Sessão de Encerramento da Conferência «Direitos Cívicos e Sociais e o Tratado da União Europeia»

Fundação Calouste Gulbenkian
07 de Fevereiro de 1997


E´ com muito gosto que me associo a esta iniciativa de audição e debate do Relatório elaborado pelo «Comité de Sábios», presidido pela Senhora Engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo, sobre a construção da Europa dos Direitos Cívicos e Sociais.
A minha participação nesta iniciativa representa, antes do mais, um apoio explícito à necessidade de promover um debate aprofundado sobre os objectivos e os instrumentos susceptíveis de reformar, em tempo útil, o modelo social europeu.

Trata-se de um dos problemas mais relevantes com que as sociedades europeias estão confrontadas porque, a meu ver, são cada vez mais claros os sinais de que está posta em causa a articulação virtuosa entre o económico e o social que caracterizou, nos países democráticos e desenvolvidos, as três décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Também por isso, é para mim uma honra poder partilhar com a audiência aqui reunida algumas reflexões sobre a identidade europeia nesta era da globalização dos mercados financeiros, da competição económica alargada, do desenvolvimento da sociedade da informação mas também do desemprego estrutural, da diferenciação e da precarização dos mercados de trabalho, do desenvolvimento de novas formas de pobreza e de exclusão social, dos movimentos migratórios desregulados, da convivência difícil entre etnias.

Para alguns, que entendem as políticas sociais como uma fonte de restrições à eficiência económica, a competição planetarizada traduzir-se-ia na impossibilidade das sociedades avançadas manterem, simultaneamente, níveis elevados de emprego e de protecção social.

Por isso, partindo da constatação de que os níveis de segurança social característicos das sociedades europeias são superiores aos de vastas regiões do mundo, há mesmo quem, a pretexto da dimensão do desemprego nalguns países e regiões europeias, se pronuncie, implícita ou explicitamente, pela inevitabilidade de reduzir os direitos sociais para promover o emprego.

Creio, minhas Senhoras e meus Senhores, que se trata de uma abordagem que, para além de equivocada, é insustentável nas sociedades democráticas que constituem a União Europeia.

A meu ver, a história da Europa mostra, pelo contrário, que existe uma ligação íntima entre o bem-estar social dos cidadãos e o desenvolvimento económico.

É certo que as nossas sociedades vivem hoje processos muito rápidos de mudança sócio-cultural e económica profunda que se têm traduzido em novas realidades demográficas, em profundas modificações dos mercados de trabalho, na diferenciação dos interesses de grupos sociais que, há algumas décadas, se caracterizavam por identidades e formas de relacionamento bem menos complexas.

É igualmente certo que estas mudanças constituem, em si mesmas, importantes factores de crise do acordo social em que assentou o desenvolvimento económico e a melhoria gradual da protecção social com que as gerações dos pós-guerra se habituaram a viver.

Mas não é menos seguro que a globalização da economia, comandada pela lógica que impera nos mercados financeiros, a disseminação das tecnologias da informação e a desregulamentação transformaram, muitas vezes, a ideologia competitivista e os interesses da empresa privada em critérios de decisão quase absolutos.

Neste contexto, os Estados nacionais tenderam a autolimitar a sua esfera de actuação em áreas anteriormente privilegiadas, reduzindo ou perdendo a sua vocação de garante do serviço público e de regulador das igualdades sociais.

A lógica do curto prazo sobrepôs-se frequentemente às avaliações de carácter estratégico e entendeu-se, demasiadas vezes, a solidariedade e as políticas sociais como um fardo herdado do passado que o progresso económico obrigaria aligeirar.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Continuo convicto que são profundamente erradas — e perigosas — as teses que, em nome do que entendem ser os imperativos económicos dos nossos dias, remetem para segundo plano os problemas da solidariedade e da coesão social.

Os indicadores, que todos conhecemos, desmentem, no presente como no passado, os pretensos automatismos que decorreriam do desenvolvimento económico e que assegurariam, a prazo mais ou menos alargado, os equilíbrios sociais.

Perante esta audiência, não me deterei a lembrar que os ganhos regulares de produtividade e o aumento das vantagens competitivas coexistem, fora como dentro da Europa, com o aumento da desigualdade de oportunidades, das disparidades salariais, do desemprego, da pobreza e com a marginalização e a exclusão sociais.

A União Europeia está confrontada com alguns desafios inerentes à mundialização que, evidentemente, não pode nem deve ignorar.

Para os enfrentar com sucesso, teremos de saber construir novas respostas que permitam articular, de modo virtuoso, as exigências da convergência monetária, o crescimento económico, a competitividade, a coesão social, as necessidades de defesa e de segurança, tudo isto no quadro de um alargamento que a nossa história comum nos impele a aceitar.

É claro que estamos perante desafios muito complexos que exigem o estudo, inovação e decisão ponderada.

Mas não é menos claro que, apesar de diferenças relevantes, que é necessário ter em conta, a história desenvolveu e consolidou em todas as sociedades europeias tradições de responsabilidade cívica e social perante as necessidades dos cidadãos que são consideradas, dentro e fora do espaço europeu, como um dos traços da nossa identidade comum.

Essas tradições contribuíram para o desenvolvimento de uma noção de cidadania alargada em que a participação política se articula com o bem-estar social e económico dos indivíduos e dos grupos sociais. Os direitos sociais são individuais, é certo, a discriminação é colectiva.

Na última década, a cidadania tem vindo a ser corroída pela manutenção e, nalguns casos, pelo crescimento da desigualdade de oportunidades no plano das relações entre homens e mulheres, na distribuição dos rendimentos, no acesso à educação e à formação, pela dificuldade de entrada dos jovens nos mercados de trabalho, pela expulsão de grupos significativos de adultos do mercado de trabalho.

A necessidade de reforma do Estado-Providência funda-se, portanto, quer na própria identidade europeia, de que o modelo social é parte indissociável, quer nas ineficiências crescentes dos sistemas de protecção social que se desenvolveram nos diferentes Estados membros da União.

Não se trata de «menos economia e mais social», mas de articular as mudanças económicas e sociais.

Diferentemente do período em que os sistemas de protecção se desenvolveram e se consolidaram na Europa, os sistemas de protecção social confrontam-se hoje com as consequências da feminização e da segmentação dos mercados de trabalho, com a diferenciação de oportunidades de emprego decorrentes da mudança tecnológica, e das restrições no acesso à formação com o crescimento do desemprego de longa duração e com a proliferação de novas formas de pobreza.

Se os mercados de trabalho são hoje muito mais diferenciados e complexos do que há algumas décadas atrás e se as atitudes individuais e grupais são, também elas, muito mais plurais, nem por isso o trabalho remunerado deixou de ser, simultaneamente, o principal meio de aceder a rendimentos e de se integrar na sociedade.

A incapacidade dos sistemas de protecção e de segurança social para responder a estes desafios representa, em si mesma, um motor de descontentamento suficientemente potente para dificultar o funcionamento das sociedades europeias. A cidadania tem de ser também social para poder ser cívica e política.

O mal-estar e as crises sociais que vemos eclodir em vários pontos da União Europeia mostram que o desemprego, a pobreza e a exclusão social podem bloquear reformas e contribuir para o desenvolvimento de egoísmos grupais e regionais que alimentam círculos viciosos de conflitualidade social, ineficiência económica e decréscimo da governabilidade nos Estados membros.

Nas vésperas de importantes decisões sobre a criação da moeda única europeia, sobre a reforma das instituições comunitárias e sobre o alargamento da União, a reforma do Estado-Providência não pode ser pensada e executada exclusivamente nos e pelos Estados membros.

É certo que, neste como noutros domínios, o papel dos Estados membros é e continuará a ser fundamental.

Verifico, porém, que tem sido possível, em Portugal como noutros países europeus, chegar a alguns consensos muito estratégicos quanto ao modo de adaptar as políticas monetária, orçamental, fiscal, económica, de educação, de formação, de emprego, de trabalho e de protecção social aos desafios com que a mudança cultural, social, económica e política nos confrontam.

É certo que a construção europeia tem ocorrido a ritmo mais lento no plano social do que no domínio monetário ou mesmo no campo económico.

Todavia, parece-me inegável que, visto no seu conjunto, o acervo comunitário é hoje suficientemente rico para se poder encarar ritmos mais rápidos e soluções mais consistentes no plano europeu.

Entendo, além disso, que o papel insubstituível dos Estados membros não pode levar a que se iluda ou se menospreze a dimensão europeia da reforma do Estado-Providência e julgo que é injustificável e inaceitável que se mantenham entendimentos tão diversificados do princípio da subsidiariedade.

Portugal tem assumido, quer no plano da convergência monetária, quer no plano da política externa e de defesa comum, as suas responsabilidades. A convergência nacional é indispensável.

Mas como cidadão e como Presidente da República de um País que quer participar activamente na construção europeia, quero aqui reafirmar a importância que atribuo à redução das ambiguidades e das insuficiências actuais no domínio social.

Entendo que, no quadro da moeda única europeia, a União tem de encontrar, em tempo útil, respostas claras e eficientes para uma partilha de responsabilidades que, também no plano social, exige estudo, debate e decisões difíceis a vários níveis.

Trata-se, seguramente, de um desafio complexo para que se encontrarão, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, respostas diferenciadas em cada Estado membro.

Mas tal não torna dispensável que a reforma dos Tratados encare decididamente a reforma do modelo social europeu e se assumam, também a esse nível, as responsabilidades adequadas decorrentes da unificação monetária.

A Europa precisa de encarar o desemprego estrutural, a pobreza e a exclusão social como problemas cuja solução não dispensa uma nova partilha de responsabilidades entre a União e os Estados membros que retire a dimensão social europeia do lugar do estatuto de inferioridade em que tem estado acantonada.

Trata-se de um problema central e como tal deve ser tratado.

Minhas Senhores e meus Senhores,

A reforma do modelo social europeu pode e deve contribuir para reforçar, interna e externamente, a identidade europeia e a consolidação do projecto europeu.

A mundialização das economias, dos processos de produção e dos mercados não são compatíveis com a desregulamentação pura e simples: necessitam de instituições e de normas que reduzam os obstáculos económicos, sociais e políticos que alimentem a resistência à mudança.

É necessário ultrapassar a falsa antinomia entre económico e social e procurar as novas articulações virtuosas entre educação, formação, qualificação, trabalho, emprego, necessidades individuais e empresariais, protecção e segurança social, ainda que isso nos obrigue a pôr em causa alguns estereótipos hoje predominantes na teoria e na política económica e a trazer para o primeiro plano do debate alguns contributos preciosos, mas teimosamente esquecidos, das ciências sociais.

A superação dos impasses actuais é, ao mesmo tempo, uma exigência política e uma condição da afirmação económica da Europa no mundo.

Julgo, portanto, indispensável que se esclareçam os contornos do espaço público europeu e se reconheça que os equilíbrios entre as esferas de responsabilidade dos cidadãos, das empresas, das organizações de interesses e das instituições públicas precisam de ser repensados e redefinidos.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Tenho tido ocasião de afirmar que atribuo uma grande importância às iniciativas que possam contribuir para o progresso do debate destes problemas entre os especialistas, entre as organizações patronais e sindicais, entre outras organizações não governamentais e nas próprias instituições públicas.

O sofrimento que vemos instalado no quotidiano de largos segmentos da população europeia merece a atenção da comunicação social e o contributo de todos os agentes culturais, sociais, económicos e políticos empenhados à defesa das grandes causas sociais.

Desejo, por isso, saudar com particular apreço a publicação do Relatório da Comissão presidida pela Senhora Engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo.

Creio que as propostas nele contidas merecem, como está a acontecer, um debate alargado e aguardo com interesse os resultados da audição dos que puderam e quiseram fazer ouvir a sua opinião.

Sei que o meu interesse é partilhado por outros responsáveis políticos, dentro e fora de Portugal.

Entendo, portanto, que a competência, o interesse e o trabalho realizados por todos os que participaram nesta iniciativa são credores da nossa gratidão e de uma ponderação atenta.