Sessão de Abertura do Congresso Internacional «Que Futuro na Europa Pós-96»

Fundação Calouste Gulbenkian
04 de Junho de 1996


Embora não me tenha sido expressamente pedido que interviesse na sessão de abertura deste Congresso, não resisto, depois de ler o programa dos vossos trabalhos, e dizer-vos que ele me evocou uma recordação amarga da época em que participei, como membro português, na Comissão Europeia dos Direitos do Homem.
E essa recordação impele-me a cometer um plágio, contando com a generosa complacência do nosso ilustre anfitrião.

A recordação é a do depois tristemente celebrado caso Altun, cidadão turco que pedira asilo político na República Federal da Alemanha.

Detido, posteriormente, no âmbito dum pedido de extradição relativo à alegada prática de crime de direito comum, o Senhor Altun recorreu à Comissão Europeia, por temer vir a ser processado por actividades políticas que exercera no seu país.

A Comissão admitiu a queixa, pois considerou poder estar em causa possível violação do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no respeitante à proibição de quaisquer tratamentos «cruéis», desumanos ou degradantes.

Mas não pôde pronunciar-se sobre o fundo da questão, porque, não aguentando a pressão causada pela discussão, em recurso judicial, do asilo entretanto concedido, o Senhor Altun se suicidou, lançando-se de uma janela do próprio tribunal em que o caso ia ser julgado.

Este dramático evento mostra, pungentemente, como o direito de asilo tem a ver com os aspectos graves e essenciais para a vida das pessoas — às vezes, mesmo de vida ou de morte.

Mas, em contrapartida, revela como a ainda incipiente ordem jurídica europeia contraiu já virtualidades, por vezes insuspeitadas, para uma justa e correcta abordagem dos problemas do asilo na perspectiva da defesa dos direitos do homem.

E é por isso que entendo não haver melhor forma de sugerir um lema para este Congresso do que fazer minhas as palavras com que o Prof. Ferrer Correia culminou a sua magistral alocução de abertura do Seminário Internacional «Europa 1996», que tão oportunamente a Fundação Calouste Gulbenkian tomou a iniciativa de, há poucas semanas, organizar: «É vocação dos Europeus fazer a Europa, porque é preciso fazer o Mundo.»

Não podemos, é certo, ser demagógicos, ou sequer ingénuos, a ponto de ignorar a realidade actual, em especial a situação social e económica do nosso país e do Continente a que pertencemos, bem como os condicionamentos derivados dos compromissos europeus que deliberadamente assumimos.

Tão-pouco é possível desconhecer, em particular, que a problemática dos refugiados e do direito de asilo se apresenta, hoje, bem diversa daquela a que a Convenção de Genebra de 1951 e o respectivo Protocolo de 1967 pretenderam dar solução.

Mas a mesma postura honestamente realista obriga-nos, em contraponto, a enfrentar esta tão difícil matéria expurgando-a de perniciosas confusões e de alarmes injustificados.

Refiro-me, por um lado, à necessidade de distinguir devidamente as especificidades próprias do direito de asilo e dos refugiados, face às questões gerais suscitadas pelo fenómeno migratório.

E sublinho, por outro, que não podemos olvidar que, em termos de peso social e económico, os dados estatísticos relativos aos pedidos de asilo formulados em Portugal nos anos mais recentes são bem menos preocupantes que os que afligem outros países europeus.

Encontramo-nos, por isso, numa situação privilegiada, em comparação com a de outros Estados do Continente, para analisar e discutir os temas dos refugiados e do direito de asilo, sem excessiva pressão de constrangimentos sócio-económicos, e dando primazia à consideração de princípios de que, afinal, a própria Europa foi precursora.

Podemos, nessa tarefa, encontrar sólido arrimo na Constituição, que não só consagra expressamente o direito ao asilo, como define como princípios gerais estruturantes da actuação do Estado português os da justiça, da proporcionalidade e do respeito pelos direitos do homem.

Confortou-me, ainda, verificar através do Programa deste Congresso, que ele não abordará o seu objecto por forma juridicamente redutora, mas sim global e complexivamente também numa perspectiva social, política e cultural.

E considero especialmente positivo que ele tenha partido da iniciativa duma Organização Não Governamental, com o inestimável e autorizado patrocínio do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

A sociedade portuguesa precisa, com efeito, para se manter viva e actuante, e não se deixar estiolar por excessiva burocracia institucional, da intervenção inovadora e autónoma das associações dos cidadãos. O apoio do Alto-Comissariado, com a longa experiência e firmeza de princípio que o distingue, é por si mesmo garante do nível e qualidade de qualquer empreendimento.

Desejo, pois, reiterar que, ao tratar do problema do asilo e dos refugiados, não seremos capazes de o fazer, enquanto cidadãos portugueses ou da Europa, se o não fizermos também enquanto cidadãos do Mundo.

Só assim poderemos, como aliás tive oportunidade de vincar ao definir a minha linha geral de actuação como Presidente da República, «emergir para um momento de acrescida respeitabilidade universalista, ao serviço da paz, do progresso mundial e do desenvolvimento dos Povos».

Se assim não procedêssemos, estaríamos a desmerecer do heróico e trágico exemplo do Cônsul Aristides de Sousa Mendes, que, ao garantir a fuga à perseguição nazi de mais de trinta mil refugiados, conseguiu, no dizer do historiador Yehuda Bauer, «sozinho, contra tudo e contra todos, realizar a maior operação de salvamento da história do Holocausto».

É a figura desse português corajoso, tão injustiçado no seu tempo, que hoje evoco e proponho como imagem tutelar deste Congresso.