Sessão Comemorativa do Elogio de Benjamin Franklinda Autoria do Abade José Correia da Serra

Academia das Ciências de Lisboa
03 de Julho de 1996


E´ com muita honra e grande interesse que participo, na Academia das Ciências de Lisboa, nesta sessão de tão grande significado, em boa hora organizada em colaboração com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
Ao felicitar as duas instituições por esta iniciativa, quero saudar calorosamente o presidente desta casa e os seus ilustres membros, pois esta é, desde que tomei posse do cargo de Presidente da República, que é, por inerência, o Presidente de Honra da Academia, a primeira vez que aqui venho.

O acto que nos reúne tem, hoje, um particular sentido: lembra figuras que, no seu tempo, estiveram na vanguarda do progresso científico, mas que não se alhearam nunca dos destinos do mundo. Encararam sempre as conquistas da ciência com uma ousada visão humanista.

Esta é também uma ocasião para reafirmarmos a amizade entre os EUA e Portugal, de que o abade Correia da Serra é um símbolo, tendo sabido interpretar os generosos ideais que estiveram na origem do movimento de independência americana e que tão fundas repercussões tiveram,

O texto sobre o grande Benjamin Franklin, que ouvimos muito bem lido pelo actor Diogo Dória, e que foi agora, passados 205 anos, felizmente recuperado, evidencia esse espírito e dá sinais da energia que levou os homens a avançarem no conhecimento da natureza e a afirmarem a fundamental dignidade de todos os povos e de todos os seres humanos.

Benjamin Franklin foi sócio correspondente desta academia, de que o abade Correia da Serra tinha sido um dos principais fundadores e de que foi o primeiro vice-secretário, é bom, por isso mesmo, que hoje neste lugar os juntemos pela nossa evocação, pois comungaram dos mesmos ideais, expressos por Franklin na famosa carta ao descobridor do oxigénio, Joseph Priestley: «O rápido progresso alcançado pela ciência verdadeira causa-me por vezes mágoa pelo facto de ter nascido tão cedo, é impossível imaginar as alturas a que o poder do homem sobre a Natureza será levado dentro de mil anos. Aprenderemos talvez a retirar a gravidade às grandes massas a fim de as transportar com facilidade», e depois de elaborar criativa prospectiva sobre diversas áreas de actividade humana dizia: «possa para isso a ciência moral melhorar de igual modo, possam os homens deixar de se comportar como lobos uns em relação aos outros, e consigam os seres humanos aprender o que significa no fundo aquilo a que agora se chama impropriamente de humanidade!»

Muitos e espantosos progressos técnicos e científicos entretanto se verificaram e mudaram de forma prodigiosa a nossa vida — mas as desilusões da história, a consciência da complexidade do mundo, as incertezas do futuro, as perplexidades do próprio pensamento face à realidade, não nos permitem hoje uma visão tão resolutamente optimista, confiante e afirmativa. Sabemos que há problemas insolúveis, tragédias que se não evitaram, ilusões que se perderam.

É bom, no entanto, nestes tempos em que assistimos ao ressurgir de formas novas e antigas de obscurantismo, que seja retido o essencial da mensagem de Franklin e de Correia da Serra: a curiosidade e o espírito crítico, a abertura ao novo, a tolerância pela divergência e pela diferença, a afirmação do livre arbítrio, a rejeição do pensamento único, a coragem de ajuizar e avaliar para lutar, defender, arriscar e agir de acordo com aquilo em que se acredita.

Esta é a grande herança que recebemos dos fundadores da ciência moderna e é graças a ela que a nossa civilização avançou e se aperfeiçoou. Os problemas têm de ser enfrentados com recurso à pesquisa, à reflexão, ao debate, ao confronto de ideias, ao aumento do conhecimento. A ciência moderna nasceu e afirmou--se. Tem vindo a desempenhar um papel de grande importância na evolução das sociedades ocidentais nos últimos 300 anos, a qual é relacionável com a criação de instituições científicas, nas quais se discutia, discordava, se recebiam e davam informações, se trocavam experiências.

As principais destas instituições foram, naturalmente, as academias de ciências. Instituídas como instrumentos do progresso científico, com base na utilidade e nas aplicações da ciência, as academias tiveram um lugar preponderante, pelo prestígio dos seus membros e da sua acção, no aconselhamento das autoridades, sobretudo no período inicial da Revolução Industrial.

As academias de ciências, como a de Lisboa, são depositárias de uma cultura de rigor científico, de tolerância, de compreensão e de generosidade. Receberam ainda uma tradição de independência face ao poder político e de isenção nos juízos, essas heranças devem ser preservadas e actualizadas.

Os tempos mudaram muito. O surgimento de muitos outros tipos de instituições científicas, a crescente monetarização da economia, as pressões tecnológicas do mundo contemporâneo obrigam a que as academias — e, neste caso, as suas classes de ciências — procurem novas formas de afirmação e intervenção, na fidelidade à pureza da sua mensagem fundadora: a utilidade da prática científica, o seu uso para o progresso humano e a defesados princípios da liberdade e do direito, a escolha apresenta-se clara: ou se aprofundam continuamente as bases científicas do conhecimento sobre a sociedade, sobre a natureza e sobre o próprio homem, promovendo o espírito crítico e participativo, ou iremos assistir à destruição lenta mas inexorável da ciência, dos saberes argumentativos, e, com eles, da legitimidade da própria ordem em que a nossa sociedade assenta. É esse o grande desafio da nossa época.

Como Presidente da República e Presidente de Honra da Academia, farei tudo o que estiver ao meu alcance para prestigiar esta tão nobre instituição, contribuindo para afirmar os grandes valores do espírito científico e da liberdade crítica sem a qual não há ciência, nem comunidade científica, nem progresso.

Agradeço o vosso convite e as palavras que me dirigiram. Felicito a Fundação Luso-Americana e o seu ilustre presidente por esta iniciativa e desejo que outras deste tipo se sigam.

A cooperação cultural, científica e artística entre os países é, no nosso mundo, um factor insubstituível de paz, de progresso e de democracia, ideais pelos quais lutaram as personalidades que aqui, hoje, lembramos e homenageamos.