Sessão de Abertura da Conferência do Semanário Económico

Lisboa
11 de Abril de 1996


Começo por cumprimentar os organizadores desta Conferência Anual pela qualidade que sempre conseguiram conferir--lhe e pela perseverança que esta nona edição representa.
Trata-se de uma boa oportunidade para estimular o estudo e o debate público sobre os problemas do País e essa é razão mais do que suficiente para justificar o interesse com que participo nesta sessão de abertura.

Verifico que, em nove edições da Conferência, esta é a primeira em que a agenda é sobretudo dirigida para a situação interna do País. Permitam-me que interprete esta opção como um sinal também de um novo ciclo.

Efectivamente depois de uma década marcada pelo início da aventura europeia e pelo impacto conjugado da internacionalização e da liberalização do sistema económico, em que tudo parecia ter apenas um lado positivo, é chegado o momento de olhar de novo para dentro, de avaliar o impacto das políticas e de fazer um balanço sobre o que mudou e o que falta mudar.

É, no fundo, de novo, chegado o momento de pensar estrategicamente o futuro.

Estamos num novo ciclo. Os próximos anos representam, para Portugal, uma conjuntura particularmente exigente.

Vale a pena apontar alguns dos factores que, de forma conjugada, condicionam o futuro próximo.

Sublinharia as limitações impostas por uma retoma económica que muitos consideram menos vigorosa do que seria desejável, o ajustamento aos critérios de convergência nominal, o previsível aumento da pressão concorrencial externa e a possível concretização de importantes reformas político-institucionais, entre as quais destacaria a descentralização administrativa e a revisão constitucional.

Sobre estes dois aspectos, aliás, permitam-me que, uma vez mais, afirme a minha posição. Essas reformas têm de ser encaradas como momentos de aperfeiçoamento do sistema político.

Desejavelmente os seus grandes objectivos devem contribuir para a melhoria das condições de desenvolvimento do País, para aproximar os cidadãos das instituições políticas e para reforçar as condições de estabilidade.

As grandes reformas da estrutura do Estado são momentos de desejável reforço do consenso constitutivo do sistema político português.

Entendo que a entrada numa nova fase do processo de descentralização, que deverá conduzir à criação de regiões administrativas no Continente, deve ser encarada com toda a naturalidade.

Mas tratando-se também de adoptar um novo modelo de gestão e de divisão territorial, que implica todos os portugueses, importa assegurar que ninguém se sinta excluído desse debate.

Numa matéria desta relevância, tenho defendido a vantagem de se tentar obter um consenso tão amplo quanto possível.

Noutro plano de preocupações, a União Europeia iniciou, com a abertura da Conferência intergovernamental, uma sequência de processos de negociação, que representam, em conjunto, uma possível refundação da União, envolvendo a Reforma Institucional e a Política Externa e de Segurança, o Alargamento, a terceira fase da União Económica e Monetária e a definição das Perspectivas Financeiras depois de 1999.

O desenvolvimento conjugado destes processos constitui, para Portugal, uma acrescida necessidade de identificação rigorosa das linhas de orientação estratégica que nos devem nortear e, ao mesmo tempo, uma necessidade imperiosa de concertação estratégica.

A conjugação de todos estes factores numa mesma conjuntura implica que os agentes políticos e todos os parceiros sociais aceitem as responsabilidades inerentes aos desafios e se disponham a encontrar o consenso necessário a um contrato para a mudança.

Se essas condições se garantirem os Portugueses terão encontrado o caminho certa para transformar os dados desta conjuntura num período de transformação e modernização do País sem desnecessárias tensões e clivagens sociais. Caso contrário os próximos anos poderão representar um concentração de riscos de consequências difíceis para o futuro de Portugal.

O presente exige opções claras e atempadas, um apurado sentido do interesse nacional, determinação na condução das políticas e pedagogia na explicação das suas consequências.

Portugal está a sair de um período de três décadas deprofundas e constantes transformações. A realidade social é instável e está em profunda transformação.

No passado recente, em apenas vinte anos o país passou do Corporativismo à estatização, da estatização à privatização, da Ditadura à Democracia, do Império Ultramarino à União Europeia, num processo que alterou radicalmente a estrutura da propriedade produtiva, as relações de produção, os direitos sociais, o quadro institucional da vida económica, o modelo de organização da sociedade política e o sistema de inserção internacional do País.

Ainda mal absorvidos os efeitos desta sucessão de choques contraditórios convivem já com os primeiros impactos do processo de globalização económica, ao qual passámos a estar directamente expostos a partir do início da década de 90, através da integral convertibilidade do escudo e da total liberdade de circulação de capitais e serviços financeiros. Por tudo isto, creio que os Portugueses necessitam de ver garantida uma concertação estratégica para o futuro de Portugal.

A globalização é uma forma nova, extrema, de integração económica, que fomenta uma progressiva uniformização internacional dos padrões de competitividade, nacionalidade, risco e de consumo.

É, por natureza, um processo descontínuo e desigual, que, na ausência de políticas de integração, acelera quase por inércia os fenómenos de dualização e exclusão, intervindo nas realidades nacionais como factor desagregador da coesão social.

Poucos países, à excepção das chamadas economias-continente, poderão pretender influenciar e muita menos determinar as suas linhas de força.

Portugal deve pois tomar a globalização como um pressuposto, não para suportar resignadamente as suas consequências, mas para antecipar e gerir, na verdadeira acepção da palavra, os seus efeitos.

A União Europeia é, no nosso caso, o enquadramento específico em que vamos viver e gerir este processo.

Como há dez anos, no momento da adesão, continua a constituir, apesar das novas circunstâncias, a opção mais favorável para orientar o movimento de internacionalização da economia e da sociedade portuguesas, em termos compatíveis com os seus interesses permanentes e as suas aspirações de desenvolvimento.

É verdade que, também aqui, Portugal não pode, por si só, determinar a evolução da União. Mas pode e deve influenciá-la.

Pode e deve definir a sua própria visão do processo de construção europeia, obviamente orientada pela natureza e especificidade dos seus problemas e interesses estratégicos.

Pode e deve constituir-se como um parceiro pleno, que aceita sem inibições os desafios mais complexos, como a União Económica e Monetária, mas que exige, em contrapartida, condições de ajustamento equilibradas e rejeita sacrifícios inúteis ou injustificados.

Portugal tem de preparar-se, no quadro europeu, para a gestão de situações de tensão e minoria, que representam o preço de uma atitude negocial firme eexigente, coerente com a identificação de interesses nacionais vitais.

Mas, uma vez mais, essa atitude não será consistente se não tiver correspondência na frente interna, porque o que está em causa exige a mobilização dos Portugueses e a sua capacidade de recusar apelos de resistência puramente emocionais.

O que implica atribuir à questão europeia um papel central na vida política do País, tornando-a objecto de uma permanente concertação de interesses, alimentando a circulação de informação e o debate regular das suas incidências em todas as instâncias de decisão.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Ninguém ignora, por certo, que não podemos esperar nos próximos anos qualquer atenuação da tendência de fundo que a globalização económica representa.

Pelo contrário: a pressão externa irá acentuar-se, a concorrência será mais intensa e alargada, aumentarão as tensões sobre o emprego e os sistemas de protecção social.

A resposta a estas dificuldades exige um lúcido equilíbrio entre a gestão dos problemas conjunturais e o desenvolvimento das soluções de futuro, evitando agravar desnecessariamente factores de conflitualidade que acabarão por constituir obstáculos adicionais à mudança.

Exige-se-nos uma atitude de ajustamento positivo, de combate, de confiança. A questão essencial não é defendermo-nos da concorrência, mas prepararmo-nos para ela. É inútil desenterrar o velho argumentário proteccionista. O nosso desafio não é sobreviver, mas construir uma economia moderna e internacionalmente competitiva no princípio do próximo século.

O nosso problema não é esconjurar a mudança e os impactos nela implícitos, mas pensar e administrar estrategicamente o seu conteúdo e as suas consequências.

Isto significa, na minha perspectiva, uma dupla atitude: preparar, por um lado, as condições para uma competição aberta, equilibrada e viável; e assegurar, em paralelo, o controlo social e político desse processo, rejeitando a passividade, o fatalismo e o conformismo perante a desintegração nacional provocado pelo desemprego, por um crescente dualismo e, sobretudo, pela exclusão.

Não acredito na possibilidade de alcançar uma economia moderna e competitiva na próxima década sem o desenvolvimento de políticas de solidariedade que lidem com as tensões sociais provocados pelo processo de modernização.

A exclusão social representa a negação da própria esperança e, como já tive a ocasião de o dizer, a aceitação da ideia, intolerável, de que alguns portugueses seriam dispensáveis.

Para isso, como bem propõe a agenda desta Conferência, é necessário voltarmo-nos para dentro, compreender que a modernização exige mais do que a adaptação normativa, a convergência nominal ou a melhoria das infra-estruturas, por muito importantes que sejam estes requisitos.

Precisamos de atribuir uma prioridade crescente aoschamados factores qualitativos da competitividade. A internacionalização, a abertura das fronteiras, são verdadeiramente incompatíveis com a manutenção de persistentes vulnerabilidades, que impedem a uniformização das condições de concorrência em prejuízo dos produtores nacionais.

Cito, como mera ilustração, dois exemplos que me parecem significativos e consensuais.

O primeiro refere-se ao nosso sistema jurídico-administrativo, globalmente considerado, que pouco mudou nas últimas décadas e representa hoje para a actividade económica um efectivo sobrecusto, desencorajando a iniciativa empresarial, distorcendo objectivamente as regras da livre concorrência e dificultando os impulsos inovadores originados na própria esfera estatal.

O segundo, diz respeito ao nível e ao conteúdo da qualificação do nosso mercado de trabalho, nos mais diversos graus profissionais, verdadeiramente insustentável nas novas condições de integração da economia portuguesa, que não poderá continuar a ser, pela força das coisas, uma economia de mão-de-obra barata.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Considerando as circunstâncias que nos envolvem e as condições de que partimos, creio que podemos eleger como pontos de referência, ao longo dos próximos anos, quatro grandes questões determinantes para o futuro de Portugal como país moderno, competitivo e socialmente equilibrado:

Em primeiro lugar, a definição de um justo equilíbrio entre a convergência nominal e a convergência real da economia portuguesa no âmbito da União Europeia.

O primeiro objectivo é importante, no plano interno, para a construção de um quadro macroeconómico estável e, no plano externo, para a defesa dos interesses fundamentais do País ao nível europeu; o segundo objectivo é indispensável para dar sentido ao projecto de integração económica e tornar possível um processo de modernização com estabilidade e crescimento, condições sem as quais será muito mais difícil gerir um período de transição complexo, com um elevado potencial de conflitualidade e com grandes exigências de inovação no que respeita às políticas sociais.

Em segundo lugar, a articulação entre as políticas de Emprego, Formação e Educação, que constituem um triângulo estratégico fundamental para melhorar as condições estruturais da competitividade económica e proteger as condições de controlo social da mudança.

O Emprego é, sem dúvida, um dos domínios mais atingidos pelas transformações económicas e sociais deste final de século e um dos sinais que conferem a esta crise um carácter civilizacional, no sentido em que constitui já a crise de um modo de viver e dos valores que lhe estão associados.

Os sistemas de organização e de divisão do trabalho estão a mudar rapidamente, o que implica uma valorização do princípio da mobilidade, da aprendizagem permanente, da polivalência e interdisciplinaridade dos «saberes» profissionais, da capacidade de adaptação à mudança e à incerteza.

Não é possível pensar no futuro sem aceitar que esta realidade requer pessoas com novos padrões de qualificação. E exige, por isso, uma reforma profunda não apenas no sistema de educação formal, mas no conceito e na mecânica dos sistemas de formação profissional, que tendem a ganhar um carácter permanente e passam a ser decisivos para a adaptação constante a um mercado de emprego seguramente mais volátil e instável.

Será talvez oportuno acrescentar que esta capacidade de adaptação não é apenas um problema dos trabalhadores; a formação de empresários individuais bem preparados pode constituir um importante estímulo ao auto-emprego e ao desenvolvimento de uma rede de pequenas e médias empresas competitivas, decisiva para a sustenção do emprego numa economia aberta e para o progressivo desenvolvimento de uma sociedade civil mais autónoma e menos tutelada.

O terceiro tema pode parecer, numa primeira leitura, menos óbvio: diz respeito à relação entre Ambiente, Ordenamento do Território e Políticas de Habitação.

É bem verdade que em qualquer destas áreas há problemas autónomos que não têm ligação directa às outras duas, mas neste momento o que pretendo evidenciar é o que entre elas existe de comum e a importância que em conjunto representam para uma regulação social equilibrada do processo de mudança.

As carências de habitação dos Portugueses constituem um desafio inadiável para quem tem a responsabilidade de decidir, pelo que significam como negação de um dos mais elementares direitos humanos. Mas são também — e esse é o aspecto que aqui gostaria de evidenciar — um gritante exemplo dos factores de rigidez incompatíveis com a mobilidade social que a flexibilidade da vida profissional e a volatilidade dos mercados passaram a exigir.

A questão da habitação está em Portugal — intimamente relacionada com as políticas de ordenamento do território e assume especial importância nesta fase mais crítica em que o primeiro impacto da concorrência externa, sem resposta imediata, contribui para a desindustrialização de algumas regiões e para a desertificação de outras.

As políticas do Ambiente têm, neste contexto específico, uma decisiva função integradora, para conter os efeitos do desenvolvimento desordenado a que assistimos em tantas regiões e evitar a destruição de recursos naturais escassos.

Esses recursos e o equilíbrio que pressupõem são hoje indispensáveis a um País que tem de construir factores de diferenciação positiva e que precisa, por isso, de melhorar dramaticamente esse bem essencial que é a qualidade de vida, tão deteriorada — neste caso para quase todos — por uma concentração urbana desordenada, desproporcionada e tendencialmente ingovernável.

É fundamental controlar esta tendência, nomeadamente através da criação de condições para o desenvolvimento do Interior do País, cujos níveis de riqueza estão hoje mais distantes das grandes áreas metropolitanas litorais do que no momento da adesão à Comunidade Europeia.

O quarto conjunto de questões que considero decisivas para os próximos anos consiste na relação entre a coesão nacional, as políticas de solidariedade e o sistema de segurança social.

É talvez, mais do que todos os outros, um tema transversal, omnipresente, que representa uma condição de base para promover um programa de mudança com um mínimo de justiça e sem graves rupturas sociais.

Num momento em que o envelhecimento da população é já um facto irreversível para as próximas décadas e a pirâmide etária se transforma num disforme paralelipípedo, o financiamento futuro do sistema de segurança social e a solidariedade entre gerações e grupos sociais constituem-se em questões iniludíveis e inseparáveis, para as quais não temos ainda respostas consistentes e duradouras.

A reforma do Estado-Providência, que entre nós não chegou sequer a amadurecer, será um processo longo e complexo, em que os regimes do passado terão de conviver com as soluções inovadoras, impostas por uma nova realidade, à qual os sistemas de protecção social terão de ser adaptados, sob pena de se auto-destruírem.

O conceito e as políticas de Solidariedade — entre grupos sociais, gerações e regiões — têm de ser entendidos como uma contrapartida indispensável para suportar socialmente as consequências da internacionalização da concorrência, constituindo, em articulação com as políticas activas de Emprego, uma rede mínima de segurança para que a desigualdade, tão frequentemente encarada com indiferença ou sobranceria pelos que se sentem instalados, não se torne política e moralmente insuportável.

Esta rede é também imprescindível para combater as crescentes ameaças à coesão nacional, tão frequentemente ignorada como preciosa vantagem comparativa de Portugal, que tudo devemos fazer para preservar e fortalecer, sobretudo nesta fase em que as pressões desintegradoras, reflectidas no domínio económico, mas também na esfera da cultura, dos símbolos e dos valores, tenderão a acentuar-se.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Procurei enunciar em termos muito gerais, como seria inevitável nestas circunstâncias, os grandes temas que em meu entender condicionam o desenvolvimento do País nos próximos cinco anos e devem por isso constituir os pontos de referência fundamentais de uma visão estratégica sobre o nosso futuro colectivo.

Com esta ou outra formulação, creio que podemos tomá-los como ponto de partida para um debate nacional que deverá ajudar-nos a compreender a nova realidade em que vivemos para podermos depois agir sobre ela eficazmente.

O simples enunciado deste conjunto de temas é suficiente para ilustrar a dificuldade dos desafios que nos esperam.

É útil, por isso, que sejamos capazes de construir, entre os principais protagonistas políticos, sociais e económicos, uma visão concertada sobre o futuro, um verdadeiro contrato para a mudança, traduzido na partilha negociada de responsabilidades e contrapartidas, susceptível de criar o quadro de estabilidade que todos consideramos certamente fundamental para que a adaptação da sociedade portuguesa possa fazer-se com mais eficácia e menores custos.

O que está em causa não é, evidentemente, a ingénua anulação de interesses divergentes ou a superação da saudável concorrência entre projectos políticos alternativos.

O que importa é a construção de novos consensos estratégicos que permitam ao País seguir um rumo estável e coerente, nesta transição difícil.

Pela minha parte, tudo farei, no quadro das minhas competências constitucionais, para ajudar a criar o clima de confiança necessário à concretização dos acordos de concertação estratégica que vierem a revelar-se viáveis e adequados.

Precisamos de nos concentrar nas grandes reformas internas, imprescindíveis para enfrentar com êxito o choque externo deste final de século.

Precisamos de fazê-lo com entusiasmo e esperança, valorizando o que é novo, premiando o risco e o êxito, evidenciando o exemplo positivo como factor de mobilização social, combatendo as visões apocalípticas que alimentam a complacência e o conformismo.

Não será possível avançar continuando a olhar, obsessivamente, para trás. Como diria António Carlos Jobim, «chega de saudade!»