Sessão Solene Evocativa do 3º Centenário da morte do Padre António Vieira

Assembleia da República
18 de Julho de 1997


Honrar a memória do Padre António Vieira é um dever nacional e constitui manifestação de reconhecimento e louvor a quem fez do engrandecimento de Portugal independente a razão fundamental da sua acção incansável, o tema principal da sua palavra arrebatada.
Com a distância que a passagem do tempo e a acumulação de uma herança riquíssima de investigações, estudos e interpretações permitem, lembrar Vieira, no terceiro centenário da sua morte, deve ser conhecer melhor e divulgar mais a sua obra, a sua personalidade, o seu destino, pois nele vida e verbo se fundem e mutuamente se sustentam. É, sobretudo ler e reler os seus textos, de uma beleza irrepetível, essa linguagem alta, rápida e sonora, que tem o dom impressionante de transportar até hoje, e até nós, o gesto vigoroso, o fôlego da inspiração, o timbre da voz, a majestade da visão. Lêmos Vieira como se ele se tornasse presente, como se o ouvíssemos e víssemos, torrencial e justiceiro, acompanhando-o nos raciocínios, nos argumentos, nos silogismos, nas diatribes, no clamor.
Agradeço à Assembleia da República o convite que me dirigiu para estar presente nesta Sessão Evocativa e felicito-a por esta ideia, que continua e dá realce a uma tradição que tem valor cívico, utilidade pedagógica e significado cultural. Essa tradição é a de homenagear, na sede da representação nacional e em acto para o efeito convocado, grandes figuras que deram e dão substância à nossa identidade de Nação, povo, cultura e história.
Homenageemos, pois, António Vieira, a quem Portugal tanto deve. Como falar, porém, com palavras pobres, daquele que fez da palavra um ouro puríssimo, que resiste ao tempo e com o tempo ainda mais se enobrece e valoriza? A resposta a esta pergunta é a natural: falemos com humildade, escutando mais do que dizendo, com a consciência clara de que estamos perante uma daquelas figuras que desafiam a lógica fechada dos sistemas e a estabilidade das definições. Vieira é grande e desmedido, até nas suas contradições, como se projectasse sobre nós o reflexo de um fogo grandioso e inextinguível.
Quer isto dizer que tudo, no que fez e no que disse, no que realizou e no que deixou por acabar, tem a mesma medida? Não! Quer apenas dizer que havia nele uma imaginação, uma vontade, um fervor, uma força, uma fantasia, um poder de acreditar, de persuadir, de realizar, que davam ao que tocava o sopro da desmesura, do excesso, da audácia.
Margarida Vieira Mendes, já hoje aqui justamente mencionada, e cujo nome permanecerá ligado aos estudos sobre Vieira, pois lhe devemos uma das últimas grandes interpretações da sua obra, contou que, ao iniciar o seu trabalho monumental, fôra conversar com um dos grandes mestres da investigação sobre Vieira, António José Saraiva, e que este lhe disse: “Vieira exige uma vida inteira!” Assim é, com efeito, tais as complexidades da obra imensa e as aventuras da vida tão longa. Assim é, de facto, como o atestam as múltiplas obras sobre a obra de Vieira e a diversidade de pontos de vista de leitura, de ângulos de abordagem, de perspectivas de exegese, que nelas têm sido ensaiadas.
Disso, dá exemplo evidente o grande António José Saraiva, cuja hermeneûtica do discurso engenhoso do autor da “História do Futuro” é riquíssima. Como o são os trabalhos tão importantes de André de Barros, logo no século XVIII, de João Lúcio de Azevedo, na primeira metade deste século, e mais próximo de nós, de Hernâni Cidade, António Sérgio, Vasco Pulido Valente, entre outros. Dos estrangeiros, não podemos esquecer os de Van Den Bessellaar, Raymond Cantel e Charles Boxer, que ainda recentemente confessou a sua mágoa por não ter podido dedicar mais tempo da vida de mais de noventa anos ao estudo do grande orador barroco.
“Político, missionário, clássico, moralista, orador, defensor dos fracos e dos oprimidos, sempre patriota” - assim dele proclama a lápide que, há um século exacto, foi posta no átrio da Sé de Lisboa, para assinalar o sítio onde fôra baptizado. Esta enumeração, muito ao gosto da época, dá as faces essenciais da sua vida, do seu carácter, da sua acção. Mas não revela os acontecimentos, os lances, as glórias, as desgraças. Nem os perigos, os combates, os sucessos, as injustiças, os fracassos, as penas.
Nascido em Lisboa e morto na Baía, António Vieira é património dos dois países irmãos. Mas é mais: é uma figura daquela comunidade de povos e países que se funda na língua e de que ele foi um profeta, como pressentiu Fernando Pessoa, chamando-lhe “imperador da língua portuguesa” e dizendo que ela era a verdadeira Pátria.
Homem que quis ver para além do tempo, mas que não deixou de invectivar os vícios do seu tempo, foi, por isso, ameaçado, vilipendiado, perseguido, encarcerado. A sua atitude para com os judeus e os cristãos novos demonstra que ele teve a agudíssima percepção de um estado de coisas que se arrastava e que, dois séculos mais tarde, Antero de Quental apontaria como uma das causas da decadência dos povos peninsulares.
A sua corajosa defesa, para a época, dos índios do Brasil, não podia deixar de incomodar, de escandalizar, de aparecer como suspeito. O recado tinha destinatários claros, que perceberam a mensagem e retribuíram com represálias. Mas Vieira nunca depôs as armas do combate, mesmo quando a Inquisição o tentou silenciar e anular ou a Corte o quis ostracizar. Defendeu-se e atacou. Portugal não lhe deve apenas o seu génio de orador e de escritor, deve-lhe importantes serviços diplomáticos e políticos. Deve-lhe um patriotismo arrebatado. Deve-lhe a visão larga, mas também a advertência concreta. Há páginas de Vieira que parecem escritas hoje, sobre questões de hoje.
Vieira era, ao mesmo tempo, prático e visionário, homem do tempo por vir mas também homem do seu tempo, pós-renascentista e barroco. Agiu e falou como membro da Companhia de Jesus, padre da Contra-Reforma, militante inaciano, não o esquecamos. E como português do Portugal restaurado. A sua longa vida cumpriu-se nessas duas pátrias. No púlpito uniu-as com o seu verbo e com o sentido universalista que o percorria.
Interpelava Portugal em nome de Deus e Deus em nome de Portugal: “Não hei-de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fôra só nossa e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome (...), razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei-de arguir, vos hei-de argumentar; e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei-de convencer. Se chegar a me queixar de vós e a acusar as dilações de vossa justiça, ou as desatenções de vossa misericórdia (...), não será esta vez a primeira em que sofreste semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa”.
Em Vieira estão Cícero e S. Paulo, Santo Agostinho e Séneca, Santo Inácio de Loyola e Bartolomeu de las Casas, João das Regras e Bandarra. A sua obra pôde atrair e fascinar espíritos tão diferentes e com ideias tão diversas de Portugal como Fernando Pessoa e António Sérgio. Vieira encarnou, como nunca tinha acontecido nem mais viria a contecer, o tipo heróico do pregador, do arauto e do áugure que dá voz, na mesma voz, ao temporal e ao espiritual, ao real e ao profético, ao sagrado e ao profano, transformando a sua personalidade histórica em autor literário, em artista e em símbolo. Nesse sentido, António Vieira é uma genial criação do seu próprio discurso.
O autor dos “Sermões” é irredutível a qualquer leitura parcial ou uso dirigido que dele se queira fazer. Génio da acção e da enunciação, que transformou a acção em enunciação e a enunciação em acção, é no verbo que ele se encontra íntegro e total. É por isso que o regresso à sua obra permite sempre novas e inesperadas indagações, leituras, interpretações.
Em Vieira, no princípio era o verbo e no fim será ainda o verbo. Ele habitará sempre entre esse povo de palavras com as quais confundiu a vida e fez a obra. É nelas - e não na ordem do político como erroneamente alguns pensaram - que as suas profecias se cumprem. Esse império discursivo, essa catedral verbal, esse teatro de eloquência, esse prodígio de “engenharia sintáctica,” essa “grande certeza sinfónica”, como disse Fernando Pessoa/Bernardo Soares, permanecerá como um monumento de palavras que desafiará o tempo e a passagem dos homens. A obra de António Vieira é - será sempre -, por isso, a confirmação fulgurante da grandeza de Portugal.