Sessão de Abertura do Colóquio Internacional “Liberdades, Direitos e Garantias Fundamentais do Constitucionalismo Português de 1822 a 1997

Atneu Comercial do Porto
03 de Outubro de 1997


Saúdo nos promotores e participantes deste Colóquio a feliz iniciativa de celebração do aniversário da Constituição de 1822 através da abordagem de um tema que, apelando à memória das origens e desenvolvimento do constitucionalismo português, estimula simultaneamente a reflexão sobre o balanço, perspectivas e responsabilidades do tempo presente.
É comum a tendência para, em cada momento histórico, se julgarem os contributos de cada época precedente à luz dos padrões contemporâneos, bem como para se considerarem as soluções entretanto encontradas como sínteses definitivas e os progressos realizados como o fim da história.
Com a reserva que esta tentação nos deve inspirar, é não apenas possível, como da maior oportunidade e interesse avaliar o alcance, a natureza e os limites que a consagração dos direitos, liberdades e garantias obteve nas sucessivas Constituições portuguesas.
Seguramente que as várias exposições apresentadas neste Colóquio permitirão uma apreciação mais rigorosa do legado histórico do nosso constitucionalismo e do sentido e importância da inspiração que nele recolheram os constituintes de 1976. Uma tal análise permitirá, além do mais, destacar a influência dessa tradição na conformação política e jurídica do nosso actual regime constitucional.
Nos dias de hoje, a legitimidade do exercício do poder político é decisivamente aferida, internamente e no plano da comunidade internacional, em função da forma como em cada Estado se acolhem, praticam ou reconhecem os direitos fundamentais do homem, do cidadão e dos povos.
Nessa medida, é também em razão desse critério que o nosso Estado democrático poderá hoje assumir-se ou não como legítimo herdeiro, continuador e depositário dos ideais de liberdade e justiça que, proclamados nas revoluções americana e francesa dos finais do século XVIII, encontraram, entre nós, primeira expressão global política e jurídica na Revolução de 1820 e Constituição de 1822.
Nesse domínio, não deixará, por certo, de se reconhecer a Constituição de 1822 como expressão do ideal de separação de poderes e garantia das liberdades individuais que inspirava os movimentos revolucionários que, na altura, atravessavam a Europa.
O que aí se apresentava era, essencialmente, um projecto de racionalização e de subordinação do Estado ao Direito visando, como se diria na fórmula que resultava da filtragem desse ideal pela mundividência liberal da época, a garantia da trilogia liberdade-segurança-propriedade.
Quando hoje se lança o olhar sobre a nossa experiência constitucional é relativamente fácil e pacífico elencar as deficiências, compressões ou entorses que as circunstâncias da época impuseram ao reconhecimento e vivência dos direitos, liberdades e garantias.
Nesse sentido, surge a tendência para conceber o actual Estado democrático como um sistema, não apenas distante, como materialmente desvinculado das origens do nosso constitucionalismo.
É que, não especialmente entre nós, mas em todas as latitudes em que o Estado de Direito iniciava o seu caminho, inúmeros factores condicionavam negativamente a assunção plena, na época, daquele ideal de liberdade, fraternidade e justiça.
Era o caso do sufrágio, restrito, masculino, censitário e capacitário que, tal como na democracia ateniense, excluía dos limites da polis a esmagadora maioria da população. Era a prevalência absoluta do direito de propriedade, considerado como direito de usar e abusar, como verdadeira fonte e critério de atribuição e limitação dos restantes direitos. Era a desigualdade jurídica e prática entre sexos, raças, religiões e ideologias, a recusa dos direitos laborais e associativos e a intolerância religiosa. Era, também, o incipiente reconhecimento dos direitos sociais.
Estes factores não impediam apenas o pleno desenvolvimento de um sistema político que, em teoria, se fundava na dignidade da pessoa humana e na garantia das liberdades individuais perante o Estado, como constituíam causas significativas da grave crise mundial que viria a abalar o século XX.
Porém, como as trágicas experiências do nosso século demonstraram à saciedade, a saída não estava na ruptura radical com os princípios globais orientadores do novo modelo de Estado e do seu relacionamento com os cidadãos, mas tão só na superação renovada e sempre problematizável daqueles quadros bloqueadores.
Também entre nós, e mais uma vez acompanhando outras experiências que na época faziam o seu curso na Europa, aí está a experiência autocrática do regime de 1933, com o esvaziamento jurídico e a destruição prática das liberdades e a desvirtuação do sentido da própria existência de uma Constituição, a ilustrá-lo negativamente.
Ao longo dos últimos 175 anos mudou substancialmente o entendimento da separação de poderes e não menos se alterou a concepção do que deve entender-se por direitos e liberdades fundamentais. Porém, num mundo radicalmente distinto do da sociedade burguesa do século XIX, o Estado de Direito dos nossos dias continua, essencialmente, a ser a expressão actualizada do mesmo ideal de limitação jurídica do Estado e de funcionalização do exercício do poder político à salvaguarda, promoção e realização dos direitos fundamentais.
O facto de as nossa sociedades terem sabido superar as deficiências assinaladas e terem sido capazes de integrar a aspiração democrática e as preocupações de igualdade e justiça material no mesmo quadro estrutural de Estado de Direito não nos pode remeter, todavia, e precisamente no domínio que aqui conjuntamente reflectimos, para um qualquer comprazimento contemplativo.
As profundas mutações tecnológicas, convivenciais e geracionais a que assistimos, colocam-nos perante novos problemas e novas responsabilidades que exigem seguramente novas respostas.
No domínio dos direitos, liberdades e garantias é, como vimos, relativamente fácil diagnosticar a posteriori os males de que padecia o mundo liberal do século XIX, tal como será evidente, para as gerações vindouras, saber onde nós próprios falhámos e onde não acompanhámos as necessidades do desenvolvimento.
Mas, as responsabilidades de hoje exigem-nos uma reflexão e uma resposta imediata, precisamente no momento em que as pequenas tricas do quotidiano da luta política e a névoa mediática que delas emerge nos tende a obstruir a visão da linha do horizonte.
Tanto quanto é possível ver claro a um observador simultaneamente empenhado, poderemos dizer que no plano da consagração jurídico-constitucional dos direitos fundamentais o essencial está, entre nós, de há muito realizado.
Numa Constituição nascida num processo de ruptura com um regime ditatorial e um Estado estranho ao controlo democrático dos cidadãos compreende-se que o articulado corresponda a uma ampla ambição garantística.
Porém, para que a Constituição não corra o risco da transformação da sua natureza em Constituição meramente nominal, não se pode aceitar, designadamente no domínio dos direitos fundamentais dos cidadãos, a possibilidade de verificação de um desfasamento significativo entre texto e realidade constitucional.
Quando, por exemplo, a nossa Constituição consagra um extraordinário elenco de direitos sociais —mais generoso que o acolhido em qualquer Constituição dos países mais desenvolvidos— e depois nos confrontamos com a incipiência de realização do nosso Estado social, é precisamente aquele risco que nos confronta a todos.
É certo que a generosidade do texto constitucional não se reflecte, por si só, na perda da força normativa da Constituição e que, em todo o caso, não deixaria de apresentar sempre a vantagem de apontar um caminho. Mas, isso só será assim se, em primeiro lugar, dessa indicação os titulares do poder político e as instituições responsáveis colherem algum sentido de orientação vinculativa e actuação sindicável.
Em segundo lugar, só será assim se não se confundirem consagração jurídica e realização prática dos direitos e não tendermos, consequentemente, a importar as soluções que os Estados mais desenvolvidos procuram para a crise do seu Estado social, esquecendo que há, entre nós, e não obstante as necessárias reformas, ainda um significativo caminho de prestações a garantir.
Por último, se a desvinculação e desresponsabilização que tendem a germinar num domínio que, por natureza, está intrinsecamente dependente das disponibilidades financeiras, não induzirem idêntica atitude no domínio das imposições constitucionais de realização não diferida no tempo como é o dos direitos, liberdades e garantias.
Ora, também aí a principal preocupação deve ser, sobretudo, a da concretização, conformação e efectivação dos direitos, a da superação do desfasamento entre uma consagração jurídico-constitucional exaustiva e uma realização prática muitas vezes difícil ou até impossível.
De nada valerá, por exemplo, consagrar, como se fez na recente revisão constitucional, um novo direito a uma decisão judicial em prazo razoável e a um processo equitativo —direito de que os cidadãos portugueses já usufruíam por força da vinculação convencional do Estado e por cuja violação, de resto, temos sido repetidamente condenados nas instâncias internacionais de tutela—, de nada valerá tal iniciativa constitucional, dizia, quando, na prática, persistem na organização judiciária bloqueios e dificuldades de diferente natureza.
Por outro lado, muitas das vezes a protecção dos direitos resulta prejudicada, e, paradoxalmente, tanto por força de um défice cada vez menos justificável de procedimentos de garantia, quer por facto de um anacrónico excesso de garantismo e burocratismo paralizantes do funcionamento do sistema judicial e, consequentemente, da tutela dos direitos.
Há que ter a consciência que por estas insuficiências e pela respectiva superação somos todos responsáveis, titulares do poder político e associações de cidadãos, intelectuais, políticos e membros da comunidade jurídica e judiciária.
Há, por último, nestas tarefas, que encontrar um equilíbrio entre os diferentes poderes, com a consciência de que não há, no edifício do Estado de Direito, guardiões exclusivos do templo investidos de uma qualquer verdade absoluta. Os limites funcionais de uns carecem de ser compensados pela legitimidade democrática dos outros, de forma a que a separação dos poderes vá de par com a respectiva interdependência, num processo em que a defesa legítima do estatuto profissional de cada corpo se subordina à prossecução última dos direitos de uma cidadania plena.
Os objectivos são conhecidos e eles só podem ser, em Estado de Direito democrático, os da garantia da plenitude da tutela judicial para qualquer lesão dos direitos e liberdades fundamentais e os da garantia do acesso efectivo da população aos bens por eles protegidos.
O desejo que aqui expresso e a certeza que me conforta são os de que o brilho e a riqueza intelectual dos participantes neste Colóquio seguramente contribuirão para iluminar um caminho que terá que ser feito por todos.