Abertura da conferência sobre "O Futuro da Europa Social"

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
05 de Maio de 2000


É com um grande prazer que presido à abertura desta conferência sobre “O Futuro da Europa Social” e que saúdo os representantes dos Governos e das instituições europeias, os ilustres oradores, os representantes dos parceiros sociais, os outros participantes e, naturalmente, os organizadores desta iniciativa.

O meu gosto em aqui estar deve-se, antes de mais, a uma constatação: apesar de todas as dificuldades e insuficiências, o caminho percorrido nos últimos anos transformou profundamente os termos do debate sobre o presente e o futuro do modelo social europeu.

Há exactamente três anos atrás, numa conferência sobre a Europa Social organizada pela Fundação que hoje nos acolhe, um dos pontos principais consistia em saber se, com a criação da moeda única europeia, ainda seria possível fugir da questão que a década neo-liberal dos anos 80 nos legou.

Refiro-me, evidentemente, à tensão, tida por inescapável, entre eficiência económica, emprego e equidade social, que deriva das mudanças que o mundo vem conhecendo e que tornaria impossível responder simultaneamente com eficiência àqueles três eixos da governação.

Todos estaremos lembrados das receitas simplistas que, no contexto do desemprego crescente que caracterizou a Europa até meados dos anos 90, então, apontavam a capacidade de criar empregos dos Estados Unidos da América para assim fundamentarem a necessidade da Europa reduzir os níveis e limitar drasticamente o alcance dos modelos de protecção social que a singularizam no Mundo.

Com mágoa ou sem ela, os níveis europeus de protecção social eram, então, frequentemente apresentados como um luxo herdado de um passado que não conhecera nem a globalização dos mercados financeiros, nem a emergência de novos países industrializados, nem a integração monetária da Europa, nem as exigências da sociedade pós-industrial.

Nas vésperas do Tratado de Maastricht, a tentativa de ligar a criação do mercado interno europeu à definição de uma Carta Comunitária de Direitos Sociais Fundamentais juridicamente vinculativos tinha sido inviabilizada pela regra dos Tratados Europeus que impunha a unanimidade do Conselho Europeu.

Com as decisões então tomadas sobre a criação da moeda única e sobre o caminho para lá chegar, a situação social europeia tornava-se particularmente difícil, visto que os Estados membros pareciam correr o risco de ser desapossados dos meios necessários para assegurar a viabilidade dos respectivos modelos de relações industriais e de protecção social, enquanto que até os mais optimistas reconheciam que, no plano europeu, as estratégias de harmonização social no progresso estavam bloqueadas.

Não precisarei de lembrar aqui que, a meio da década de 90, a criação da moeda única europeia aparecia a muitos especialistas como um passo mais das estratégias neo-liberais, então predominantes nos governos europeus, segundo as quais a principal vocação da política económica era a de promover a competitividade empresarial, enquanto que as políticas sociais públicas, com um campo de intervenção já diminuto, deviam tomar a seu cargo a eliminação das barreiras à eficiência económica das empresas.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Conto-me, como alguns dos presentes saberão, entre os que consideram que o chamado modelo social europeu está na base das décadas de crescimento económico e de progresso social que os países democráticos da Europa conheceram no pós-guerra.

Mas pertenço também ao grupo dos que sabem que tal modelo não resultou de qualquer automatismo económico ou tecnológico mas, pelo contrário, de um esforço continuado das sociedades democráticas avançadas para limitarem e corrigirem as desigualdades induzidas pelas economias de mercado.

Não creio, porém, que a solução para as dificuldades de competitividade das empresas ou para os problemas de emprego e de desemprego que as sociedades europeias vêm conhecendo, possa ou deva passar pelo desmantelamento, mesmo que cautelosamente realizado, desse traço comum da nossa identidade colectiva que é a ligação estreita entre os direitos cívicos, sociais e políticos dos cidadãos.

Perante esta audiência, não me deterei a enumerar e a discutir os motivos que me têm levado a juntar a minha voz à dos que, constatando a crise do sistema de emprego, do sistema de relações industriais e dos modelos de protecção social europeus, se batem pela sua reinvenção, isto é, pela sua melhor adequação aos desafios que a equidade social e eficiência económica colocam nos nossos dias.

Sei bem que falo duma das tarefas mais difíceis, mas também das mais importantes, que a governabilidade das nossas sociedades nos impõe nos nossos dias.

Reinventar as condições do pleno emprego, adaptar os sistemas de relações industriais à mudança económica e às novas clivagens sociais e melhorar o nível e a equidade dos sistemas de protecção social em função das mudanças já verificadas ou previsíveis são, evidentemente, tarefas cuja importância não carece de qualquer sublinhado.

Acresce que, todos o sabemos, tais transformações, sendo urgentes, nem podem ser realizadas da noite para o dia, nem podem ser concretizadas apenas pelo Governo de cada um dos Estados membros da União Europeia.

Depois de Amsterdão, do Luxemburgo, de Cardiff, de Colónia e da recente Cimeira Extraordinária de Lisboa, estão abertas as vias e esboçados os processos de cooperação entre os governos e as instituições europeias que permitem entrever um futuro em que será possível atribuir à definição duma política social o lugar central que deve ter no desenvolvimento da cidadania e na construção europeia e que as ideologias do competitivismo sem limites lhe vem negando.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Como bem sublinham os autores do estudo que está na base desta Conferência – e que eu desejo cumprimentar pela qualidade do trabalho que realizaram – o que está hoje em causa já não é a questão de saber se pode ou não existir alguma forma de compromisso entre as exigências da competitividade empresarial e o desenvolvimento da cidadania social europeia.

O desafio com que estamos confrontados é, hoje, o de saber quais são as escolhas políticas e os métodos de trabalho mais adequados para assegurar o futuro do modelo social europeu.

A meu ver, a comparação mais relevante já não é entre o passado e o presente dos direitos sociais na Europa, mas entre o presente e o futuro dessa teia relações sociais que justificam e que legitimam que homens e mulheres em situação de desigualdade social e económica sejam iguais perante a lei e possam exercer activa e plenamente a sua cidadania.

O que está hoje em causa é, sobretudo, o aprofundamento dos nossos conhecimentos sobre as diferentes realidades que coexistem na Europa e a elaboração das estratégias que nos tornarão capazes, à escala da União Europeia e dentro de cada um dos Estados que a constituem, de promovermos o pleno emprego, de adaptarmos o diálogo social e a negociação colectiva às exigências duma competição económica em que a inovação e o conhecimento ocupam um lugar sem precedentes e de reestruturamos os sistemas de protecção social de modo a erradicar a pobreza, facilitar a integração social dos grupos mais vulneráveis, limitar as desigualdades e repor a equidade social.

Permitam-me, para terminar, que aborde duas questões a que atribuo a maior importância.

Em primeiro lugar, a da direcção e dos objectivos dos caminhos que nos poderão levar à construção da cidadania social europeia.

Esclarecido, como já vai estando, que não se poderá atingir tal objectivo sem tomar na devida conta as potencialidades e as limitações dos sistemas de regulação e de protecção social que singularizam cada um dos Estados membros, discutem-se hoje, como já acontecera durante o processo de convergência nominal que levou à criação do Euro, as vantagens e os inconvenientes de valorizar alguns traços comuns que permitem aos analistas identificar, dentro da União Europeia, diferentes ‘famílias’ de sistemas de protecção social.

Não creio que a construção europeia ganhe com tal estratégia, que tenderia sempre a transformar categorias analíticas em especificidades regionais que podem constituir barreiras adicionais à governabilidade dum processo já de si complexo.

No meu entender, o chamado método de coordenação aberta permite tomar adequadamente em conta as especificidades relevantes de cada um dos nossos Estados membros no processo de construção da cidadania social europeia.

Mas, pelo contrário, penso que a proposta de incluir nos Tratados Europeus uma ‘carta de direitos cívicos e sociais fundamentais’, feita há anos pelo ‘Comité des Sages’, teria a grande vantagem de dotar a União Europeia de um conjunto actualizado de referências que permitiria orientar os processos de coordenação aberta para objectivos legitimados ao nível adequado.

A segunda questão que quero referir é a do sistema de tomada de decisões implícito num projecto desta dimensão e desta importância.

É para mim muito claro que o desenvolvimento da causa da Europa Social depende de um sistema de decisões muito complexo, em que as responsabilidades se repartem entre os Governos, os parlamentos e os parceiros sociais de cada Estado membro, mas também entre as instituições e os parceiros europeus.

Sou dos que pensam que, se cada um dos nossos países continua a dispor de um papel insubstituível neste processo, não é menos verdade que nenhuma entidade, por si só, o controla.

Entendo, por isso, que é preciso aperfeiçoar um sistema de tomada de decisões que nem sempre assegura a participação de todos os que carecem de ser ouvidos até porque constato, por vezes, que algumas organizações de interesses nem sempre são capazes de pôr o interesse colectivo acima dos seus interesses de grupo.

Há, pois, motivos fundados para que nos interroguemos sobre o que se poderá fazer para que os sistemas de diálogo e de participação dos actores sociais e económicos espelhem melhor o conjunto dos pontos de vista relevantes, limitem os poderes de veto que impedem o progresso social e económico e facilitem a construção de um novo corpo de direitos e de deveres que permitam limitar as novas e velhas desigualdades que corroem a solidariedade social e limitam a cidadania.

O presente e o futuro da cidadania social europeia e a coesão das sociedades em que vivemos dependem de nós, das decisões que todos e de cada um de nós tomar, da capacidade que todos e cada um de nós for capaz de pôr ao serviço da construção de novas respostas para as novas e as velhas fracturas sociais.

Muito obrigado pela vossa atenção.