Jornada “Memórias Árabe-Islâmicas”

Arquivo Nacional da Torre do Tombo
15 de Maio de 1997


Agradeço o amável convite que me dirigiram para participar nesta Jornada “Memórias Árabe-Islâmicas em Portugal”. Sabem que estou aqui com muito gosto e interesse pessoal. Como Presidente da República, entendo também ser meu dever apoiar todas as manifestações que se ligam à identidade cultural e histórica portuguesa, propiciando o conhecimento e o diálogo entre os povos, os países, os continentes e contribuindo, nessa medida, para o reforço da tolerância e da convivência pacífica nas relações entre os Estados.
É esse um dos sentidos da viagem que fiz ao Egipto e as visitas que fiz ao Presidente H.Mubarak, Yasser Arafat e à Liga Árabe.
É esse o caso desta Jornada e, por isso, felicito vivamente os que a promoveram, organizaram e apoiaram. Quero saudar calorosamente os convidados presentes, entre os quais se contam personalidades muito ilustres, provenientes de diversos países árabes. Digo-vos que são bem-vindos a Portugal, país democrático e aberto, cuja vocação universalista queremos renovar nestes tempos de tantos desafios e incertezas.
As memórias árabe-islâmicas em Portugal são muitas, preciosas e marcam a nossa identidade. Essa marca é, aliás, recíproca, pois testemunhos portugueses também estão presentes em muitos países árabes.
Na língua, na toponímia, nos hábitos e costumes sociais, na arquitectura, nas artes, na literatura, no imaginário popular, na gastronomia, na agricultura, no comércio, somos devedores da riquíssima herança árabe-peninsular e disso temos, hoje, orgulho e uma nova consciência. Não ignoramos, porém, que esta nova atitude se ganhou, vencendo medos, desconfianças, preconceitos e incompreensões seculares.
Pelas circunstâncias históricas da formação de Portugal, ligadas à consolidação do poder e influência cristã, o “mouro” foi, durante séculos, identificado como o grande inimigo espiritual e temporal. Por isso mesmo, em períodos de intolerância e fanatismo mais acentuados, como aconteceu no século XVI, os árabes foram perseguidos e expulsos de Portugal, que era a sua terra, esquecendo-se o contributo que deram para o enriquecimento da nossa cultura e até para a empresa dos grandes descobrimentos portugueses.
Antero de Quental aponta também a expulsão dos árabes, cujas escolas tinham renovado o pensamento e a filosofia, como uma das causas da decadência dos povos peninsulares.
A história de uma Nação assume-se nos seus períodos de glória e nos seus tempos de sombra. Não há histórias isentas de graves erros e faltas. Há, sim, que aprender com a lição medidatada das suas causas. O Portugal democrático assume a sua história integralmente, com espírito crítico. Os historiadores portugueses, na pluralidade dos seus interesses, critérios e concepções, têm realizado um notável trabalho científico e cultural. Também a história da influência árabe em Portugal e o estudo das suas marcas em tão variados domínios têm merecido a atenção dos investigadores, permitindo que tenhamos, actualmente, sobre o assunto uma visão mais esclarecida, informada e livre de preconceitos. Julgo ser esse o caminho que devemos prosseguir, tendo como únicas regras as que decorrem da liberdade de investigação e da probidade científica.
Ligado pela história e pela cultura, Portugal quer hoje revalorizar a sua proximidade aos países árabes, desenvolvendo-a nos planos da cooperação económica e cultural.
Num mundo de dramáticos conflitos e rivalidades, marcado por desequilíbrios e antagonismos, em que a intolerância, a exclusão, o fanatismo, a ignorância, o subdesenvolvimento são realidades diariamente presentes, só o diálogo entre culturas, países, povos, religiões, civilizações pode preparar e abrir um futuro de esperança à Humanidade.
Este diálogo respeita a identidade própria de cada uma e de todas as culturas e tem consciência de que a diversidade e a pluralidade são a riqueza da nossa condição. Tal diálogo permite ainda pôr em evidência aquele conjunto de valores, expressos em direitos fundamentais, que são universais e invioláveis, por inerentes à dignidade humana.
O próximo século será o século do diálogo, da tolerância, do respeito pelo diferente, do universal ou será o século do confronto e da agressão. Como sempre, tudo está em aberto e a escolha está nas nossas mãos.
Portugal, país europeu, mas com uma situação geográfica e geo-estratégica ímpar que lhe permitiu ser um lugar de encontro de culturas e de influências, que o abriu ao Mundo, vê a Europa não como uma fortaleza fechada sobre sobre si mesma, mas como um espaço de solidariedade e abertura às outras regiões do planeta.
A esta luz, e por todas as razões, o aprofundamento do diálogo euro-árabe é um objectivo primordial. Esse diálogo é uma condição na luta pelo desenvolvimento, pela democracia, pela solidariedade, pela dignidade de todos os povos, pela paz!
O isolamento, o agravamento das assimetrias e dos desequilíbrios, o aumento da pobreza, da injustiça e da discriminação, entre os países ou no interior das sociedades, são os grandes aliados dos movimentos e grupos extremistas que defendem a intolerância étnica, religiosa, chauvinista e são adeptos de uma sociedade assente em valores inaceitáveis que não respeitam a liberdade e a dignidade dos seres humanos. A tolerância, o conhecimento, o diálogo são, assim, causa e consequência da paz, da justiça, do desenvolvimento solidário.
Nós acreditamos na capacidade humana de aprender com os erros cometidos, de corrigir o que está mal, de aperfeiçoar. Sabemos que este é sempre um caminho difícil, gradual, não isento de obstáculos e de contradições. Mas é o único que leva a resultados que, embora precários e insuficientes, constituem o progresso e estão à altura daqueles grandes ideais que os melhores homens de todas as culturas e raças sonharam, desde a antiguidade dos tempos, para o género humano.
Alguns desses homens eram ou são árabe; outros, europeus. Alguns eram ou são cristãos; outros, muçulmanos; uns professaram e professam religiões diversas; outros, nenhuma religião. Têm, porém, em comum, todos eles, a qualidade suprema de seres humanos preocupados com os outros seres humanos, com a humanidade, com a dignidade de todos os homens e mulheres. É em nome dessa dignidade, que se fundamenta na liberdade, na tolerância, na solidariedade, no encontro, que esta Jornada se realiza.
Desejo-vos, por isso, as maiores felicidades e renovo as minhas saudações afectuosas.