Sessão Comemorativa do 20.º Aniversário do Instituto António Sérgio

Lisboa
20 de Novembro de 1996


Agradecendo o convite com que o Instituto António Sérgio de Fomento Cooperativo me honrou, quero saudar esta celebração do novo Código Cooperativo, que entrará em vigor já no próximo dia 1 de Janeiro de 1997.
Na saudação envolvo a organização promotora, que perfaz este ano o seu vigésimo aniversário. Cumprimento por isso todos quantos nela trabalham, bem como todos os que a ajudaram a criar, com a sua dedicação e esforço, e o seu empenho na causa do cooperativismo. A condecoração que acabo de impor ao Professor Ferreira da Costa, primeiro director do Instituto, pretende também assinalar esse reconhecimento. Mas permitam-me que tenha uma palavra para o Professor Henrique de Barros, a quem se deve, enquanto membro destacado do 1.º Governo Constitucional, e com a autoridade própria de quem ao cooperativismo dedicou parte importante do seu labor intelectual, o patrocínio da fundação do Instituto António Sérgio.

O INSCOOP ostenta assim a idade da democracia, ou melhor, a idade da democracia constitucional, dando corpo aos preceitos da Constituição da República de acordo com os quais «compete ao Estado a protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção», cometendo ao Estado o encargo de «estimular e apoiar a criação e a actividade de cooperativas».

A destacada incidência que a temática cooperativa logrou na Constituição de 1976 não foi seguramente fortuita. A valorização dos princípios cooperativos, e o reconhecimento da oportunidade de formação de um sector cooperativo na sociedade portuguesa, incorporou o ideário e acção política de diversas correntes liberais, operárias e republicanas, desde a segunda metade do século xix, integrando-se plenamente no património político ideológico da resistência ao autoritarismo e da defesa da Democracia.

António Sérgio, justamente o nome escolhido para patrono do INSCOOP, foi quem mais longe levou a promoção e aprofundamento da cooperatividade, que ergueu ao nível de programa de desenvolvimento sócio-económico e cultural. O alto prestígio de Sérgio, feito da consistência e do vigor do seu combate intelectual e político, e da coragem com que atacou os grandes problemas do futuro de Portugal, emprestou ao cooperativismo uma dimensão inovadora, que explica a sua geral inclusão nos programas de todos os principais partidos políticos que disputaram as eleições de 1975. Um largo consenso aprovou as referências constitucionais ao sector cooperativo e manteve-as, sem modificações substantivas, nas revisões subsequentes.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O investimento do fenómeno cooperativo pela Democracia não se limitou ao campo especulativo ou programático, teve uma tradução nas realizações da sociedade portuguesa, como queria António Sérgio. Em 1974 existiam cerca de 950 cooperativas. Até ao final de 1976 legalizaram-se 1000 novas cooperativas. Um panorama retrospectivo eloquente é o que resulta da observação dos números: no princípio do século existiriam 17 cooperativas; em 1910, ano da implantação da República, 62; em 1926, cerca de 400.

Estes sinais de vitalidade, que fizeram ascender o número de cooperativas em 1985 a quase 4000, parecem ter-se atenuado em tempos recentes. Em finais de 1994, segundo o INSCOOP, existiria um total de 3024 cooperativas, indício de uma inversão de tendência.

A crise económica dos anos 90 deve ter representado uma conjuntura difícil para as cooperativas portuguesas, agravando fragilidades estruturais. Os estrangulamentos repercutiram-se pesadamente em ramos como as pescas e a produção operária, e o consumo. Neste ramo, assistiu-se à falência de entidades verdadeiramente emblemáticas, como foi o caso da Cooperativa Novos Pioneiros de Braga, detentora de um historial riquíssimo que remontava a antes do 25 de Abril.

A integração económica europeia deveria ter originado uma atenção redobrada ao estatuto de protecção, nomeadamente técnico e financeiro, que a Constituição impõe para as cooperativas — o que não se verificou. A viabilização do crédito cooperativo não agrícola e o ajustamento do regime fiscal, eis algumas das questões não resolvidas, de consequências gravosas para o cooperativismo.

Verifico porém com agrado a existência de indícios de uma nova atitude perante a especificidade e a relevância do fenómeno cooperativo, a que gostaria de endereçar uma palavra de incentivo.

Este ciclo de conferências é um desses sinais. Mas também retiro do documento das Grandes Opções do Plano para 1997, que o Governo submeteu à Assembleia da República, claros indicadores de intenções de reforçar a capacidade competitiva das cooperativas, apoiar não só as suas estruturas de representação como a divulgação do cooperativismo entre os jovens, nomeadamente nas escolas.

De facto, é de lamentar que o estudo dos temas cooperativos esteja praticamente ausente do nosso sistema de ensino. Há que retomar iniciativas neste domínio e encorajar a investigação da problemática cooperativa. As nossas escolas, designadamente as nossas Universidades, têm de ser estimuladas de modo a que se inverta a situação de quase deserto no que respeita ao estudo da temática cooperativa.

Só assim se poderá atenuar o clima ideológico hostil à cooperatividade que hoje parece instalado, pelo menos como parte de um senso comum conservador partilhado pela Administração Pública e por muitos quadros técnicos de empresas privadas. Por exemplo, o sistema bancário encara com alguma desconfiança a realidade cooperativa, avaliando-a com base em critérios gerados na actividade económica privada e lucrativa, mas desajustados quando se trata de avaliar cooperativas.

Nalguns países europeus e também em certa medida no nosso, tem-se vindo a esboçar uma colaboração entre as cooperativas e outras organizações, exteriores ao sector público e desprovidas de fins lucrativos, no quadro de um conjunto a que tem sido atribuída a designação de economia social.

Embora nem todos os membros da União Europeia se revejam no conceito de economia social, as estruturas comunitárias têm incentivado a vitalidade desse conjunto de estruturas. Em Portugal há iniciativas em marcha, envolvendo cooperativas, mutualidades, algumas fundações e outras instituições privadas de solidariedade social, e tomei conhecimento que o Ministério da Solidariedade e Segurança Social prevê para o próximo ano a organização e início de actividade de um órgão de consulta intitulado Conselho Nacional para a Economia Social. Há motivos para acreditar nas virtualidades de uma inserção das cooperativas portuguesas, acauteladas a sua autonomia e especificidade, numa dinâmica de toda a economia social.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O consenso que se gerou em torno da recepção constitucional do cooperativismo foi defendido ao longo do processo que culminou na aprovação do novo Código Cooperativo na Assembleia da República. Tratando-se de legislação reformadora, devemos congratularmo-nos com a unanimidade alcançada, que sublinhou a consensualidade existente em Portugal em torno do sector cooperativo.

O novo diploma aperfeiçoa diversos aspectos relativos à criação, orgânica, funcionamento e articulação das cooperativas. Entre as novidades do novo diploma merece destaque a expressa abolição de todas as barreiras que tolham a iniciativa económica cooperativa, bem como a ilegalização expressa de quaisquer descriminações que prejudiquem as cooperativas.

No Código que tive a oportunidade de promulgar fez-se a recepção dos princípios cooperativos tal como foram definidos, em Manchester, em Setembro de 1995, pela Aliança Cooperativa Internacional, no seu Congresso do 10.º Centenário. E é assim que no artigo 30.º se enunciam os princípios cooperativos que integram a declaração de identidade cooperativa: o princípio da adesão voluntária e livre; o da gestão democrática pelos membros; o da participação económica dos membros; o da autonomia e independência; o da educação, formação e informação; o da intercooperação; e o do interesse pela comunidade.

Por força da ordem jurídico-constitucional, são estes princípios que têm de ser respeitados, não só pelas cooperativas e pelos cooperadores portugueses, mas também pelos diversos órgãos do poder político. Estes princípios deverão potenciar a criatividade e a eficácia solidária do movimento cooperativo, abrindo-o à sociedade e ao futuro.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Os princípios cooperativos, na formulação reformada que recordei, e atento o património de realizações históricas a que já deram origem, oferecem credenciais que permitem integrá-los entre os sinais de esperança dispersos pela sociedade actual.

As virtualidades das cooperativas como factor de desenvolvimento são significativas. Há uma sinergia entre a prática cooperativa e o desenvolvimento local. O carácter não lucrativo destas organizações torna possível o aparecimento de actividades produtivas em locais que à luz da lógica do lucro dificilmente as suscitariam. A sua dimensão mais comum e a sua natural abertura a dinâmicas participativas são outras componentes dessa sinergia.

A Aliança Cooperativa Internacional tem intensificado nos últimos anos as preocupações ambientais do movimento cooperativo, podendo dizer-se que cada vez mais se inscreve no cerne do fenómeno cooperativo uma profunda mobilização em prol da salvaguarda do ambiente.

A impotência dos mecanismos tradicionais do mercado para suster a vaga de desemprego e as limitações funcionais do Estado na economia reforçam a pertinência do sector cooperativo, como aquele que no quadro das actividades económicas não lucrativas maior espaço abre à participação de um leque alargado de produtores. Por isso merece crescente atenção a capacidade que o sector cooperativo tem de gerar emprego e potenciar a coesão social.

Resulta também cada vez mais claro que o desenvolvimento cooperativo é, pela sua natureza, um factor de aperfeiçoamento e aprofundamento da democracia.

Ele faz apelo à autodeterminação individual, como responsável por uma causa em que se jogam valores tão decisivos como o da solidariedade. Por essa via, favorece a igualdade de oportunidades e a expressão plena das faculdades humanas. Através da multiplicação dos protagonismos individuais e colectivos, favorece a afirmação da cidadania.

O cooperativismo tem pois um lugar, sedimentado pela história, nos desafios do futuro e é nosso dever manter esse caminho aberto às novas gerações.