Sessão de Abertura do Forum Mundial da Criança 97

Faro
07 de Outubro de 1997


Quero dirigir as minhas primeiras palavras - palavras de muito apreço que gostaria pudessem constituir estímulo para o futuro - às pessoas e instituições que promoveram e organizaram o Encontro que agora se inicia.
Permitam-me, para não cometer a injustiça de qualquer omissão grave, que não individualize as pessoas, mas que, quanto às instituições, refira expressamente duas das que mais contribuíram para esta realização: por um lado o International Forum for Child Welfare, Organização Não-Governamental que faz questão de pautar a sua actuação pelos princípios consagrados na Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança; e, por outro lado, o Refúgio Aboim Ascensão, instituição que pugna por melhores condições de vida para as crianças desfavorecidas desta região, com todas as dificuldades que marcam o dia-a-dia do combate contra a exclusão social.
Todos os que, como eu próprio, consideram que o exercício da actividade política perde sentido, sempre que, por esta ou aquela razão, se alheia do sofrimento humano causado por injustos desequilíbrios sociais, não poderão deixar de render homenagem a quem concebeu e assumiu a responsabilidade de concretizar este Fórum Mundial sobre problemas da Criança.
Estou certo de que o debate de ideias e o intercâmbio de experiências que aqui serão levados a cabo vão fornecer indicações preciosas para intervenções adequadas neste delicado domínio da vida social.
Como é sabido, o acervo de Direitos da Criança internacionalmente consagrados tem vindo a expandir-se.
Infelizmente, porém, muitas são as indicações que nos chegam dando conta, ora de violações graves e por vezes massivas desses direitos, ora de uma dramática ausência de condições sociais e de medidas políticas que permitam encarar a própria possibilidade da sua aplicação. Neste, como noutros domínios congéneres, falar em Cartas Universais de Direitos constitui uma força de expressão, se não mesmo amargo eufemismo.
Perante a dureza dos factos, faz todo o sentido interrogarmo-nos, como é intenção expressa dos organizadores e participantes deste Fórum, sobre as estratégias mais eficazes para defender as crianças de riscos, ameaças e ofensas reais à sua integridade física, psíquica e moral.
O enunciado de alguns factores que hoje tornam vulnerável a condição infantil não pode deixar de nos trazer as mais profundas preocupações.
De facto, apontando tais factores para aspectos centrais do funcionamento, à escala nacional e internacional, das sociedades contemporâneas, todas as dúvidas sobre a capacidade para enfrentarmos com sucesso os problemas da Criança são legítimas e justificadas.
Não são esses problemas, tantas vezes, a manifestação de conflitos de interesses políticos ou de ambições mercantis de grupos ou minorias corruptas que a ordem internacional tolera ou finge ignorar?
Não são os problemas das crianças, noutros casos, o resultado final de sinistras intenções de limpeza étnica que, embora mil vezes anunciadas, teimam em ser ignoradas pelos Estados e por tantos milhões de cidadãos desatentos?
Não são ainda os problemas das crianças apenas um dos lados negros de políticas económicas mais sensíveis à conquista de quotas de mercado do que às desigualdades de rendimentos e à amputação de direitos sociais dos cidadãos?
Não são as ameaças e ofensas às crianças na família o eco de fracturas que sobre esta se abatem quando o emprego escasseia, quando os salários ficam aquém dos limiares da decência, quando a justiça dos tribunais não actua, quando as políticas de habitação se desumanizam , quando a pressão consumista se exerce sem restrições, levando a confundir desejos com a realidade?
E que dizer do abuso sexual de menores ou da prostituição infantil? Serão eles problemas das crianças ou, antes de mais, problemas da própria estruturação global de sociedades que, encerradas em tabus e falsos moralismos, foram perdendo capacidade para formar e deixar expandir equilibradamente os afectos?
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Os meios de comunicação social não param de nos pôr perante imagens de crianças em sofrimento.
A frequência e fugacidade de tais imagens tendem a promover efeitos contraditórios. Se, por um lado, nos permitem aceder a informação preciosa sobre o que se passa no mundo, provocam, por outro, fenómenos de banalização e neutralização de sentido, levando-nos, ao limite, a descrer da existência de qualquer realidade para além da virtual.
Não vou alongar-me sobre as consequências negativas desta forma peculiar de evasão cívica. Para traduzir as minhas preocupações a este respeito, prefiro recorrer a palavras simples, mas nem por isso menos depuradas, de um poeta de Timor, Fernando Sylvan.

Eis o que nos diz:
“Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de meninas e meninos
a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de cadáveres de meninos e meninas
que morreram a defender a liberdade de armas na mão.
Todos já vimos!
E então?”

A interpelação do poeta não pode ficar sem resposta.
E não se trata apenas de olhar com olhos as imagens do sofrimento infantil: trata-se ainda de utilizar todos os instrumentos intelectuais ao nosso alcance para estudar em profundidade as causas que o sustentam e propor medidas políticas que o atenuem significativamente, pelos menos nas suas formas mais brutais.
Quero voltar a dirigir-me - e com isto termino - aos organizadores deste Forum.
Sei avaliar o empenhamento que é necessário para concretizar uma iniciativa deste alcance. Mas também posso presumir que a qualidade dos participantes permitirá que os objectivos por vós almejados acabem por ter plena concretização nas conclusões do Encontro.
Sendo esse, por certo, o melhor estímulo para a continuação do vosso trabalho, nem por isso prescindo de a ele me associar, saudando-vos pela oportunidade que me foi dada ao nosso País de aqui discutirmos os direitos da Criança.
É com iniciativas destas que se promove e consolida a vocação universalista de uma cultura. É assim também que as acções e as parcerias dos testemunhos se ampliam . Não vejo outro caminho. Bem hajam!