Sessão Comemorativa dos 20 Anos do Poder Local

Associação Nacional de Munícipios Coimbra
07 de Abril de 1997


A afirmação do poder local é essencial à vida política portuguesa. Quero, com a minha presença, sublinhar esta condição, resultado de uma história que hoje celebramos.
Em duas décadas, um longo caminho foi percorrido. A autonomia local, tornada possível pela democracia, tornou-se ela própria elemento vital da democracia. Não foi certamente um caminho linear, de antemão traçado, não foi também um caminho fácil.
Pelo contrário. O poder local destes vinte anos é uma construção, produto do empenhamento de praticamente duas gerações de portugueses, de milhares e milhares de autarcas, de múltiplas formações políticas e até ideológicas. Uma construção feita de apostas, de avanços, de voluntarismo, de imaginação, de iniciativa, que venceram o cepticismo, a inércia, o desânimo, o pessimismo, de muitos. Afinal, uma experiência onde se foram acumulando patamares de elaboração legislativa, de exercício de direitos e de faculdades, de interacção entre comunidade, lei e poder, onde se foi igualmente erguendo e fortalecendo a cidadania.
Em nome da República, o sinal de reconhecimento às autarquias quis testemunhá-lo hoje uma vez mais. Efectuei neste meu mandato múltiplas referências ao poder local, a que me liga uma particular relação, como é sabido. Conheço bem a actividade dos autarcas portugueses e os condicionalismos em que ela se exerce. Não lhes tenho regateado a minha compreensão e solidariedade. Mas esta presença, é-me especialmente grata, por ocorrer na sede da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, e por isso lhe quis conferir um particular simbolismo.
A Associação Nacional dos Municípios é uma organização prestigiada. Representa na sua diversidade e pluralidade os autarcas portugueses, do Continente e das Regiões Autónomas, e tem sabido gerar os consensos necessários para consolidar o seu espaço na sociedade e na política. Na sua acção tem demonstrado que os autarcas portugueses não se ocupam exclusivamente, como aliás lhes compete, dos interesses locais. São capazes de interpretar e formular uma perspectiva global, onde se joga o interesse de todos, num quadro de solidariedade nacional. No futuro, aliás, não haverá outro caminho.
Quero pois saudar neste dia a Associação Nacional de Municípios, os seus órgãos dirigentes. E cumprimentar o seu Presidente, Eng.º Mário de Almeida, um obreiro sereno e persistente da dignificação dos autarcas portugueses.
Senhoras e Senhores Autarcas
No balanço destes vinte anos de democracia local, o espaço privilegiado de intervenção dos autarcas tem sido o atraso, as carências básicas do desenvolvimento.
Não creio a esse propósito, que restem dúvidas. Foi graças ao empenhamento e dinamismo dos eleitos locais que se tornou possível atenuar, em poucos anos, os enormes atrasos com que o País se debatia em matéria de infra-estruturas e equipamentos sociais básicos.
Persistem, já se sabe, problemas deste âmbito por resolver. Mas o conjunto de realizações averbadas constitui uma excelente ilustração de que os eleitos locais não cruzaram os braços, e se dispuseram a lutar, em diálogo com a Administração Pública, pela criação de condições materiais adequadas à satisfação das necessidades básicas das populações.
É certo igualmente que o poder local se não tem ocupado exclusivamente, como referiu o Senhor Engenheiro Mário de Almeida, desse lado, em certo momento prioritário, do desenvolvimento.
Subsistem carências e inadequações em infra-estruturas, e atrasos na cobertura de serviços básicos, que não podem ser ignorados. Mas a área de incidência do poder local tem-se ampliado, em resultado de um processo em que o aumento e a diversificação das competências tem correspondido a um alargamento do leque de expectativas sociais face à capacidade de intervenção das autarquias.
E é assim que vemos na agenda dos órgãos locais questões de ambiente e segurança, problemas de preservação e valorização do património histórico, projectos que articulam educação e cultura, preocupações com o emprego e a integração social e até com a cooperação internacional. A escola, a saúde, a velhice, a família, a toxicodependência, por exemplo, são temas com os quais as autarquias se acham envolvidas.
Está hoje também consagrado um elevado protagonismo dos eleitos locais, não apenas no diagnóstico dos problemas das populações, como no alerta para a necessidade de serem concebidos e postos em prática planos regional e sectorialmente integrados.
Em muitos casos, têm eles próprios dado o exemplo da coordenação de esforços, racionalizando a utilização de recursos sempre escassos, dirigidos ao desenvolvimento local e regional.
As autarquias constituem hoje uma preciosa plataforma de entendimento e coordenação entre diversas instâncias públicas e privadas.
Entrámos pois numa segunda fase da trajectória do poder local democrático, que será certamente caracterizada pela adopção de uma definição estratégica de objectivos, pela priorização de políticas do qualitativo, pela prática de negociação com os diversos níveis da Administração, e pelo estímulo à concertação de esforços com a sociedade civil.
Senhoras e Senhores autarcas
Os órgãos eleitos locais não podem ficar indiferentes ou à margem dos grande desafios civilizacionais com que estamos confrontados. O desenvolvimento não se resume à componente do crescimento, tem que ser visto numa perspectiva pluridimensional, de desenvolvimento sustentável. Existe hoje um sentimento generalizado de que o sentido para a intervenção política só pode ser o de proporcionar um reencontro das criações da sociedade com o homem e as suas faculdades.
Humanizar a escola, humanizar a saúde, humanizar a cidade, humanizar o território, constituem os caminhos para a reconquista de um novo equilíbrio entre o Homem e a natureza, entre a sociedade, a técnica e a ciência, entre o indivíduo e a comunidade, entre o poder e a cidadania.
O contributo do poder local não é de forma alguma dispensável na resposta a este crucial desafio. E há que valorizar, desde já, pôr limitado e restrito que pareça, o capital de experiência já acumulado pela administração local em domínios tão diversos como o combate ao desemprego, à pobreza, à exclusão social; a luta contra a desertificação e o envelhecimento dos núcleos históricos, a promoção da educação e da formação, da segurança e da integração. Há igualmente que incentivar o espírito de cooperação interinstitucional assumido por autarcas, que está na origem de autênticas redes de solidariedade que envolvem, além da Administração central e local, entidades públicas e privadas. Temos de reconhecer o papel das autarquias no campo da cooperação internacional: as geminações, as redes de cooperação internacional descentralizada baseadas nas relações entre cidades são decisivas para a consolidação da Comunidade de Povos de Língua Portuguesa e contribuem para a visibilidade da nossa política à escala internacional.
Embora perante novas áreas e novas metodologias de intervenção do poder local, exigindo definição de políticas orientadoras globalmente fundamentadas, prioridade à valorização dos recursos humanos, concertação estratégica entre Administração local e Administração central.
Certamente que a consolidação desta nova fase do poder local exigirá uma reforma dos instrumentos jurídicos, técnicos e financeiros colocados ao seu dispôr. Permitir maior agilidade e flexibilidade na gestão autárquica, facilitar o acesso do poder municipal aos meios e produtos disponíveis na sociedade e na economia modernas constitui decerto finalidade primeira dessa reforma.
É uma reforma suscitada pelas exigências do combate à desigualdade de oportunidades, às assimetrias de desenvolvimento. As competências e responsabilidades dos autarcas nesse combate não se compadecem com a persistência de um enquadramento excessivamente burocratizante, pesado, moroso, arcaico. Atendendo aos passos que a antecipam, o debate e conjunto de propostas adiantadas pelos municípios, através da sua Associação, e aos propósitos e compromissos enunciados pelo Governo, acredito que essa reforma comece em breve a ser concretizada.
Senhoras e Senhores Autarcas,
A autonomia local dá expressão ao regime de descentralização previsto na Constituição democrática, cujo 20 º aniversário também passou em 1996.
Este modelo surgiu em clara oposição ao centralismo histórico do Estado, que o autoritarismo tinha aliás agravado.
A experiência destes vinte anos do combate pelo desenvolvimento travado pelos eleitos locais, forjou, em confronto com o passado, um amplo consenso sobre as virtualidades do modelo de administração descentralizada.
A participação dos interessados, a proximidade do processo de decisão, a vitalidade e o reconhecimento dos interlocutores locais são condições decisivas para o desenvolvimento. A qualidade de vida das populações está hoje tão dependente dos investimentos, como da modalidade que eles assumem, das prioridades que em cada região ou localidade são elencadas, e, sobretudo, das soluções concretas que, para cada caso, são encontradas. O insucesso de muitas das fórmulas adoptadas para a correcção de assimetrias do desenvolvimento resultou precisamente de se ter partido do pressuposto de que o desenvolvimento podia ser concretizado através da imposição, pelos órgãos da Administração Central, de planos e investimentos, sem qualquer participação, a não ser decorativa, das populações interessadas. Foi o que se verificou precisamente no nosso País.
Acredito que o reforço e o aprofundamento da via descentralizadora fará mais pela harmonização e pela solidariedade do que o centralismo. Tenho afirmado a convicção de que um sistema administrativamente descentralizado é um sistema politicamente mais justo e administrativamente mais eficaz.
Senhoras e Senhores Autarcas
O poder local não é apenas um resultado feliz da Democracia. Constitui em si próprio uma mais-valia, reforçando a proximidade entre representantes e representados.
O apreciável impacte da autonomia local na vida política não pode ser menosprezado. Além da proximidade, o sistema local apela à participação das populações e nesse aspecto não pode deixar de constituir um factor de revigoramento da cidadania. A autonomia local, regida pelos procedimentos da democracia legitimados pelo voto, permite a formação de uma opinião pública mais esclarecida, credibiliza os interlocutores locais no processo de composição de interesses entre o Estado e as comunidades.
Apesar do catastrofismo de algumas análises e atitudes perante o poder local, multiplicam-se os sinais de que os cidadãos se sentem melhor representados por aqueles que lhes estão mais próximos, que estão mais disponíveis para os ouvir e para procurar respostas para as suas necessidades. Eu direi mesmo que as pessoas sentem que essa relação de maior proximidade com os eleitos torna mais eficaz a sua crítica a aspectos concretos da actuação política local.
Esta percepção representa um capital de confiança essencial para a democracia, que deve ser aprofundado e não desbaratado ou descredibilizado.
Por isso me parece injusto e despropositado o lançamento de suspeições generalizadas sobre os autarcas, que inquestionavelmente desempenham as mais relevantes funções políticas num quadro de serviço público particularmente exigente e de, por vezes, bem desconfortável visibilidade.
Reconheço certamente que é possível criar condições para uma intensificação da confiança dos cidadãos no poder autárquico. Mostrei-me favorável, num tempo em que tal não se tinha ainda tornado corrente, a uma reponderação do modelo de organização do poder local, no sentido de adoptar formas mais directas de avaliação e de fiscalização do seu exercício.
A expectativa das populações relativamente às suas autarquias e aos seus autarcas é muito elevada. Mérito sem dúvida do sistema de autonomia local e dos seus protagonistas. Este reconhecimento é exigente. Afinal os cidadãos sabem que a sua qualidade de vida depende em múltiplos aspectos da actuação do poder local. A vida política democrática joga-se na articulação entre as instituições e as preocupações e ansiedades do quotidiano. O poder autárquico é actor fundamental, não um espectador ou um mero beneficiário, deste processo de revigoramento democrático, através da aproximação entre o Estado e os cidadãos.
Por isso o saudamos, por isso confiamos na sua capacidade de desenvolver a proximidade, a abertura, a participação democráticas.