Sessão de Abertura do «Seminário Europeu sobre o Rendimento Mínimo»

Centro Cultural de Belém
27 de Setembro de 1996


Permitam, minhas Senhoras e meus Senhores, que inicie a minha intervenção, dando-vos conta do muito interesse
— bem para além dos meros circunstancialismos protocolares — com que acompanhei a organização deste Encontro.
Sempre entendi que a acção política deixa de ter sentido, quando, por esta ou aquela razão, perde capacidade para se inquietar com as formas extremas de sofrimento humano, abdicando ao mesmo tempo de se interrogar sobre as engrenagens em que assenta a criação e reprodução de desigualdades sociais. Compreenda-se, por isso, que me sinta hoje aqui, não tanto como convidado
— condição que, em qualquer caso, sinceramente agradeço — mas como participante empenhado.

Não obstante serem globalmente elevados, por comparação com extensas regiões do mundo, os níveis de protecção social característicos dos países da União Europeia, é hoje inegável que, também no seu âmbito, muitos e cada vez mais amplos segmentos sociais se tornam vulneráveis ao desemprego e ao empobrecimento extremo, com toda a série de rupturas nos planos familiar, de convivência e da mais elementar participação cívica com o que se constroem trajectórias de exclusão mais ou menos irreversíveis.

Infelizmente, o crescimento tendencial da riqueza, os acréscimos de produtividade ou a conquista obsessiva de vantagens competitivas não surgem associados, com a desejável frequência, nasnossas sociedades, à repartição igualitária de oportunidades, à correcção atempada das distorções graves no acesso ao emprego e na distribuição de rendimentos ou mesmo à intervenção sistemática e empenhada na eliminação dos mais iníquos círculos viciosos da marginalização social.

O espectro do desemprego estrutural persistente — que, para muitos dos nossos jovens, pode significar o virtual desaparecimento do trabalho do seu horizonte de possíveis, e para muitas famílias, a perspectiva de uma vida transformada em rotina de inacção quase letal — o espectro do desemprego estrutural que ameaça a Europa, dizia eu, coloca problemas para que temos de encontrar, urgentemente, respostas eficazes.

Depois de algum tempo em que, tomando o emprego como adquirido, alguns acreditaram ser possível reinventar as sociedades em torno do tempo de lazer, eis-nos diante da exigência, quase vital, de reconquistar a pulso oportunidades de trabalho, ainda que precário, para o maior número possível dos nossos concidadãos.

Percebe-se que é a coesão global das sociedades que está em causa neste declinar de século — e que o trabalho tem de deixar de ser visto como um custo de produção que se impõe comprimir, para reocupar o seu lugar central no processo de construção das identidades individuais e no quadro de mecanismos integradores sem os quais nenhuma sociedade subsiste.

A leitura dos indicadores sobre a importância relativa das despesas com prestações de protecção social nos vários países da União Europeia mostra que continuam a ser significativas as disparidades existentes neste plano, mau grado o movimento de aproximação a padrões mais elevados, que desde o início dos anos 80 pôde ser empreendido pelos países de economia mais frágil.

A este respeito, Portugal situa-se, como é sabido, numa posição relativamente recuada. Para isso, contribuíram vários circunstancialismos da história portuguesa do nosso século.

Recordo, a propósito, a difícil e tardia reimplantação, entre nós, do Estado de Direito Democrático, todas as dificuldades de construção de alicerces de políticas de bem-estar num contexto de crise económica e de turbulência social acentuada, a relutância de certas orientações governamentais passadas em investir na consolidação de um, ainda débil e lacunar, sistema de protecção social; e não posso deixar de relevar também, no mesmo sentido, o eco que entre nós foram obtendo durante a última década algumas posições de crítica radical do Estado-Providência, francamente desajustadas, por evidente anacronismo, à avaliação das políticas sociais portuguesas.

Felizmente, por toda a Europa e também em Portugal tem-se vindo a cimentar progressivamente um movimento de consciencialização sobre os problemas sociais que aqui enunciei.

Agrada-me registar, a tal propósito, a atenção concedida pela comunidade académica e científica nacional — primeiro através do trabalho pioneiro de alguns, hoje já de forma sistemática e interdisciplinar — à caracterização dos fenómenos de pobreza, de vulnerabilização e de exclusão social presentes na sociedade portuguesa.

E é ainda com agrado que registo o facto de, para aí chegar, a mesma comunidade se ter querido aproximar — sem elitismos caducos nem purismos intelectuais excessivos — dos profissionais mais directamente ligados, no terreno, ao dificílimo combate quotidiano, contra o sofrimento alheio.

Sabe-se, também, que a criação do rendimento mínimo constituiu tema relevante de alguns debates políticos recentemente havidos entre nós.

Creio não me enganar se disser que a concepção das medidas governamentais recentes sobre o Rendimento Mínimo Garantido teve em consideração o património de reflexões decorrente desse virtuoso intercâmbio profissional, social e político, facto com que me congratulo e correspondeu a uma inquestionável exigência social.

E se este já é um bom prenúncio relativamente aos passos seguintes da experiência que agora se inicia em Portugal, o mesmo direi da iniciativa que conduziu a este Seminário.

É que se, por um lado, vai ser possível reflectir, ao longo dos trabalhos, sobre experiências de política social homólogas das que começam a ser conduzidos entre nós, julgo estar igualmente assegurado que as discussões não vão perder de vista as especificidades da realidade portuguesa.

A este respeito, e sem querer ter a veleidade de interferir na agenda dos trabalhos — só aos organizadores e especialistas presentes compete, como é óbvio, formulá-la — permito-me trazer a esta assembleia uma preocupação e manifestar um desejo.

São muitos os diagnósticos sociológicos que apontam a existência de sectores da população que, a muitos outros traços de pobreza e exclusão, acrescentam o de se terem tomado socialmente invisíveis e, por isso, em certo sentido, «inexistentes».

Quem conhecer os espaços desvitalizados de extensíssimas regiões do País a que, por simplificação e amargo eufemismo, chamamos Interior.

Quem retiver na memória as imagens de rostos envelhecidos (ou simplesmente ausentes) por detrás das janelas, tristes janelas, de tantos quarteirões sombrios e degradados das nossas grandes cidades.

Quem alguma vez tiver observado esse processo de lenta auto-anu-lação existencial que vem atrás do desemprego de longa duração.

Em suma, quem estiver atento a esta parte mais escondida e envergonhada da pobreza e da exclusão social, saberá do que estou falando.

Refiro-me a segmentos sociais que, agarrados por processos de exclusão, vão, nesse movimento, perdendo a própria voz e a vontade ou possibilidade de a delegarem em porta-vozes reconhecidos e audíveis.

Vivem em silêncio, e de silenciosos passam a silenciados.

Não correrão o risco de, por tudo isso, se transformarem nos parentes pobres de todas as políticas sociais, mesmo aquelas que, como as que vãoser discutidas, se dirigem aos mais deserdados dos deserdados?

Tenho por certa a necessidade de reequacionar as políticas sociais à luz das realidades demográficas em que vivemos, de diferenciação do mercado de emprego, de persistência do desemprego de longa duração, da pobreza e de outros factores que aumentam a incerteza com que muitos cidadãos vivem o seu presente e encaram o futuro.

Não se pode aceitar que a desigualdade de oportunidades se amplie e se reproduza porque, se assim for, é a cidadania que se restringe e a coesão social das sociedades complexas em que vivemos que se debilita.

Tal como as restantes sociedades que constituem a União Europeia, Portugal tem de saber encontrar, neste período de crise e de transformação em que vivemos, um caminho para a construção do futuro.

Estou certo que esse caminho não poderá deixar de ter presente, quer no plano nacional, quer no plano europeu, a necessidade de assegurar a compreensão, a adesão e a participação dos cidadãos, que são sempre a origem, os destinatários e a razão de ser da política.

Como tenho afirmado, o nosso País tem, seguramente, de enfrentar com lucidez e determinação os desafios decorrentes da globalização dos mercados e da integração económica europeia. E é verdade que Portugal não pode, por si só, determinar a evolução da União Europeia. Mas pode e deve influenciá-la.

Pode e deve constituir-se como parceiro pleno, que aceita sem inibições os desafios mais complexos, como o da União Económica e Monetária, mas que exige, em contrapartida, condições de ajustamento equilibradas e rejeita sacrifícios injustificados.

Portugal tem de ser capaz de assegurar o controlo social e político das mudanças com que a economia e a sociedade portuguesa estão confrontadas.

Não acredito que a modernização da economia e o aumento da competitividade das empresas se possa realizar sem cuidar, simultaneamente, do desenvolvimento de políticas de solidariedade que enfrentem as tensões sociais resultantes da pobreza, do desemprego e da dualização social.

Entendo, por isso, que a construção europeia exige que não se reserve às políticas sociais um espaço tendencialmente residual, de modo a que seja efectivada, também no plano social, a partilha de responsabilidades entre as instâncias comunitárias e os Estados membros.

Pelo contrário, julgo indispensável que, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, se alarguem as possibilidades de reequacionar o problema dos direitos sociais à escala da União, de modo a que a reforma das políticas sociais contribua para a coesão social.

Como disse, será aos especialistas que se vão reunir neste fórum que compete avaliar as experiências de outros países no domímio do rendimento mínimo garantido.

Apenas peço que tomem as minhas palavras como indicador de um genuíno interesse pelo objecto da vossa reflexão, na esperança de que os trabalhos deste Seminário permitam melhorar a contribuição das políticas públicas para a satisfação de necessidades essenciais.

Creiam que, como cidadão e como Presidente da República, ficarei atento ao desenrolar dos vossos trabalhos e não deixarei de me debruçar, com todo o interesse, sobre as conclusões a que cheguem.

Estou certo de que o mesmo farão todos os responsáveis directos pela concretização das medidas relativas ao Rendimento Mínimo. Sei que assim será e com isso me regozijo.