Prefácio ao Livro Timor Leste - Nobel da Paz


01 de Março de 1997


A atribuição do Prémio Nobel da Paz ao Bispo D. Carlos Ximenes Belo e ao Dr. José Ramos Horta marca uma viragem crucial na longa e heróica luta dos Timorenses pela sua liberdade.
A decisão do Comité Nobel da Paz foi, a todos os títulos, exemplar. Desde logo, pela escolha dos homenageados. Figura exemplar da Igreja Católica, o Bispo de Díli, incansável na defesa da dignidade e dos direitos da sua comunidade perseguida e martirizada, tantas vezes com o risco da sua própria vida, tornou-se uma referência na consciência universal. A sua coragem, a sua serenidade e a sua inteligência simbolizam a vontade indómita da resistência dos Timorenses, que não se deixaram vergar nem pela violência, nem pelo extremo isolamento impostos pela ocupação indonésia. A força tranquila de D. Carlos Ximenes Belo, a sua autoridade única na comunidade timorense e a sua projecção internacional tornaram-no uma referência indispensável para uma resolução justa e pacífica da questão de Timor-Leste.

O Dr. José Ramos Horta, dirigente da Resistência Timorense, desde a primeira hora, tomou-se a voz da luta do seu povo heróico em todos os fora internacionais. A sua abnegação, a sua persistência e a firmeza das suas posições foram de grande importância para manter viva a causa timorense, sempre ameaçada pelo esquecimento, pela indiferença e pela ignorância, sem desistir nunca da defesa intransigente do legítimo direito de autodeterminação do povo de Timor-Leste.

Por outro lado, os termos de referência invocados para a atribuição do Prémio da Paz são extremamente importantes. O Comité Norueguês do Nobel exprime os seus votos de que a atribuição do Prémio estimulará os esforços para encontrar uma solução diplomática, justa e pacífica para o conflito em Timor-Leste, no respeito pela autodetenninação do povo timorense. É esse o sentido essencial da luta dos Timorenses, simbolizada na acção de D. Ximenes Belo e de Ramos Horta, que merece, desse modo, um inequívoco reconhecimento internacional.

Enfim, a decisão do Comité Norueguês do Nobel foi igualmente avisada na escolha do momento mais oportuno, vinte anos depois da invasão indonésia. O Prémio Nobel da Paz marca a consagração definitiva da causa timorense como uma grande causa internacional, onde se revêem todos os que lutam pela paz, pela liberdade e pelo direito.

A causa timorense é uma causa exemplar. Isolada numa ilha remota, nos confins da Ásia Oriental, a pequena comunidade timorense conseguiu preservar a sua força e consolidar a sua identidade numa luta desigual contra a Indonésia, que quis aniquilar a sua vontade por uma política de massacre, cuja violência provocou o extermínio de um terço da população de Timor-Leste. Frequentemente ignorada pela comunidade internacional, que silenciava a sua resistência, a comunidade timorense nunca desistiu do seu combate pela liberdade e pelo direito à autodeterminação, que lhe é reconhecido pela Organização das Nações Unidas. Muitos pensaram tratar-se de uma causa perdida, tal a desproporção das forças: o tempo parecia jogar a favor da potência ocupante para impor a anexação ilegal de Timor--Leste como um facto consumado. Sempre foi, em todo o caso, uma causa incómoda, pois exigia confrontar uma grande potência regional, não obstante a invasão e a ocupação indonésia constituírem uma violação clara e permanente do direito internacional.

Essa situação começou a inverter-se, nomeadamente desde o trágico massacre do cemitério de Santa Cruz — o único que a opinião mundial pôde testemunhar, por ter sido filmado por jornalistas independentes. Nos anos seguintes, foi possível impor a condenação do brutal regime de ocupação indonésio em sucessivas instâncias internacionais, enquanto crescia um movimento, cada vez mais largo, de apoio à causa timorense, que mobiliza os parlamentos democráticos, as organizações de solidariedade e a opinião pública em todos os continentes, mesmo dentro da própria Indonésia.

O Prémio Nobel da Paz representa o reconhecimento internacional da causa timorense, e assegura-lhe a projecção indispensável para garantir a sua continuidade. Afinal, o tempo corre do lado dos Timorenses.

Tive o privilégio de testemunhar, directamente, essa viragem, na cerimónia oficial de atribuição do Prémio Nobel da Paz, na qual estive presente, por convite, que muito me honrou, de ambos os laureados.

Retenho, desse dia inesquecível, vários momentos altos. Em primeiro lugar, logo pela manhã, a missa na catedral de Oslo, celebrada, em latim, pelo CardealEtchegarray, com D. Ximenes Belo e bispos de todos os continentes, num acto tão singelo como solene, onde transparecia a determinação da Igreja Católica na defesa de uma comunidade mártir. Depois, as sucessivas intervenções do representante do Comité Norueguês do Nobel e dos laureados, na cerimónia oficial, presidida por Sua Majestade o Rei da Noruega, e na presença de representantes de todos os Estados da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo os Presidentes da República de Moçambique e da Guiné--Bissau. Os discursos foram inspirados. Impressionaram-me, sobretudo, as referências do Bispo Belo à luta dos indonésios pela sua independência, que comparou ao combate dos Timorenses, e a moderação das propostas de Ramos Horta, num espírito de reconciliação da comunidade timorense. Enfim, talvez o momento mais comovente tenha sido a apresentação de um grupo de danças timorenses, que conseguiu transmitir o sentimento profundo da dignidade e o sofrimento do nosso povo irmão.

No dia do Prémio Nobel da Paz senti confirmada, mais uma vez, a justeza da posição portuguesa na questão de Timor-Leste. Portugal e os Portugueses nunca desistirão de lutar em defesa dos direitos dos timorenses. Portugal continuará empenhado na procura de uma resolução justa e pacífica da questão de Timor--Leste, em cooperação com o Secretário-Geral das Nações Unidas, e com todas as partes interessadas, designadamente a comunidade timorense. Portugal continuará a defender, intransigentemente, o exercício livre e democrático do direito à autodeterminação de Timor-Leste, sob supervisão internacional.

É esse o nosso dever, perante a comunidade internacional. É esse o nosso compromisso solene, em nome dos vínculos indestrutíveis — «elos sagrados, profanos e sacros», disse Ruy Cinatti — que nos unem aos Timorenses.

Estou certo de que o dia da liberdade em Timor-Leste está cada vez mais perto.