações dos cidadãos, especialmente nas regiões periféricas mais deprimidas, exige a mobilização e utilização integrada de todas as suas capacidades, energias e recursos — tanto naturais, como económicas, organizacionais, político-institucionais e culturais, e mesmo aqueles que, por força de défices de participação acumulados, permanecem encobertos ou deixaram virtualmente de existir

Senhoras e Senhores Participantes,

Tenho tido o privilégio de contactar de perto, em todo o País, com experiências de desenvolvimento local inspiradas nesta filosofia de intervenção.

Sei quantas energias nelas se despendem; conheço as dificuldades, incompreensões e custos pessoais que os seus protagonistas mais dedicados têm de enfrentar. Não ignoro as desilusões que têm de suportar, por força da insensibilidade de alguns poderes instalados e da inaceitável lentidão de burocracias paradas no tempo.

Mas tenho também plena consciência da importância dos resultados a que as iniciativas de desenvolvimento local têm conduzido.

Muitos foram os cidadãos que, através delas, despertaram para as vantagens da alfabetização e da formação profissional. Foi por seu intermédio que populações inteiras redescobriram a históriada sua terra, metendo ombros à recuperação do património arquitectónico herdado ou de certas formas de produção artesanal economicamente viável.

Graças às dinâmicas desencadeadas por tais iniciativas, assistiu-
-se, por outro lado, a mudanças inovadoras na acção das autarquias, com benefícios óbvios em termos de bem-estar dos cidadãos. Para não falar ainda da inestimável mais-valia cívica que resulta, nestas formas de combate pelo desenvolvimento, da participação directa das situações na identificação e resolução dos seus problemas colectivos.

Creio não me enganar se disser que, a par do entusiasmo com a obra realizada (bem patente neste Manifesta 96), se pressentem, em muitos dos agentes heróis do desenvolvimento local, as marcas de algum desencanto e a expressão de sinceras dúvidas sobre a real eficácia do trabalho desenvolvido.

As interrogações partem em vários sentidos e não devo omitir o eco que delas me chega.

Não estarão as experiências de desenvolvimento centradas no local condenadas a morrer, por falta de articulação entre si e com políticas de âmbito nacional? Será possível sustentar dinâmicas de desenvolvimento de base local, fora de uma matriz integradora de nível regional? E quanto às iniciativas que dependem, no essencial, do acesso a fundos comunitários, conseguirão elas subsistir quando cessarem os financiamentos? Será legítimo continuar a mobilizar os cidadãos para objectivos de desenvolvimento social integrado, quando não estão garantidas as condições da sua sustentabilidade no plano económico-financeiro e, mais propriamente, no da criação de postos de trabalho com alguma consistência? Será viável, ou mesmo oportuno, apostar na revitalização das identidades locais, numa época de imposição massiva de estereótipos culturais, em clara dessintonia com as âncoras e laços de pertença? Não serão as urgências do combate à pobreza e exclusão social incompatíveis, em certos casos, com a preservação de todos os equilíbrios reclamados pelos defensores dos modelos de desenvolvimento endógeno e integrado?

Estou certo de que a este forum terão chegado muitas das interrogações que acabo de enunciar. E não duvido de que, no
decurso das vossas discussões tenham sido formuladas respostas certeiras e reivindicações oportunas.

Não me coíbo, mesmo assim, de entrar no debate, enunciando muito brevemente algumas das minhas próprias preocupações nesta matéria.

A primeira prende-se com a verificação de que, em extensas parcelas do território nacional, os equilíbrios demográficos, económicos e sociais das colectividades locais foram de tal forma lesados que dificilmente se vislumbram já possibilidades de dinamização autónoma dos seus recursos e capacidades. A dependência relativamente à ajuda externa de emergência parece, nesses casos, uma inevitabilidade. Resta saber a que escala e por que meios deve ser concretizada.

Outra preocupação, que retiro da minha qualidade de observador de outros projectos de desenvolvimento local, tem que ver com o risco de a crítica inteiramente justa — às visões economicistas do desenvolvimento — se transformar, em tais acções, numa espécie de excesso culturista. Creio não me enganar se disser que, não sendo condição suficiente de desenvolvimento, o crescimento é uma condição necessária.

Terceira e última preocupação. Nem sempre a revitalização das identidades locais actua como efectivo impulso para o desenvolvimento, desde logo porque, remetida a fronteiras demasiado estreitas, não consegue forjar uma capacidade de representação colectiva, isto é, uma voz e um poder de negociação autónomos. Mais uma vez, a escala a que se desenrolam as acções de desenvolvimento parece ser uma questão a ponderar.

Senhoras e Senhores Participantes

Não deve este breve enunciado de preocupações ser entendido como uma série de reticências relativamente às virtualidades do tipo de experiências de desenvolvimento que nos últimos dias vieram manifestar-se em Tondela.

Terei já dito o suficiente para vos garantir que, quanto a mim, elas constituem um exemplo particularmente significativo do que são as possibilidades do exercício democrático e participado do poder, tantas vezes insuspeitadas, que todos os cidadãos, as suas organizações e as colectividades locais a que pertencem, efectivamente têm ao seu alcance.

O Presidente da República não se conforma com os dualismos instalados na sociedade portuguesa. Sabe que há «interiores» no litoral e que há «litorais» no interior. Entende que a unidade nacional exige coesão social, respeito pela diferença e uma lógica de percepção dos problemas que se deixe nortear pela proximidade das populações. Acredita que, como afirmou anteriormente um dos membros da Mesa, há que ver em cada novo problema uma oportunidade, e acredita também que cada oportunidade aceite é um exercício de cidadania.

O Presidente da República recusa-se a assistir passivamente ao silenciamento de centenas de colectividades locais do espaço rural português.

Por isso está e estará com todos os que, lutando generosamente e inteligentemente no terreno, dizem não às desigualdades regionais mais gritantes e injustas, dizem não à desertificação interior, dizem não à «folclorização» do mundo rural, e dizem sim ao desenvolvimento integrado e solidário do espaço nacional.