Sessão de Abertura do 1º Encontro Internacional - A Mediação Uma Cultura de Paz”

Fundação Calouste Gulbenkian
22 de Outubro de 1997


Ao iniciar esta breve intervenção, quero dar conta da minha grande satisfação por aqui estar convosco.
Satisfação, como jurista, por poder associar-me a uma iniciativa de três prestigiadas instituições ligadas às problemáticas do Direito, da Justiça e da Defesa da Cidadania.
Satisfação, nessa qualidade ainda, por poder contactar de perto neste Encontro com análises teórica e tecnicamente fundamentadas sobre a natureza e alcance de formas inovadoras de mediação e resolução de conflitos.
Finalmente, satisfação, agora na qualidade de Presidente da República, por poder contribuir, com a minha presença, para dar maior visibilidade a metodologias de regulação negociada de conflitos que, sem pretenderem substituir-se às instituições judiciárias formalmente organizadas, revelam potencialidades para libertar estas últimas de algumas ineficiências e cargas inúteis, estimulando ao mesmo tempo o exercício activo da cidadania - ingrediente sem o qual as democracias perdem autenticidade e dificilmente serão capazes de se aperfeiçoar.
Conhecem V.Ex.as as minhas preocupações com a situação da Justiça em Portugal. Tive oportunidade de a elas me referir com pormenor na Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial de 1997, destacando entre muitos outros problemas, o da morosidade da Justiça que tanto penaliza os cidadãos, nomeadamente aqueles que acumulam maiores fragilidades nos planos económico, cultural e social.
Disse então, e repito convictamente nesta circunstância, que “a insatisfação geral que o funcionamento das instituições judiciárias vem gerando, aqui como por toda a Europa, num quadro de novos conflitos, de acelerado crescimento de litígios e de preocupantes fenómenos de ruptura social e mesmo civilizacional, já não é questão que respeite tão só a Parlamentos, a Governos e a Tribunais, ou que só por eles possa ser resolvida”.
Noutro passo dessa intervenção, e quando aludia ao excesso de garantismo que caracteriza o nosso Sistema de Justiça, fiz questão de assinalar o risco que as instituições judiciárias correm de “entrar em desregulação, impotentes para dar resposta eficiente e rápida a uma explosão de litígios, vertida em procedimentos burocratizados e propícios a todos os expedientes dilatórios”.
Nesta perspectiva, fica claro que o tema que aqui vos reúne - nos reúne - se apresenta deveras aliciante.
Sabe-se que as sociedades sempre encontraram modos de controle e regulação social não enquadrados nem enquadráveis pelo formalismo dos normativos jurídicos e dos procedimentos judiciais.
E se é verdade que os Códigos e Tratados de Direito foram registando e depurando ao longo de séculos princípios, fundamentos e regras de actuação destinados a regular e conter dentro de limites aceitáveis as margens de conflitualidade que o funcionamento das sociedades sempre implica, também é certo que os compêndios de Sociologia não se coibiram de ir assinalando a importância de instâncias como a família, as redes de parentesco, os grupos de pares, os espaços de vizinhança enquanto lugares mais ou menos informais, mas nem por isso ineficazes, de controle e resolução de conflitos.
Seria absurdo tentar medir, num eventual balanço sobre o movimento de emancipação de homens e mulheres face às formas mais arbitrárias da violência e da dominação, qual a importância relativa dos dois grandes modos de regulação social que acabei de enunciar. Não tendo sido capazes, um e outro, de enfrentar com sucesso, em todas as circunstâncias históricas, disfuncionamentos, injustiças e mesmo iniquidades sociais graves, é inegável que ambos contribuíram para consolidar aquisições civilizacionais estimáveis. O processo de construção e aperfeiçoamento constante dos Estados de Direito constitui, sem dúvida, o sinal mais claro e estimulante do que foi e pode continuar a ser a coexistência equilibrada de modos de regulação social diferenciados.
Esta coexistência está, contudo, nas nossas sociedades, francamente ameaçada.
De um lado, e como já vimos, pela pretensão de tudo regulamentar, conduzindo em algumas áreas a um excesso de leis e à expansão de uma litigiosidade inconsequente e irresolúvel; e de outro lado, pela multiplicação de fracturas nos mecanismos extra-judiciais de integração social.
Nunca será de mais salientar, a este último respeito, o conjunto de mudanças que, nas últimas décadas, tem atravessado a sociedade portuguesa e perturbado alguns dos seus equilíbrios tradicionais.
Êxodo rural persistente, a que recentemente se associaram fluxos imigratórios significativos e os correspondentes problemas da coexistência inter-étnica, envelhecimento e empobrecimento da população quer em zonas do interior quer em áreas decadentes das grandes cidades do País, concentração de populações em subúrbios inóspitos e geradores de violência, deslocações para o trabalho longas e penosas para muitos homens e cada vez mais mulheres, precarização dos empregos e dos orçamentos domésticos - eis alguns dos factores responsáveis pela crise dos mecanismos de integração social associados à organização familiar, às redes de parentesco e às solidariedades de vizinhança.
A escola, que nos dava a esperança de poder combater com êxito as desigualdades sociais e os riscos de exclusão, atravessa, também ela, dificuldades sérias, vindo ao de cima, com evidente dramatismo, até que ponto é penalizador, para os mais desfavorecidos, o desfasamento entre os seus quadros culturais e os que a escola tende a privilegiar.
Acresce que, para muitos dos que, com grande sacrifício, atingiram níveis de escolarização relativamente elevados, acaba por se deparar um mercado de emprego saturado ou reduzido a uns poucos postos de trabalho desqualificados e desqualificantes.
E aqui estamos perante outro espaço social de integração fortemente abalado pelas mudanças económico-sociais em curso: o do trabalho.
Perturbados, nestes termos, alguns factores cruciais de estabilização existencial - e o enunciado proposto está muito longe de ser exaustivo -, percebe-se que aumente a probabilidade de se desenharem, nas nossas sociedades, trajectórias que vão da vulnerabilização à pura marginalização e quadros de vida que propiciam a multiplicação de conflitos não absorvíveis pelo tecido social existente.
É, julgo eu, neste contexto de fragilização dos laços de coesão (afinal, o alicerce mais sólido das sociedades), que se joga toda a importância da mediação e negociação de conflitos. É que estes deixaram de ser um factor de dinamização da vida social, para se transformarem em forças preponderantemente nefastas, por desagregadoras.
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Os trabalhos deste Congresso vão percorrer com minúcia e, seguramente, grande competência os problemas que se deparam aos dinamizadores da mediação social nas múltiplas esferas da sua actuação: relações familiares, espaços de vizinhança, instituições educativas, estabelecimentos prisionais e outros domínios onde a pequena litigiosidade pode emergir.
A reflexão e debate eminentemente teóricos vão cruzar-se aqui com a análise de experiências práticas e com a equacionação de questões ético-deontológicas que as actividades em causa necessariamente suscitam.
Estou convencido que as Conclusões do Encontro apontarão caminhos de intervenção originais e suficientemente balizados.
Permitam, mesmo assim, que equacione alguns dilemas que poderão interferir na afirmação no terreno deste modo de praticar a mediação.
Parece-me indispensável, em primeiro lugar, não perder de vista que já existe, no âmbito de instituições que dão corpo às políticas sociais e à própria administração da justiça, uma prática efectiva de mediação, ainda que muitas vezes pouco reflectida e insuficientemente perspectivada para a participação dos cidadãos com menores recursos.
Não será a acção de muitos dos profissionais dessas instituições - escolas, creches, ATL’s, internatos, casas de juventude, centros de dia, lares de terceira idade - uma forma precursora ou mesmo exemplar das novas modalidades de mediação que se pretende incentivar?
Como garantir que as formações dos protagonistas destas últimas são mais adequadas do que as dos primeiros à compreensão e resolução dos problemas sociais do nosso tempo?
Importará, além disso, que a tentativa de mediar localizadamente os conflitos nunca seja pretexto para desviar a atenção das suas causas estruturais, contribuindo para desactivar as energias e vontades de transformação dos agentes envolvidos. Se assim acontecesse, ficaríamos perante uma via perversa de, em nome do reforço da cidadania, anular de facto a sua força emancipadora.
Finalmente, interrogo-me sobre se a proliferação de redes de mediação social não poderá, de algum modo, contribuir para legitimar a retracção do Estado no financiamento e reforma das instituições ligadas às políticas de Bem Estar.
Num País que enfrenta problemas sociais gravosos, sem ter desenvolvido os instrumentos de um Estado-Providência consistente, esta observação adquire, creio eu, plena pertinência.
É claro, por tudo o que disse ao longo da exposição, que, apesar das observações que acabo de formular, não tenho uma visão pessimista sobre as potencialidades das novas formas de mediação e sobre a sua capacidade para ajudar a construir um Estado de Bem Estar mais próximo dos cidadãos.
Mais próximo, mas também mais exigente quanto às responsabilidades e envolvimento desses mesmos cidadãos nas acções que visam satisfazer necessidades básicas, minorar o sofrimento dos mais frágeis, elevar o grau de consciência crítica sobre os problemas que marcam o seu quotidiano - enfim, um Estado de Bem Estar que não esmague, antes faça florescer, a cultura da solidariedade.
Para os organizadores e participantes deste Encontro quero deixar uma palavra de sincera homenagem pela oportunidade e alcance da iniciativa. Espero que os resultados obtidos fiquem à altura das vossas legítimas expectativas - que, como é óbvio, também partilho.